🔓 Caleidoscópio: uma textura

Os caminhos para exercer de forma corajosa o trabalho de borrar fronteiras e provocar autores
Ilustração: Maíra Lacerda
01/03/2023

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

No campo da arte, uma poética é fruto do recorte de um olhar sobre o mundo. Uma vez estabelecida, traduz uma visão passível de se expandir continuamente, em direção à totalidade do real. Em sentido lato, o vocábulo significa “sistema poético de um escritor, um artista, uma época, um país”. Tal sistema é depreendido no contexto de uma textura, na trama alcançada pelo diálogo entre os elementos acima expostos, ademais de outro, ao qual o brasileiro Antonio Candido atribui papel essencial: o público.

Ao referir-se à literatura como tudo o que, em dada época, se chama de literatura, o francês Antoine Compagnon corrobora a visão de que o público — os que tomam a obra como fruição e estimulam sua produção — será em última análise quem reconhecerá ou não o lugar de tal obra à época de sua elaboração. Não é incomum, por outro lado, haver casos em que públicos posteriores (o que implica circunstâncias posteriores) concedam o lugar devido a obras incompreendidas ou ignoradas previamente. O Guesa, de Sousândrade, e Úrsula, de Maria Firmina Reis, são eloquentes exemplos de tal situação.

No livro seminal Problemas da literatura infantil, Cecília Meireles mostra serem as crianças as responsáveis por delimitar a literatura que desejam ler. A autora considera acertado, portanto, conceber tal produção a posteriori, isto é, reconhecer como literatura para crianças e jovens aquilo que é lido por elas com utilidade e prazer. Em março de 2021, o artigo É livro para crianças? Mas é literatura?, desta mesma coluna, discutiu o aspecto da utilidade, distinguindo livros com função de alfabetização, de transmissão de conhecimentos sociais ou científicos e os livros cuja leitura traz, como razão de ser, o reconhecimento da própria humanidade, condição primordial da literatura, na visão de Jean-Paul Sartre e Antonio Candido. Assumida por ambos como “fator indispensável de humanização”, a experiência da literatura é capaz de tornar tangível o imaginário.

Nesse diapasão, Bartolomeu Campos de Queirós encorpa um dos mais arrojados projetos de leitura literária no país, ao conceber o Manifesto para o Movimento por um Brasil Literário, em que um país mais digno se anuncia na fruição da literatura, direito de e para todos. Na percepção do norte-americano Jerome Bruner, a literatura é o discurso que, fora das amarras do factual, tem por finalidade reconsiderar aquilo que parece evidente. Nesse ponto, convergem os pensamentos de Bruner e de Umberto Eco: a literatura não é chave para qualquer enigma, mas um percurso a partilhar na busca de soluções para ele. Evidente que o quinhão do qual se toma posse é o que está ao alcance das mãos, no momento do encontro.

Neste caleidoscópio, lançamos o olhar com especial atenção para a literatura destinada aos públicos infantil e juvenil. Quem nos acompanha na coluna já sabe que, a partir de dois lugares distintos porém complementares, a designer e a teórica buscam refletir sobre texto e imagem, sobre poética e materialidade na composição de objetos de leitura voltados, inicialmente, a crianças e jovens. Por demandarem constituição diversa do livro destinado a adultos, a colaboração de Peter Hunt mostra-se importante baliza para nossas reflexões. O pesquisador evidencia o papel crucial que ilustração e materialidade exercem na constituição do livro infantil e da concepção da literatura como experiência total, que possibilita uma relação sensorial entre sujeito e objeto. Os livros para crianças estão

no auge da vanguarda da relação palavra e imagem nas narrativas, em lugar da palavra simplesmente escrita. […] Estão entre os textos mais interessantes e experimentais no uso de técnicas de multimídia, combinando palavra, imagem, forma e som.

A singularidade do viver adolescente, compreendendo uma parte ainda criança e outra já adulta, é base para Marina Colasanti propor diverso ângulo para a percepção de uma literatura consumida por esse sujeito:

(…) a expressão “leitura juvenil”, nivelando aquilo que não pode ser nivelado, seria um equívoco grave se não trouxesse embutido dentro de si outro conceito: o de um leitor jovem não por idade ou crescimento, mas em relação ao seu próprio percurso de leitura.

Antonio Ventura, professor, escritor e editor espanhol, corrobora a perspectiva de Marina na visão de “uma leitura juvenil”, isto é, “uma forma de ler que tem a ver com esse momento — a adolescência”. Tomando em consideração o caráter do discurso e respondendo à pergunta sobre a concepção prévia do destinatário da literatura, Nilma Lacerda, em Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio, sustenta o ponto de vista de que “a literatura para crianças e jovens é literatura, e ponto final”. Ética e estética vinculam-se, de forma estreita, na criação da obra de arte, independentemente de seu leitor implícito.

Se Adorno não sustenta inteiramente a impossibilidade de arte após Auschwitz, se Jella Lepman, a bibliotecária alemã de origem judia responsável pela fundação do International Board on Books for Young People, acredita que livros para crianças e para jovens podem de, alguma forma, contribuir para a humanização do mundo; se, na esteira do colombiano Fernando Cruz Kronfly, a literatura como experiência partilhada com as novas gerações atende ao desejo de que não venham a ser da maneira como nós, adultos, nos vemos em nossas sombras perversas e destrutivas; se essas se mostram igualmente nossas convicções, que rumo tomar nas encruzilhadas contemporâneas?

Menos que refúgio ou intervenção, a literatura ergue-se como possibilidade de nominação do impossível. Sensibilizar as pessoas para essa potência e essa necessidade é o possível de nossa ação. Se formar leitores e leitoras de literatura nada tem a ver com cruzada, tampouco é atitude vã. Se não se pode assegurar benefício real para o humano com o acesso maciço de jovens e crianças aos bens de leitura, pouco haverá a esperar da ausência de tal contato. Intermediar a relação entre esses sujeitos e obras que, efetivamente, desvelem as aparências, afigura-se como atitude sensata e desejável. Que sugestões deixar, portanto, em relação ao tema e contribuição ao percurso?

Alguma ousadia às livrarias na exposição mesclada de obras de literatura, com destaque a livros do movimento crossover, que dilui as fronteiras tradicionais do público leitor e se destina a uma audiência diversificada e intergeracional. Nas escolas, menos temor em fugir às listas e às interpretações corriqueiras e o necessário ânimo para buscar experiências significativas de leitura, em atenção aos próprios e urgentes questionamentos contemporâneos. Teóricos cada vez mais dispostos a uma desterritorialização da literatura serão também bem-vindos ao grupo. Esses caminhos funcionam como autêntica convocatória ao público para exercer de forma corajosa o trabalho de borrar fronteiras e provocar autores.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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