Caríssimo (a) leitor (a), a você que acompanhou os textos publicados neste espaço ao longo do último ano agradeço tanta gentileza e generosidade, que certamente nem mereço. Agradeço porque esta é minha última participação aqui – e nesta ocasião não posso deixar de citar também minha dívida para com meu amigo querido, Rogério Pereira, editor heroico deste hebdomadário chamado Rascunho, que já é parte da história da literatura brasileira. Ao invés de uma carta de despedida, com explicações e justificativas, que seria longa e desinteressante, e por isso mesmo aborrecida, faço minhas as palavras do autor do Eclesiastes, obra escrita em hebraico no quarto ou terceiro século antes de Cristo, um dos vários volumes que formam a Bíblia, o livro mais conhecido e menos compreendido da História, como afirma Frei Betto. O que se segue é o capítulo 3, versículos 1 a 8, na versão de João Ferreira de Almeida.
“Para tudo há um tempo determinado;
Há um tempo para toda atividade debaixo dos céus:
Tempo para nascer e tempo para morrer;
Tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou;
Tempo para matar e tempo para curar;
Tempo para derrubar e tempo para construir;
Tempo para chorar e tempo para rir;
Tempo para lamentar e tempo para dançar;
Tempo para jogar fora pedras e tempo para ajuntar pedras;
Tempo para abraçar e tempo para evitar os abraços;
Tempo para procurar e tempo para dar por perdido;
Tempo para guardar e tempo para jogar fora;
Tempo para rasgar e tempo para costurar;
Tempo para ficar calado e tempo para falar;
Tempo para amar e tempo para odiar;
Tempo para guerra e tempo para paz.
O que é que um trabalhador ganha com todo o seu esforço?
Vi a ocupação que Deus deu aos filhos dos homens para mantê-los ocupados.
Ele fez tudo belo a seu tempo.
Pôs até mesmo eternidade no coração deles;
no entanto, a humanidade nunca compreenderá plenamente o trabalho do verdadeiro Deus.
Concluí que, para eles, não há nada melhor do que se alegrar e fazer o bem durante a sua vida,
e também que todos comam e bebam, e desfrutem dos resultados de todo o seu trabalho árduo.
É a dádiva de Deus.
Entendi que tudo o que o verdadeiro Deus faz durará para sempre.
Não há nada que possa ser acrescentado e não há nada que possa ser tirado.
O verdadeiro Deus fez as coisas desse modo, para que as pessoas o temessem.
O que acontece, já aconteceu; e o que existirá, já existiu.
Mas o verdadeiro Deus procura aquilo que se busca.
Também vi o seguinte debaixo do sol: no lugar da justiça havia maldade, e no lugar da retidão havia maldade.
Então eu disse no meu coração: ‘O verdadeiro Deus julgará tanto o justo como o mau, pois há um tempo para toda atividade e para toda ação’.
Eu também disse no meu coração que o verdadeiro Deus porá à prova os filhos dos homens e lhes mostrará que são como os animais,
pois o que acontece com os humanos também acontece com os animais: todos têm o mesmo fim.
Como morre um, assim morre o outro; e todos eles têm o mesmo espírito.
De modo que o homem não tem nenhuma superioridade sobre os animais; tudo é vão.
Todos irão para o mesmo lugar.
Todos eles vieram do pó e todos eles retornam ao pó.
Quem é que realmente sabe se o espírito dos humanos vai para cima ou se o espírito do animal desce para a terra?
E eu vi que não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho,
porque essa é a sua recompensa;
pois quem pode fazê-lo ver o que acontecerá depois que ele se for?”
Luz na escuridão
Luiz Ruffato, escritor:
“Estou encerrando um ciclo. Então, alguns livros, gestados antes e durante a pandemia, serão publicados em um curto período de tempo. Pela Editora Faria e Silva acaba de sair um livro de poemas, Manhãs de sabre, que reúne toda a minha brevíssima ‘obra poética’. Até o final do ano, serão lançados Ninguém em casa, pela Maralto Edições, volume de crônicas, e O escrivão Coimbra e outros contos, uma antologia de Machado de Assis, organizada e prefaciada por mim, pela Editora Carambaia. No início do ano que vem, participo das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna com dois textos em livros sobre o tema publicados pela Companhia das Letras e pela Editora Zouk, respectivamente, e com um longo ensaio intitulado A revista Verde, de Cataguases, pela Editora Autêntica. Ainda no primeiro semestre, lançarei Um deserto de estranhas veredas, entrevista sobre minha trajetória conduzida por Eloésio Paulo, acompanhada de fortuna crítica, publicada pela Maralto Edições. Por fim, acompanho as traduções que saem daqui até o início do ano: De mim já nem se lembra, na Argentina; Flores artificiais, em Israel; e O verão tardio, na Finlândia.”
Parachoque de caminhão
“Mesmo entre os homens mais nobres, uma vez que o eu ganha uma existência proeminente, torna-se algo mesquinho e pequeno.”
Elizabeth Gaskell (1810-1865)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Carlos Drummond de Andrade
(Itabira, MG, 1902 – Rio de Janeiro, RJ, 1987)
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(Poesias, 1942)