🔓 Bartleby, o escriturário

Clássico de Herman Melville tem um dos finais mais perfeitos da literatura universal
Ilustração: Carolina Vigna
01/02/2023

1.
O poderoso Moby Dick, escrito em 1851, com o alucinado Capitão Ahab no comando do Pequod, deixou à sombra outros livros de Herman Melville que, por si sós, poderiam figurar no cânone. Não me refiro tanto às novelas de aventuras de seu período inicial, e que o fizeram famoso e com algum dinheiro. Falo de outros, escritos em “tom menor” e, dentre estes, estão Billy Bud e o Bartleby. O “tom menor”, entretanto, está também presente mesmo no Moby Dick, na figura do sensível Ishmael, o rapaz que conta a história do Capitão Ahab. Quero dizer: essa é uma vertente que, com olhos particulares, pode ser encontrada aqui e ali na obra do autor, ou, por inteiro, em Billy Bud. Por essas e outras causas, discute-se, mas esse é assunto que agora não vem ao caso, acerca do possível componente homossexual de Melville, em especial, na sua relação com Nathaniel Hawthorne.

2.
Bartleby, o escriturário, essa joia minimalista que se lê em duas horas, levou um subtítulo significativo: Uma história de Wall Street, com toda carga semântica que já possuía a afamada rua do dinheiro e das ações. Nessa rua, um pobre tão pobre que não tem onde dormir, pede para estender um colchonete no chão de um escritório de advocacia em que conseguiu um salvador emprego de escriturário, é uma extravagância criada por algum imaginativo ficcionista. Pois bem: existe esse pobre, se chama Bartleby, e o escritor é Melville. Ninguém sabe de onde veio Bartleby. Melville é daqueles escritores que privilegiam o momento presente e suas circunstâncias, sem aborrecer o leitor com longas digressões e pavorosos flashbacks. Tudo acontece a partir de uma situação crítica e dali só vai para frente.

3.
A história é contada pelo atarefado chefe do escritório, um advogado, que já tem três outros funcionários. Por um momento, podemos figurar uma situação: o advogado, na primeira vez em que dá uma tarefa a Bartleby, escuta uma voz não agressiva, suave até, que lhe responde: “Prefiro não fazer”. Como você agiria, na mesma situação? O inesperado levaria você pensar que se tratava de uma brincadeira de seu funcionário, um dito para descongelar o momento, mas isso seria demais, especialmente nas circunstâncias de uma séria hierarquia; depois, você pensaria ter escutado mal; depois, afastadas essas dúvidas, e com os prazos judiciários correndo, você adiaria a questão e encarregaria outro funcionário de realizar a tarefa, mas depois você voltaria a dar nova ordem a Bartleby, e a resposta é a mesma, “Prefiro não fazer”. Pronto. Ele fixa você com olhos cinzentos, calmos e opacos. Você pensaria ter empregado um louco, e a vontade seria de despedi-lo no ato, mas… mas algo fascina em Bartleby, superior a você. E a negativa não é contra você, nem contra o ambiente de trabalho, nem deriva de uma preguiça, nem da incompetência para realizar o mandado; é apenas um ato de exercício de liberdade, muito bonito, mas, às suas custas?

4.
Bartleby é a pessoa que não quer pensar, nem obedecer, nem mandar. Aos poucos, ele nada mais faz no escritório. Isso remete, inesperadamente, àqueles escritores que não escrevem. O catalão Enrique Vila-Matas publicou, em 2000, um livro em que trata dos escritores que, mesmo o sendo, não escrevem. Trata-se de uma obra de muito humor, na qual discorre sobre as diversas desculpas que usam para sabotarem a si mesmos, escolhendo, assim, o ineditismo. Uma espécie de “prefiro não escrever”. O título de Vila-Matas é inteligente e conotativo: Bartleby e companhia, publicado também no Brasil. Um bom consolo a quem está na mesma situação e pensa que é o único a sofrer desse mal.

5.
Pelo título de Melville, muitos acham que Bartleby é a personagem central. Engano: nesta novela, a situação crítica é, sim, a recusa de Bartleby. [Recordemos: a situação crítica ocorre quando acontece algo que não deveria acontecer; Bartleby, em vez de obedecer, recusa-se a isso]. Se sua recusa desencadeia a tensão, quem tem de ficar à conta com o problema, entretanto, é seu superior. Dado que a personagem central de um romance é aquela que mais tem a perder na história, então o advogado adquire essa centralidade. Bartleby, não: ele vive em sua invariável placidez, não evolui, não se questiona, não se altera. Este, portanto, é um caso raro, literariamente falando, em que há o deslocamento da tensão para uma personagem inesperada, o advogado — e eis um belo ensinamento técnico de seu autor.

6.
Mas quem é esse advogado, que conta a história em primeira pessoa? Sua autodefinição é: “…sou um homem que, desde a juventude, pensa que a melhor maneira de se viver é enfrentar tudo com tranquilidade. Por isso que, embora eu exerça uma profissão proverbialmente enérgica e tão agitada que, por vezes, chega às raias da desordem, nunca aceitei que nada pudesse perturbar a minha paz”. Esse conceito, claro, é menos uma descrição de si mesmo do que um desejo de conduzir-se assim. Digamos: o advogado é uma pessoa à beira do abismo; qualquer estremecimento da paz será capaz de tirar-lhe o chão. Em seu mundo ferozmente binário, só há lugar para a paz ou o caos. Estão postos os elementos para a pequena tragédia que lhe aconteceria com a negativa de Bartleby. Curioso é perceber o quanto a perturbação do chefe significa a constatação de que seu empregado, antes dele, já havia adquirido aquela serenidade que ele, o chefe, desejava para si mesmo. Em outras palavras: Bartleby lhe era humanamente superior. Aí radica a centralidade narrativa do chefe.

7.
O curso da narrativa apresenta um crescimento linear da tensão, com um índice sempre igual: não há um grande episódio, não há nada pontual que eleve as decorrências da situação crítica a picos de cordilheira. Há, sim, simples reiteração do “Prefiro não fazer”, que passa a agir como a tortura, dita chinesa, do pingo d’água sobre o crânio, que enlouquecia a vítima. O advogado, então, transita por diversas atitudes perante seu funcionário: ora quer dispensá-lo, ora procura entendê-lo em sua obstinação, assumindo até uma ação paternal, mas vencem a perplexidade e o êxtase. Nesses trâmites, ele evolui, teme tanto Bartleby e sua resposta, que não mais lhe questiona nada.

8.
O final é um dos mais perfeitos de qualquer novela que eu tenha lido; é uma suspensão tensa do seu conflito, que vem a ser a oposição entre a sanidade e a loucura, essa díade fantasmática que, de um modo ou outro, mais cedo ou mais tarde, nos assalta em nossa trilha existencial, a qual sempre desejamos que seja de paz e serenidade. Enfim: em muitos momentos, somos esse advogado. Por esta razão, Bartleby deve ir para nossa mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho