1.
Bispo, santo, professor, teólogo, filósofo, Doutor da Igreja. Eis Agostinho de Hipona, autor de Confissões, escrita pelo ano 400. Suas qualificações podem levar ao pensamento de que se trata de uma obra piedosa, dedicada a cristãos-católicos que buscam o caminho da perfeição, que os levará aos céus. Não é assim. Para já, Agostinho teve uma vida que, na juventude, foi marcada por relações amorosas não sacramentadas, teve um filho, variou de pensamento filosófico — até que foi tocado pelo cristianismo e deixou-se batizar. Começava o homem que seria santo. Não importa, também, neste momento, seu pensamento teológico, polêmico em sua época, e que fica para os especialistas. Quero referir-me ao ser humano Agostinho, a partir do que ele mesmo escreve.
2.
Confissões é uma autobiografia, e pode ser considerada a primeira que o Ocidente conheceu. Eis o primeiro ponto de originalidade. Recuperar a própria vida em primeira pessoa, com toda a sinceridade, e dá-la para leitura alheia é coisa de quem sabe medir e avaliar tudo o que fez, inclusive as ações de que se arrepende, e essa não era a prática dos intelectuais, que tentavam afastar-se do eu, assumindo uma atitude catedrática, especialmente ao tratar de temas filosóficos. Alguns falaram de si próprios, mas apenas parcialmente e somente para argumentar, como o Cícero do De senectute [Acerca da velhice]. Assim, Agostinho é uma singularidade absoluta.
3.
O que proponho, na leitura de Confissões, é que nos abstenhamos de posições apriorísticas e intransitivas, como: “não acredito em Deus, portanto nada vale para mim”. Quanto a isso, cabe relevar dois dados: trata-se de grande literatura, magistral mesmo, tanto sob o aspecto linguístico como argumentativo — um encanto de narrativa e de sólida disposição das ideias; depois, é o exemplo da escrita de uma pessoa que acredita numa razão metafísica, e, assim, constrói sua vida — e eis aí uma atitude que está longe de frequentar o século 21, o qual anda à beira de retornar, ou já retornando, a ideias pré-iluministas. A propósito: Agostinho foi um iluminista avant la lettre, e sem o saber.
4.
Nosso autor pode ser considerado um dos primeiros “filósofos da existência”. Dentro dessa disponibilidade existencial, que já anunciava o livre-arbítrio, Agostinho estabelece um jogo muito moderno: dado que a existência me foi dada, sou responsável pelas decisões que tomo. Nada mais simples, nada mais complexo, pois implica reconhecer-se como um ente único perante as circunstâncias da vida. As atuais doutrinas de autoajuda ficam a repetir essa ideia como se tivessem descoberto a roda.
5.
Dado tudo isso, cabe, agora, ver do que trata essa autobiografia. A coluna central que a sustenta é o caminho que levou Agostinho à fé cristã que ele decide aceitar; mas atenção: esse caminho foi de longa humanidade, e ele se julga no dever de consciência de relatar sua vida desde que era bebê, e não me lembro de outro texto autobiográfico que comece no berço, e eis aí mais outra originalidade, que nos deixa intrigados, pensando até que estamos perante uma peça literária experimental do nosso século.
6.
A conduta narrativa é de um homem que já descobriu a graça, e que se diverte com o bebê que ainda não a conhecia:
Pouco a pouco ia reconhecendo o lugar onde me encontrava, e queria manifestar meus desejos às pessoas que deviam satisfazê-los, mas não conseguia, porque esses desejos estavam dentro de minha alma e elas estavam fora, e através de nenhuma percepção teriam podido penetrar no âmago de minha alma. E assim eu me debatia e gritava, exprimindo uns poucos sinais proporcionais aos meus desejos, como eu podia e de maneira inadequada. Se não me obedeciam, ou porque não me entendiam ou por medo de me fazerem mal, eu me indignava com essas pessoas grandes e insubmissas que, sendo livres, recusavam ser minhas escravas, chorando, eu me vingava delas.
Esta gênese emocional já indica o caminho de insubmissão de Agostinho.
7.
O seu itinerário pessoal mostra o homem voluntarioso e que não resistiu às tentações mais prementes da idade jovem: “Não obstante eu ser feio e indigno, apresentava-me, num excesso de vaidade, como pessoa elegante e refinada. Mergulhei então no amor em que desejava ser envolvido”. Depois: “Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciúme, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das contendas”. Não cabe aumentar as citações que tratam desse aspecto, pois já entendemos tudo: Agostinho foi um ser humano que, em certo momento, revela, por exemplo, o gosto pelas paixões representadas no teatro, em que afirma ter se divertido e chorado com as tragédias dos amantes que se separavam.
8.
Agostinho pertence a uma vertente seminal, que depois seria partilhada por nomes como Pascal, Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Clément Rosset, que se maravilhavam pelo simples fato de existirem, de estarem no aqui e agora, e, se Agostinho explicava esse fato pela existência da graça divina, já Pascal perturbava-se com o fato de estar aqui e não noutro lugar, sendo que Clément Rosset retoma a ideia da graça, mas nada divina, e inexplicável.
9.
O cerne “existencialista” do pensamento de Agostinho está aqui, em sua própria voz:
Nem tudo envelhece, mas tudo morre. Portanto, no exato momento em que nascem e começam a existir, quanto mais rapidamente crescem para o ser, tanto mais correm para o não ser. Tal é a condição que tu, Deus, lhes impuseste, por serem partes de coisas que não podem existir simultaneamente. São as coisas que, desaparecendo e sucedendo-se umas às outras, compõem o universo. Também assim se pratica a fala, através de sinais sonoros. E o discurso não seria completo, se cada palavra, depois de pronunciada, não morresse para deixar lugar a outra.
Este fragmento, brilhante pela sua precocidade, poderia ser assinado por um filósofo de século 20, e aqui penso, mais concretamente, no existencialista cristão Emmanuel Mounier ou, excluído o vocativo divino, pelo ateu já citado, Clément Rosset. Ou, fazendo uma aproximação mais linear, diria Pascal no século 17: “Tudo o que sei é que devo morrer em breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”.
10.
Um pensamento tão vasto e complexo, uma obra igualmente vasta, da qual alguns pontos foram trazidos com pinças, pedem, é claro, uma leitura completa, sem preconceitos: ela nos revelará um homem único, profundamente sofrido e com o qual nos solidarizamos, pois nos sentimos ali representados em nossas fraquezas. E, como bônus, leremos uma obra soberba e atual. Realmente: se este livro não merecer a nossa mochila, nenhum mais merecerá.