Texto escrito em parceria com MaĆra Lacerda
No campo da arte, uma poĆ©tica Ć© fruto do recorte de um olhar sobre o mundo. Uma vez estabelecida, traduz uma visĆ£o passĆvel de se expandir continuamente, em direção Ć totalidade do real. Em sentido lato, o vocĆ”bulo significa āsistema poĆ©tico de um escritor, um artista, uma Ć©poca, um paĆsā. Tal sistema Ć© depreendido no contexto de uma textura, na trama alcanƧada pelo diĆ”logo entre os elementos acima expostos, ademais de outro, ao qual o brasileiro Antonio Candido atribui papel essencial: o pĆŗblico.
Ao referir-se Ć literatura como tudo o que, em dada Ć©poca, se chama de literatura, o francĆŖs Antoine Compagnon corrobora a visĆ£o de que o pĆŗblico ā os que tomam a obra como fruição e estimulam sua produção ā serĆ” em Ćŗltima anĆ”lise quem reconhecerĆ” ou nĆ£o o lugar de tal obra Ć Ć©poca de sua elaboração. NĆ£o Ć© incomum, por outro lado, haver casos em que pĆŗblicos posteriores (o que implica circunstĆ¢ncias posteriores) concedam o lugar devido a obras incompreendidas ou ignoradas previamente. O Guesa, de SousĆ¢ndrade, e Ćrsula, de Maria Firmina Reis, sĆ£o eloquentes exemplos de tal situação.
No livro seminal Problemas da literatura infantil, CecĆlia Meireles mostra serem as crianƧas as responsĆ”veis por delimitar a literatura que desejam ler. A autora considera acertado, portanto, conceber tal produção a posteriori, isto Ć©, reconhecer como literatura para crianƧas e jovens aquilo que Ć© lido por elas com utilidade e prazer. Em marƧo de 2021, o artigo Ć livro para crianƧas? Mas Ć© literatura?, desta mesma coluna, discutiu o aspecto da utilidade, distinguindo livros com função de alfabetização, de transmissĆ£o de conhecimentos sociais ou cientĆficos e os livros cuja leitura traz, como razĆ£o de ser, o reconhecimento da própria humanidade, condição primordial da literatura, na visĆ£o de Jean-Paul Sartre e Antonio Candido. Assumida por ambos como āfator indispensĆ”vel de humanizaçãoā, a experiĆŖncia da literatura Ć© capaz de tornar tangĆvel o imaginĆ”rio.
Nesse diapasĆ£o, Bartolomeu Campos de Queirós encorpa um dos mais arrojados projetos de leitura literĆ”ria no paĆs, ao conceber o Manifesto para o Movimento por um Brasil LiterĆ”rio, em que um paĆs mais digno se anuncia na fruição da literatura, direito de e para todos. Na percepção do norte-americano Jerome Bruner, a literatura Ć© o discurso que, fora das amarras do factual, tem por finalidade reconsiderar aquilo que parece evidente. Nesse ponto, convergem os pensamentos de Bruner e de Umberto Eco: a literatura nĆ£o Ć© chave para qualquer enigma, mas um percurso a partilhar na busca de soluƧƵes para ele. Evidente que o quinhĆ£o do qual se toma posse Ć© o que estĆ” ao alcance das mĆ£os, no momento do encontro.
Neste caleidoscópio, lançamos o olhar com especial atenção para a literatura destinada aos públicos infantil e juvenil. Quem nos acompanha na coluna jÔ sabe que, a partir de dois lugares distintos porém complementares, a designer e a teórica buscam refletir sobre texto e imagem, sobre poética e materialidade na composição de objetos de leitura voltados, inicialmente, a crianças e jovens. Por demandarem constituição diversa do livro destinado a adultos, a colaboração de Peter Hunt mostra-se importante baliza para nossas reflexões. O pesquisador evidencia o papel crucial que ilustração e materialidade exercem na constituição do livro infantil e da concepção da literatura como experiência total, que possibilita uma relação sensorial entre sujeito e objeto. Os livros para crianças estão
no auge da vanguarda da relação palavra e imagem nas narrativas, em lugar da palavra simplesmente escrita. […] EstĆ£o entre os textos mais interessantes e experimentais no uso de tĆ©cnicas de multimĆdia, combinando palavra, imagem, forma e som.
A singularidade do viver adolescente, compreendendo uma parte ainda criança e outra jÔ adulta, é base para Marina Colasanti propor diverso ângulo para a percepção de uma literatura consumida por esse sujeito:
(…) a expressĆ£o āleitura juvenilā, nivelando aquilo que nĆ£o pode ser nivelado, seria um equĆvoco grave se nĆ£o trouxesse embutido dentro de si outro conceito: o de um leitor jovem nĆ£o por idade ou crescimento, mas em relação ao seu próprio percurso de leitura.
Antonio Ventura, professor, escritor e editor espanhol, corrobora a perspectiva de Marina na visĆ£o de āuma leitura juvenilā, isto Ć©, āuma forma de ler que tem a ver com esse momento ā a adolescĆŖnciaā. Tomando em consideração o carĆ”ter do discurso e respondendo Ć pergunta sobre a concepção prĆ©via do destinatĆ”rio da literatura, Nilma Lacerda, em Cartas do SĆ£o Francisco: conversas com Rilke Ć beira do rio, sustenta o ponto de vista de que āa literatura para crianƧas e jovens Ć© literatura, e ponto finalā. Ćtica e estĆ©tica vinculam-se, de forma estreita, na criação da obra de arte, independentemente de seu leitor implĆcito.
Se Adorno não sustenta inteiramente a impossibilidade de arte após Auschwitz, se Jella Lepman, a bibliotecÔria alemã de origem judia responsÔvel pela fundação do International Board on Books for Young People, acredita que livros para crianças e para jovens podem de, alguma forma, contribuir para a humanização do mundo; se, na esteira do colombiano Fernando Cruz Kronfly, a literatura como experiência partilhada com as novas gerações atende ao desejo de que não venham a ser da maneira como nós, adultos, nos vemos em nossas sombras perversas e destrutivas; se essas se mostram igualmente nossas convicções, que rumo tomar nas encruzilhadas contemporâneas?
Menos que refĆŗgio ou intervenção, a literatura ergue-se como possibilidade de nominação do impossĆvel. Sensibilizar as pessoas para essa potĆŖncia e essa necessidade Ć© o possĆvel de nossa ação. Se formar leitores e leitoras de literatura nada tem a ver com cruzada, tampouco Ć© atitude vĆ£. Se nĆ£o se pode assegurar benefĆcio real para o humano com o acesso maciƧo de jovens e crianƧas aos bens de leitura, pouco haverĆ” a esperar da ausĆŖncia de tal contato. Intermediar a relação entre esses sujeitos e obras que, efetivamente, desvelem as aparĆŖncias, afigura-se como atitude sensata e desejĆ”vel. Que sugestƵes deixar, portanto, em relação ao tema e contribuição ao percurso?
Alguma ousadia às livrarias na exposição mesclada de obras de literatura, com destaque a livros do movimento crossover, que dilui as fronteiras tradicionais do público leitor e se destina a uma audiência diversificada e intergeracional. Nas escolas, menos temor em fugir às listas e às interpretações corriqueiras e o necessÔrio ânimo para buscar experiências significativas de leitura, em atenção aos próprios e urgentes questionamentos contemporâneos. Teóricos cada vez mais dispostos a uma desterritorialização da literatura serão também bem-vindos ao grupo. Esses caminhos funcionam como autêntica convocatória ao público para exercer de forma corajosa o trabalho de borrar fronteiras e provocar autores.