Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
O objetivo desta coluna esteve claro, desde seu início. Apesar de o campo da literatura para crianças e jovens estar solidificado em termos de produção, reconhecimento e estudos teóricos, sua presença no interesse acadêmico e na divulgação midiática apresenta limites claros. É raro que, em um artigo sobre produção contemporânea de literatura brasileira, possamos encontrar citados lado a lado, por exemplo, Ciça Fittipaldi e Mariana Salomão Carrara, Roger Mello e Micheliny Verunschk. Com a delimitação entre os campos e pouca comunicação entre eles, perdemos todos os que estudam ou fruem literatura.
A partir de seus saberes e exercícios profissionais predominantes, uma designer e uma crítica literária buscariam considerar o livro concebido para crianças e jovens como um produto íntegro, na articulação entre texto verbal e texto visual, ou de composição apenas imagética ou verbal. O leitor implícito dessa produção não seria afastado da experiência literária, dada na medida de seu alcance leitor, como acontece igualmente com a produção adulta. Um livro literário para a infância ou para a juventude não é menor ou menos significativo que um livro literário para o adulto e uma história da literatura, para ser completa, deverá considerar ambas as produções.
Caleidoscópio pareceu a denominação mais adequada ao projeto, na alusão à beleza expandida, fruto de fragmentação, e da capacidade da recriação de nova totalidade. Mas a opção se fez preceder de outras possibilidades: sementes, caracol, girassóis. Caracol foi uma ideia bem cotada. Não há criança ou adulto sensível que não se deixe fascinar pelo caracol, por essa fantástica possibilidade de carregar a própria casa às costas e nela se recolher ao menor sinal de perigo. E tem ainda o lastro, lista viscosa e brilhante, rastro singular assinalando o caminho. Em Kew Gardens, o caracol fornece inusitada perspectiva narrativa a Virginia Woolf. Francis Ponge, atento à emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam, é evocado por Bernardo Carvalho, em Nove noites:
… Cãmtwyon passou a ser, para mim, o rastro do caracol: não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre aqui. A imagem me fez lembrar um texto de Francis Ponge sobre os caracóis: “Aceita-se como tu és. De acordo com os teus vícios. Na proporção da tua medida”.
A medida da literatura está em reconhecer alteridades, em ofertar uma potência linguística para expressão, na manifestação de si e do outro, em representações que nos aproximam do que é estranho, inclusive do estranho em nós. Já foi abordada nesta coluna a importância do caleidoscópio em uma pedagogia da literatura com foco na compreensão, na formação de leitores e na ausência de uma fronteira traçada entre idades e fruições. O equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida e Fernando de Castro Lopes (a primeira autoria é de texto verbal, a segunda de texto visual), A margarida friorenta, da mesma autora e de Lila Figueiredo, O frio pode ser quente, de Jandira Mansur e Michele, são algumas produções dos anos 1980, cujo cerne está na descoberta da alteridade, da complexa potencialidade das experiências do mundo.
Eu sou cachorro, de Baek Heena, autora sul-coreana, é publicado em 2019 (2022, no Brasil) e a cuidada produção gráfica alterna esculturas, fotografia, intervenções sobre elas e grafismos. Entre o cotidiano do menino Dong-Dong e do cachorro Bolinha, o conceito de família é ressignificado, em interessante reflexão sobre pertencimento, com abordagem de fácil compreensão para qualquer criança, sobretudo para aquelas que têm em casa um “animal de estimação”, conceito também posto em análise. Um aspecto a reparar são os instigantes cortes cinematográficos na narrativa, em compatibilidade com o rico e intenso diálogo contemporâneo com imagens.
Somos cercados atualmente por tal abundância de imagens, que dois caminhos podem se abrir em decorrência disso: o alargamento ou a inibição do imaginário, o sujeito sendo conduzido a um universo de formas originais ou fixas. Confrontá-lo com a arte ou confortá-lo com o palatável são as ofertas em pauta. Oferecer escuta ou estereótipos. Conte-me mais, obra da argentina Yael Frankel, traz a conversa entre mãe e filha pequena, na qual o compromisso da primeira, em síntese da idade adulta em contraponto à idade da infância, é acolher a fala do outro em sua integridade. Sem restrição à via escolhida, margeando o poético mais radical, a conversa se inicia e prossegue de forma hospitaleira. A receptividade da mãe às afirmações da filha é própria de quem reconhece o valor de expressão do sonho mais desvairado para a construção do possível; o investimento da filha continua rumo ao sempre possível do pensamento e da linguagem. A ilustração, ousada e lírica, encarrega-se de traduzir tal perspectiva.
Nas obras citadas, o texto literário, tal qual o caracol, desliza, deixando rastro/lastro pelo caminho, em marca da experiência estética a permitir modificação de pontos de vista. O reconhecimento da alteridade, a apreciação do mundo pelo desvelar da poesia, a inferência da potência linguística para expressão do sujeito e reinvenção do real — características inerentes à experiência literária — deixam-se reconhecer nessas obras, desde o equilibrista que tece o rumo do próprio fio, a margarida que treme por falta de afeto, os contrários que mudam de posição conforme a perspectiva.
Por outro lado, se não é função da literatura fazer o mundo de outra maneira, mudar o curso da História, e cabe a ela tão somente narrar e poetizar o mundo, vertê-lo em perplexidade, náusea, anseio ou deslumbramento, é determinante sua função de memória do humano.
Nós também tivemos nossas memórias salgadas.
Os castelos de areia tinham ameias, torres das princesas e pontes de palitos de sorvete sobre as fossas que cavávamos em torno das muralhas. Tudo, mas tudo ruía quando alguma onda desavisada se aproximava sem nos pedir permissão.
Castelos de areia nunca viveram felizes para sempre.
As despretensiosas lembranças da infância não se desmancham ao aproximar da onda, e mostram-se, ao contrário, consistente argamassa existencial. A narrativa poética de Castelos de areia, de Márcia Leite e Odilon Moraes, desprende imagens vivas e simétricas, passíveis de compor um caleidoscópio vital. Nele, a passagem do tempo é vista como natural, capaz de trazer ganhos: Que bom que era. Que bom que foi. A voz da narradora se faz ouvir, e convida, em réplica imediata: Mas olha só este mar, que lindo…
Esses prismas por onde observar o real, essas linhas que o demarcam mas que não o contêm, os traços tênues a insinuar camadas não percebidas, a mudança de formas tão rápida que leva o olho à dúvida permanente acerca do que vê… Se fôssemos desenhar a palavra literatura, caleidoscópio não seria mesmo a melhor das imagens?