🔓 Confissões

Livro de Agostinho é uma autobiografia, e pode ser considerada a primeira que o Ocidente conheceu
Ilustração: Eduardo Souza
01/04/2023

1.
Bispo, santo, professor, teólogo, filósofo, Doutor da Igreja. Eis Agostinho de Hipona, autor de Confissões, escrita pelo ano 400. Suas qualificações podem levar ao pensamento de que se trata de uma obra piedosa, dedicada a cristãos-católicos que buscam o caminho da perfeição, que os levará aos céus. Não é assim. Para já, Agostinho teve uma vida que, na juventude, foi marcada por relações amorosas não sacramentadas, teve um filho, variou de pensamento filosófico — até que foi tocado pelo cristianismo e deixou-se batizar. Começava o homem que seria santo. Não importa, também, neste momento, seu pensamento teológico, polêmico em sua época, e que fica para os especialistas. Quero referir-me ao ser humano Agostinho, a partir do que ele mesmo escreve.

2.
Confissões é uma autobiografia, e pode ser considerada a primeira que o Ocidente conheceu. Eis o primeiro ponto de originalidade. Recuperar a própria vida em primeira pessoa, com toda a sinceridade, e dá-la para leitura alheia é coisa de quem sabe medir e avaliar tudo o que fez, inclusive as ações de que se arrepende, e essa não era a prática dos intelectuais, que tentavam afastar-se do eu, assumindo uma atitude catedrática, especialmente ao tratar de temas filosóficos. Alguns falaram de si próprios, mas apenas parcialmente e somente para argumentar, como o Cícero do De senectute [Acerca da velhice]. Assim, Agostinho é uma singularidade absoluta.

3.
O que proponho, na leitura de Confissões, é que nos abstenhamos de posições apriorísticas e intransitivas, como: “não acredito em Deus, portanto nada vale para mim”. Quanto a isso, cabe relevar dois dados: trata-se de grande literatura, magistral mesmo, tanto sob o aspecto linguístico como argumentativo — um encanto de narrativa e de sólida disposição das ideias; depois, é o exemplo da escrita de uma pessoa que acredita numa razão metafísica, e, assim, constrói sua vida — e eis aí uma atitude que está longe de frequentar o século 21, o qual anda à beira de retornar, ou já retornando, a ideias pré-iluministas. A propósito: Agostinho foi um iluminista avant la lettre, e sem o saber.

4.
Nosso autor pode ser considerado um dos primeiros “filósofos da existência”. Dentro dessa disponibilidade existencial, que já anunciava o livre-arbítrio, Agostinho estabelece um jogo muito moderno: dado que a existência me foi dada, sou responsável pelas decisões que tomo. Nada mais simples, nada mais complexo, pois implica reconhecer-se como um ente único perante as circunstâncias da vida. As atuais doutrinas de autoajuda ficam a repetir essa ideia como se tivessem descoberto a roda.

5.
Dado tudo isso, cabe, agora, ver do que trata essa autobiografia. A coluna central que a sustenta é o caminho que levou Agostinho à fé cristã que ele decide aceitar; mas atenção: esse caminho foi de longa humanidade, e ele se julga no dever de consciência de relatar sua vida desde que era bebê, e não me lembro de outro texto autobiográfico que comece no berço, e eis aí mais outra originalidade, que nos deixa intrigados, pensando até que estamos perante uma peça literária experimental do nosso século.

6.
A conduta narrativa é de um homem que já descobriu a graça, e que se diverte com o bebê que ainda não a conhecia:

Pouco a pouco ia reconhecendo o lugar onde me encontrava, e queria manifestar meus desejos às pessoas que deviam satisfazê-los, mas não conseguia, porque esses desejos estavam dentro de minha alma e elas estavam fora, e através de nenhuma percepção teriam podido penetrar no âmago de minha alma. E assim eu me debatia e gritava, exprimindo uns poucos sinais proporcionais aos meus desejos, como eu podia e de maneira inadequada. Se não me obedeciam, ou porque não me entendiam ou por medo de me fazerem mal, eu me indignava com essas pessoas grandes e insubmissas que, sendo livres, recusavam ser minhas escravas, chorando, eu me vingava delas.

Esta gênese emocional já indica o caminho de insubmissão de Agostinho.

7.
O seu itinerário pessoal mostra o homem voluntarioso e que não resistiu às tentações mais prementes da idade jovem: “Não obstante eu ser feio e indigno, apresentava-me, num excesso de vaidade, como pessoa elegante e refinada. Mergulhei então no amor em que desejava ser envolvido”. Depois: “Fui amado e cheguei ocultamente às cadeias do prazer; mas, na alegria, eu me via amarrado por laços de sofrimento, castigado pelo ferro em brasa do ciúme, das suspeitas, dos temores, das cóleras e das contendas”. Não cabe aumentar as citações que tratam desse aspecto, pois já entendemos tudo: Agostinho foi um ser humano que, em certo momento, revela, por exemplo, o gosto pelas paixões representadas no teatro, em que afirma ter se divertido e chorado com as tragédias dos amantes que se separavam.

8.
Agostinho pertence a uma vertente seminal, que depois seria partilhada por nomes como Pascal, Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Clément Rosset, que se maravilhavam pelo simples fato de existirem, de estarem no aqui e agora, e, se Agostinho explicava esse fato pela existência da graça divina, já Pascal perturbava-se com o fato de estar aqui e não noutro lugar, sendo que Clément Rosset retoma a ideia da graça, mas nada divina, e inexplicável.

9.
O cerne “existencialista” do pensamento de Agostinho está aqui, em sua própria voz:

Nem tudo envelhece, mas tudo morre. Portanto, no exato momento em que nascem e começam a existir, quanto mais rapidamente crescem para o ser, tanto mais correm para o não ser. Tal é a condição que tu, Deus, lhes impuseste, por serem partes de coisas que não podem existir simultaneamente. São as coisas que, desaparecendo e sucedendo-se umas às outras, compõem o universo. Também assim se pratica a fala, através de sinais sonoros. E o discurso não seria completo, se cada palavra, depois de pronunciada, não morresse para deixar lugar a outra.

Este fragmento, brilhante pela sua precocidade, poderia ser assinado por um filósofo de século 20, e aqui penso, mais concretamente, no existencialista cristão Emmanuel Mounier ou, excluído o vocativo divino, pelo ateu já citado, Clément Rosset. Ou, fazendo uma aproximação mais linear, diria Pascal no século 17: “Tudo o que sei é que devo morrer em breve. O que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”.

10.
Um pensamento tão vasto e complexo, uma obra igualmente vasta, da qual alguns pontos foram trazidos com pinças, pedem, é claro, uma leitura completa, sem preconceitos: ela nos revelará um homem único, profundamente sofrido e com o qual nos solidarizamos, pois nos sentimos ali representados em nossas fraquezas. E, como bônus, leremos uma obra soberba e atual. Realmente: se este livro não merecer a nossa mochila, nenhum mais merecerá.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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