O fenĆ“meno Ć© global, mas habitamos neste território continente e Ć© dele que extraĆmos, dia após dia, a opressĆ£o da polĆtica neoliberal totalitĆ”ria que busca liquidar o movimento coletivo e a utopia que consegue vislumbrar uma sociedade melhor para a maioria da população.
Vivemos hoje em um movimento intolerĆ”vel que procura nos tirar a dinĆ¢mica, a dialĆ©tica da nossa história, querendo tornar irreversĆvel a ideia de que a utopia Ć© um sonho inĆŗtil e que o sentido da vida Ć© louvar o āmundo realā, rasteiro, marcado pelas convicƧƵes particularistas e fundamentalistas em detrimento do conhecimento cientĆfico e das liƧƵes da história. Desconstruir o horizonte utópico Ć© tarefa estratĆ©gica da opressĆ£o neoliberal.
Como nos ensina Marilena ChauĆ, em artigo publicado no blog A Terra Ć© Redonda (http://outraspalavras.net/author/aterraeredonda) em dezembro de 2019, Ć© preciso conceituar utopia:
Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.
O que temos observado e vivido no Brasil após a ruptura da legitimidade do mandato presidencial democraticamente eleito, e com ainda maior ĆŖnfase após a eleição do atual presidente da repĆŗblica, Ć© justamente o bombardeamento sistemĆ”tico e profundo de qualquer iniciativa da sociedade que vise Ć transformação da realidade torpe e violenta que vivemos. O contraponto dos atuais mandatĆ”rios aos direitos humanos, em todos os campos da ação polĆtica, Ć© a exaltação de polĆticas pĆŗblicas marcadas pela destruição dos seres humanos, afirmação que se torna literal nas aƧƵes genocidas frente Ć cruel pandemia. Se sempre estaremos marcados por uma história social violenta, excludente e humanamente perversa, hoje o cenĆ”rio Ć© de glorificação a todos esses atributos que atĆ© ontem parecia que repudiĆ”vamos, sobrepondo-os aos valores humanistas, democrĆ”ticos, inclusivos e igualitĆ”rios.
A polĆtica pĆŗblica hoje, ao expressar o mando dos atuais donos do poder, busca destruir a āprĆ”xis humanaā, termo utilizado por ChauĆ no artigo referido. Essa prĆ”xis, sob o signo da utopia, trabalha justamente sobre as contradiƧƵes apresentadas pelas incontĆ”veis fricƧƵes do mundo que vivemos, nĆ£o para lamentar sua existĆŖncia, mas para transformĆ”-las.
Essa ação polĆtica que procura impor o terraplanismo, que zomba da Constituição, que fomenta o genocĆdio sanitĆ”rio, utiliza-se de toda ordem de medidas para criar a imobilidade social, a paralisia individual e coletiva, o isolacionismo e fechamento do diĆ”logo pĆŗblico criativo e contraditório. Desprestigia-se, como polĆtica, o comum, a construção das comunidades de sujeitos onde contradiƧƵes sĆ£o trabalhadas pela ótica das normas legais e pela perspectiva democrĆ”tica. Como diz a palavra midiĆ”tica do momento, hĆ” o ācancelamentoā da polĆtica como instrumento de administração dos conflitos e a exaltação das soluƧƵes violentas e individuais. A meritocracia, o armamento desenfreado de camadas milicianas da sociedade, o fomento ao descrĆ©dito da ciĆŖncia e do conhecimento, todos eles bebem desta fonte e fomentam a crise civilizatória em curso.
Tudo parece planejado para a āqueda do cĆ©uā, como nos conta a sabedoria xamĆ¢nica de Davi Kopenawa no belĆssimo, assustador e utópico livro do mesmo nome (A queda do cĆ©u, Kapenawa e Albert, Companhia das Letras, 2015).
Se a ação da polĆtica do Estado brasileiro Ć© hoje a da desumanização, talvez possamos resumi-la assim, nĆ£o se cogita que ela nĆ£o se aplique a todas as Ć”reas da vida brasileira. Ela tambĆ©m nos atinge enquanto literatos, intelectuais, formadores de leitores, bibliotecĆ”rios, agentes culturais, entre tantos outros trabalhadores e fomentadores das artes e da cultura.
NĆ£o se trata apenas do desĆ¢nimo, da desesperanƧa que imobiliza e atinge tantos e tantas entre nós que constituĆmos historicamente os nĆŗcleos de resiliĆŖncia mais aguerridos contra todas as formas de totalitarismo. A guerra permanente entre a adoção da utopia como forma de vida e a distopia paralisante, nos faz correr o sĆ©rio risco de absorvermos as prĆ”xis daqueles que buscam nossa destruição, nossa desumanização. A que concretamente eu me refiro?
Podemos buscar exemplos e atitudes da absorção desta prĆ”xis nas diversas redes sociais, na imprensa, nos meios de comunicação e tambĆ©m nos projetos e programas institucionais do setor cultural e artĆstico. Dentre muitos, escolho apenas um aspecto pela importĆ¢ncia estratĆ©gica que ele representa: a falsa premissa da solução de problemas pela via do indivĆduo e o repĆŗdio e desqualificação da ação pĆŗblica e coletiva. Este aspecto Ć© estratĆ©gico porque nĆ£o se trata de ação de um governo, mas Ć© ação permanente, insidiosamente fomentada pelo neoliberalismo desde o sĆ©culo passado, sentida atĆ© em governanƧas e lideranƧas progressistas, embora central e explicito no atual governo negacionista.
Ilustro este raciocĆnio com um trecho de uma entrevista com um intelectual e escritor admirĆ”vel, Alberto Manguel, autor instigante e sofisticado, dentre inĆŗmeras obras, de uma das melhores histórias da leitura que conheƧo. Com o que me deparo na entrevista que o escritor concedeu a Ricardo Viel na tambĆ©m excelente revista Quatro cinco um (n. 42, p.28, fevereiro/2021)?
O entrevistador pergunta a Manguel se acredita em āplanos de leitura, em polĆticas pĆŗblicas de leituraā. Ao responder, ele parte de um conceito que Ć© aceito por muitos especialistas em leitura, e que eu particularmente compartilho, a de que ler Ć© um ato difĆcil e cuja construção Ć© lenta. Manguel contrapƵe isto Ć nossa conhecida sociedade do espetĆ”culo, efĆŖmera, imediatista e afirma:
VocĆŖ nĆ£o vai vender um produto dizendo: isto Ć© difĆcil e lento. NinguĆ©m vai comprar. EntĆ£o, os programas de fomento Ć leitura sĆ£o hipócritas (…) porque estĆ£o propondo uma atividade que todo o resto da sociedade contradiz.
Mas o que mais impressiona Ć© a continuidade Ć pergunta do entrevistador que o questiona o que se pode fazer, afinal. E ele responde:
Bom, podemos talvez dar o exemplo da paixão pela leitura. Um professor, uma professora, um pai que é apaixonado por ler talvez consigam transmitir essa paixão para os mais jovens.
Notem que os exemplos são individuais, um professor, um pai, nunca a escola, a comunidade, a biblioteca, as ações que resultem do coletivo, da prÔxis humana que se alinha pela utopia, como nos alerta Chauà no artigo citado.
NĆ£o tomo Manguel para criticĆ”-lo individualmente, mas porque suas respostas encontram eco em muitos recĆ“nditos da cultura e das artes. Boas parcelas dos que estĆ£o nas trincheiras, nas entidades e instituiƧƵes da escrita, da mĆŗsica, dos teatros, do cinema, das artes plĆ”sticas expressam esse raciocĆnio que considero estreito, limitado, que despreza a energia que somente uma visĆ£o utópica, coletiva e pĆŗblica, transformadora da realidade violenta e hostil, pode superar.
A resiliĆŖncia passa nos dias de hoje pela rejeição Ć s soluƧƵes individuais, do salve-se quem puder, e recuperar o sentido da utopia e da ação coletiva Ć© nĆ£o apenas um enorme desafio, mas a possibilidade de reconstrução da necessĆ”ria polĆtica pĆŗblica em prol do bem comum e da democracia que queremos. Para quem quer comeƧar a examinar o mundo por um olhar coletivo e plural, recomendo buscar as inĆŗmeras iniciativas de formação de leitores e de escritores que rolam nas margens de nossas cidades, como as bibliotecas comunitĆ”rias, os escritores e editoras que vivem nas periferias e grotƵes do nosso paĆs e tambĆ©m na boa parcela de nossas bibliotecas pĆŗblicas e escolas que tĆŖm professorado engajado pela educação formadora e inclusiva. LĆ” ainda Ć© possĆvel encontrar unidade, coletividade, escuta do outro, compartilhamento. Que aqueles que cultivam a utopia como desejo de transformação deste mundo bĆ”rbaro a que chegamos nunca esmoreƧam, ao contrĆ”rio, ganhem cada vez mais adeptos para que a āqueda do cĆ©uā nĆ£o aconteƧa jamais.