🔓 Brasil: desumanização e utopia

Como diz a palavra do momento, hoje há o “cancelamento” da política como instrumento de administração dos conflitos e a exaltação das soluções violentas
Ilustração: Matheus Vigliar
01/03/2021

O fenômeno é global, mas habitamos neste território continente e é dele que extraímos, dia após dia, a opressão da política neoliberal totalitária que busca liquidar o movimento coletivo e a utopia que consegue vislumbrar uma sociedade melhor para a maioria da população.

Vivemos hoje em um movimento intolerável que procura nos tirar a dinâmica, a dialética da nossa história, querendo tornar irreversível a ideia de que a utopia é um sonho inútil e que o sentido da vida é louvar o “mundo real”, rasteiro, marcado pelas convicções particularistas e fundamentalistas em detrimento do conhecimento científico e das lições da história. Desconstruir o horizonte utópico é tarefa estratégica da opressão neoliberal.

Como nos ensina Marilena Chauí, em artigo publicado no blog A Terra é Redonda (http://outraspalavras.net/author/aterraeredonda) em dezembro de 2019, é preciso conceituar utopia:

Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.

O que temos observado e vivido no Brasil após a ruptura da legitimidade do mandato presidencial democraticamente eleito, e com ainda maior ênfase após a eleição do atual presidente da república, é justamente o bombardeamento sistemático e profundo de qualquer iniciativa da sociedade que vise à transformação da realidade torpe e violenta que vivemos. O contraponto dos atuais mandatários aos direitos humanos, em todos os campos da ação política, é a exaltação de políticas públicas marcadas pela destruição dos seres humanos, afirmação que se torna literal nas ações genocidas frente à cruel pandemia. Se sempre estaremos marcados por uma história social violenta, excludente e humanamente perversa, hoje o cenário é de glorificação a todos esses atributos que até ontem parecia que repudiávamos, sobrepondo-os aos valores humanistas, democráticos, inclusivos e igualitários.

A política pública hoje, ao expressar o mando dos atuais donos do poder, busca destruir a “práxis humana”, termo utilizado por Chauí no artigo referido. Essa práxis, sob o signo da utopia, trabalha justamente sobre as contradições apresentadas pelas incontáveis fricções do mundo que vivemos, não para lamentar sua existência, mas para transformá-las.

Essa ação política que procura impor o terraplanismo, que zomba da Constituição, que fomenta o genocídio sanitário, utiliza-se de toda ordem de medidas para criar a imobilidade social, a paralisia individual e coletiva, o isolacionismo e fechamento do diálogo público criativo e contraditório. Desprestigia-se, como política, o comum, a construção das comunidades de sujeitos onde contradições são trabalhadas pela ótica das normas legais e pela perspectiva democrática. Como diz a palavra midiática do momento, há o “cancelamento” da política como instrumento de administração dos conflitos e a exaltação das soluções violentas e individuais. A meritocracia, o armamento desenfreado de camadas milicianas da sociedade, o fomento ao descrédito da ciência e do conhecimento, todos eles bebem desta fonte e fomentam a crise civilizatória em curso.

Tudo parece planejado para a “queda do céu”, como nos conta a sabedoria xamânica de Davi Kopenawa no belíssimo, assustador e utópico livro do mesmo nome (A queda do céu, Kapenawa e Albert, Companhia das Letras, 2015).

Se a ação da política do Estado brasileiro é hoje a da desumanização, talvez possamos resumi-la assim, não se cogita que ela não se aplique a todas as áreas da vida brasileira. Ela também nos atinge enquanto literatos, intelectuais, formadores de leitores, bibliotecários, agentes culturais, entre tantos outros trabalhadores e fomentadores das artes e da cultura.

Não se trata apenas do desânimo, da desesperança que imobiliza e atinge tantos e tantas entre nós que constituímos historicamente os núcleos de resiliência mais aguerridos contra todas as formas de totalitarismo. A guerra permanente entre a adoção da utopia como forma de vida e a distopia paralisante, nos faz correr o sério risco de absorvermos as práxis daqueles que buscam nossa destruição, nossa desumanização. A que concretamente eu me refiro?

Podemos buscar exemplos e atitudes da absorção desta práxis nas diversas redes sociais, na imprensa, nos meios de comunicação e também nos projetos e programas institucionais do setor cultural e artístico. Dentre muitos, escolho apenas um aspecto pela importância estratégica que ele representa: a falsa premissa da solução de problemas pela via do indivíduo e o repúdio e desqualificação da ação pública e coletiva. Este aspecto é estratégico porque não se trata de ação de um governo, mas é ação permanente, insidiosamente fomentada pelo neoliberalismo desde o século passado, sentida até em governanças e lideranças progressistas, embora central e explicito no atual governo negacionista.

Ilustro este raciocínio com um trecho de uma entrevista com um intelectual e escritor admirável, Alberto Manguel, autor instigante e sofisticado, dentre inúmeras obras, de uma das melhores histórias da leitura que conheço. Com o que me deparo na entrevista que o escritor concedeu a Ricardo Viel na também excelente revista Quatro cinco um (n. 42, p.28, fevereiro/2021)?

O entrevistador pergunta a Manguel se acredita em “planos de leitura, em políticas públicas de leitura”. Ao responder, ele parte de um conceito que é aceito por muitos especialistas em leitura, e que eu particularmente compartilho, a de que ler é um ato difícil e cuja construção é lenta. Manguel contrapõe isto à nossa conhecida sociedade do espetáculo, efêmera, imediatista e afirma:

Você não vai vender um produto dizendo: isto é difícil e lento. Ninguém vai comprar. Então, os programas de fomento à leitura são hipócritas (…) porque estão propondo uma atividade que todo o resto da sociedade contradiz.

Mas o que mais impressiona é a continuidade à pergunta do entrevistador que o questiona o que se pode fazer, afinal. E ele responde:

Bom, podemos talvez dar o exemplo da paixão pela leitura. Um professor, uma professora, um pai que é apaixonado por ler talvez consigam transmitir essa paixão para os mais jovens.

Notem que os exemplos são individuais, um professor, um pai, nunca a escola, a comunidade, a biblioteca, as ações que resultem do coletivo, da práxis humana que se alinha pela utopia, como nos alerta Chauí no artigo citado.

Não tomo Manguel para criticá-lo individualmente, mas porque suas respostas encontram eco em muitos recônditos da cultura e das artes. Boas parcelas dos que estão nas trincheiras, nas entidades e instituições da escrita, da música, dos teatros, do cinema, das artes plásticas expressam esse raciocínio que considero estreito, limitado, que despreza a energia que somente uma visão utópica, coletiva e pública, transformadora da realidade violenta e hostil, pode superar.

A resiliência passa nos dias de hoje pela rejeição às soluções individuais, do salve-se quem puder, e recuperar o sentido da utopia e da ação coletiva é não apenas um enorme desafio, mas a possibilidade de reconstrução da necessária política pública em prol do bem comum e da democracia que queremos. Para quem quer começar a examinar o mundo por um olhar coletivo e plural, recomendo buscar as inúmeras iniciativas de formação de leitores e de escritores que rolam nas margens de nossas cidades, como as bibliotecas comunitárias, os escritores e editoras que vivem nas periferias e grotões do nosso país e também na boa parcela de nossas bibliotecas públicas e escolas que têm professorado engajado pela educação formadora e inclusiva. Lá ainda é possível encontrar unidade, coletividade, escuta do outro, compartilhamento. Que aqueles que cultivam a utopia como desejo de transformação deste mundo bárbaro a que chegamos nunca esmoreçam, ao contrário, ganhem cada vez mais adeptos para que a “queda do céu” não aconteça jamais.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

Rascunho