(20/11/20)
Você não deve conhecer, leitor/leitora, porque não é do seu tempo, na verdade sequer é do meu tempo, mas havia ou há uma música do canto litúrgico da igreja Católica intitulada Com minha mãe estarei, que tem como estribilho (ou refrão) “No céu, no céu/ Com minha mãe estarei”, sendo que “mãe” aqui refere-se a Nossa Senhora, e “céu” a céu mesmo, aquele lugar post-mortem destinado aos eleitos que seguiram os Dez Mandamentos, que praticaram boas ações na Terra, que foram justos e corretos etc. – vetado portanto a bolsonaristas, terraplanistas, fundamentalistas, corruptos, fascistas, negacionistas e congêneres.
Mas eu, desde sempre, associei “mĂŁe” nĂŁo Ă MĂŁe de Deus, mas Ă minha prĂłpria, dona Geni, uma das melhores pessoas que conheci atĂ© hoje, e entĂŁo, quando evoco esse canto, penso que, quando morrer – e espero, sinceramente que esse acontecimento tarde bastante – irei me reencontrar com ela no cĂ©u; e, nĂŁo sĂł com ela, mas com aqueles com quem partilhei momentos inesquecĂveis, e que já se foram, infelizmente de forma precoce, meu pai (seu SebastiĂŁo), meu irmĂŁo (CĂ©lio), meu sobrinho (Daniel) e – aqui ouso contrabandear – todos os meus gatos (Federico, Sassy, Oliver, Ignácio, Romeu, JoĂŁo, Ronrom, PelĂ©, Pelezinha, Vanderlei, VanderlĂ©ia, e tantos e tantos outros) e atĂ© mesmo um cachorro, o Ăşnico que tive na vida, Joli.
Neste céu que imagino, as pessoas mantêm a mesma idade com que morreram, e, claro, no começo pode parecer estranho, talvez eu esteja mais idoso que meus pais, certamente estarei mais velho que meu irmão e meu sobrinho, mas isso torna-se vantagem, porque assim poderei expressar corretamente o tamanho da minha admiração e a extensão do meu amor por eles – e que talvez, por incompetência afetiva, não tenha sido devidamente evidenciada por mim à época.
E para vocĂŞ que está aĂ, ironicamente pensando, quem Ă© este Luiz Ruffato que acha que, ao morrer, irá para o cĂ©u – se cĂ©u existir –, eis minha resposta, hipĂłcrita leitor/leitora: deixe-me sonhar acordado neste pequeno espaço, Ăşnico consolo que me resta neste mundo desesperançado.
Luz na escuridĂŁo
Carol Rodrigues, autora de Sem vista para o mar, IlhĂłs e O melindre nos dentes da besta: “Tenho trabalhado numa novela, a voz Ă© a cabeça de uma criança nos anos noventa, processando as relações com coisas, pessoas e bichos, entre os escândalos e crimes tĂŁo estranhos da dĂ©cada. Tem algo de violĂŞncia, mas tambĂ©m de humor, de um certo ridĂculo de classe-mĂ©dia, de um cristianismo desajeitado. Esse texto tem mais memĂłria do que os meus outros, entĂŁo Ă© um processo novo. NĂŁo sei quando fica pronta para publicar, acho que vĂŁo ainda vários meses de trabalho”.
Parachoque de caminhĂŁo
“Será que existe na vida desilusão maior do que conseguir aquilo que se buscava?”
Robert Louis Stevenson (1850-1894)Â
Antologia pessoal da poesia brasileira
Mário de Andrade
(São Paulo, SP, 1893 – São Paulo, SP, 1945)
Descobrimento
Abancado Ă escrivaninha em SĂŁo Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetĂŁo senti um friĂşme por dentro.
Fiquei trĂŞmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
[muito longe de mim,
Na escuridĂŁo ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos
[olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem Ă© brasileiro que nem eu.
(ClĂŁ do jabuti, 1927)