1.
O poderoso Moby Dick, escrito em 1851, com o alucinado CapitĂŁo Ahab no comando do Pequod, deixou Ă sombra outros livros de Herman Melville que, por si sĂłs, poderiam figurar no cânone. NĂŁo me refiro tanto Ă s novelas de aventuras de seu perĂodo inicial, e que o fizeram famoso e com algum dinheiro. Falo de outros, escritos em “tom menor” e, dentre estes, estĂŁo Billy Bud e o Bartleby. O “tom menor”, entretanto, está tambĂ©m presente mesmo no Moby Dick, na figura do sensĂvel Ishmael, o rapaz que conta a histĂłria do CapitĂŁo Ahab. Quero dizer: essa Ă© uma vertente que, com olhos particulares, pode ser encontrada aqui e ali na obra do autor, ou, por inteiro, em Billy Bud. Por essas e outras causas, discute-se, mas esse Ă© assunto que agora nĂŁo vem ao caso, acerca do possĂvel componente homossexual de Melville, em especial, na sua relação com Nathaniel Hawthorne.
2.
Bartleby, o escriturário, essa joia minimalista que se lĂŞ em duas horas, levou um subtĂtulo significativo: Uma histĂłria de Wall Street, com toda carga semântica que já possuĂa a afamada rua do dinheiro e das ações. Nessa rua, um pobre tĂŁo pobre que nĂŁo tem onde dormir, pede para estender um colchonete no chĂŁo de um escritĂłrio de advocacia em que conseguiu um salvador emprego de escriturário, Ă© uma extravagância criada por algum imaginativo ficcionista. Pois bem: existe esse pobre, se chama Bartleby, e o escritor Ă© Melville. NinguĂ©m sabe de onde veio Bartleby. Melville Ă© daqueles escritores que privilegiam o momento presente e suas circunstâncias, sem aborrecer o leitor com longas digressões e pavorosos flashbacks. Tudo acontece a partir de uma situação crĂtica e dali sĂł vai para frente.
3.
A histĂłria Ă© contada pelo atarefado chefe do escritĂłrio, um advogado, que já tem trĂŞs outros funcionários. Por um momento, podemos figurar uma situação: o advogado, na primeira vez em que dá uma tarefa a Bartleby, escuta uma voz nĂŁo agressiva, suave atĂ©, que lhe responde: “Prefiro nĂŁo fazer”. Como vocĂŞ agiria, na mesma situação? O inesperado levaria vocĂŞ pensar que se tratava de uma brincadeira de seu funcionário, um dito para descongelar o momento, mas isso seria demais, especialmente nas circunstâncias de uma sĂ©ria hierarquia; depois, vocĂŞ pensaria ter escutado mal; depois, afastadas essas dĂşvidas, e com os prazos judiciários correndo, vocĂŞ adiaria a questĂŁo e encarregaria outro funcionário de realizar a tarefa, mas depois vocĂŞ voltaria a dar nova ordem a Bartleby, e a resposta Ă© a mesma, “Prefiro nĂŁo fazer”. Pronto. Ele fixa vocĂŞ com olhos cinzentos, calmos e opacos. VocĂŞ pensaria ter empregado um louco, e a vontade seria de despedi-lo no ato, mas… mas algo fascina em Bartleby, superior a vocĂŞ. E a negativa nĂŁo Ă© contra vocĂŞ, nem contra o ambiente de trabalho, nem deriva de uma preguiça, nem da incompetĂŞncia para realizar o mandado; Ă© apenas um ato de exercĂcio de liberdade, muito bonito, mas, Ă s suas custas?
4.
Bartleby Ă© a pessoa que nĂŁo quer pensar, nem obedecer, nem mandar. Aos poucos, ele nada mais faz no escritĂłrio. Isso remete, inesperadamente, Ă queles escritores que nĂŁo escrevem. O catalĂŁo Enrique Vila-Matas publicou, em 2000, um livro em que trata dos escritores que, mesmo o sendo, nĂŁo escrevem. Trata-se de uma obra de muito humor, na qual discorre sobre as diversas desculpas que usam para sabotarem a si mesmos, escolhendo, assim, o ineditismo. Uma espĂ©cie de “prefiro nĂŁo escrever”. O tĂtulo de Vila-Matas Ă© inteligente e conotativo: Bartleby e companhia, publicado tambĂ©m no Brasil. Um bom consolo a quem está na mesma situação e pensa que Ă© o Ăşnico a sofrer desse mal.
5.
Pelo tĂtulo de Melville, muitos acham que Bartleby Ă© a personagem central. Engano: nesta novela, a situação crĂtica Ă©, sim, a recusa de Bartleby. [Recordemos: a situação crĂtica ocorre quando acontece algo que nĂŁo deveria acontecer; Bartleby, em vez de obedecer, recusa-se a isso]. Se sua recusa desencadeia a tensĂŁo, quem tem de ficar Ă conta com o problema, entretanto, Ă© seu superior. Dado que a personagem central de um romance Ă© aquela que mais tem a perder na histĂłria, entĂŁo o advogado adquire essa centralidade. Bartleby, nĂŁo: ele vive em sua invariável placidez, nĂŁo evolui, nĂŁo se questiona, nĂŁo se altera. Este, portanto, Ă© um caso raro, literariamente falando, em que há o deslocamento da tensĂŁo para uma personagem inesperada, o advogado — e eis um belo ensinamento tĂ©cnico de seu autor.
6.
Mas quem Ă© esse advogado, que conta a histĂłria em primeira pessoa? Sua autodefinição Ă©: “…sou um homem que, desde a juventude, pensa que a melhor maneira de se viver Ă© enfrentar tudo com tranquilidade. Por isso que, embora eu exerça uma profissĂŁo proverbialmente enĂ©rgica e tĂŁo agitada que, por vezes, chega Ă s raias da desordem, nunca aceitei que nada pudesse perturbar a minha paz”. Esse conceito, claro, Ă© menos uma descrição de si mesmo do que um desejo de conduzir-se assim. Digamos: o advogado Ă© uma pessoa Ă beira do abismo; qualquer estremecimento da paz será capaz de tirar-lhe o chĂŁo. Em seu mundo ferozmente binário, sĂł há lugar para a paz ou o caos. EstĂŁo postos os elementos para a pequena tragĂ©dia que lhe aconteceria com a negativa de Bartleby. Curioso Ă© perceber o quanto a perturbação do chefe significa a constatação de que seu empregado, antes dele, já havia adquirido aquela serenidade que ele, o chefe, desejava para si mesmo. Em outras palavras: Bartleby lhe era humanamente superior. AĂ radica a centralidade narrativa do chefe.
7.
O curso da narrativa apresenta um crescimento linear da tensĂŁo, com um Ăndice sempre igual: nĂŁo há um grande episĂłdio, nĂŁo há nada pontual que eleve as decorrĂŞncias da situação crĂtica a picos de cordilheira. Há, sim, simples reiteração do “Prefiro nĂŁo fazer”, que passa a agir como a tortura, dita chinesa, do pingo d’água sobre o crânio, que enlouquecia a vĂtima. O advogado, entĂŁo, transita por diversas atitudes perante seu funcionário: ora quer dispensá-lo, ora procura entendĂŞ-lo em sua obstinação, assumindo atĂ© uma ação paternal, mas vencem a perplexidade e o ĂŞxtase. Nesses trâmites, ele evolui, teme tanto Bartleby e sua resposta, que nĂŁo mais lhe questiona nada.
8.
O final Ă© um dos mais perfeitos de qualquer novela que eu tenha lido; Ă© uma suspensĂŁo tensa do seu conflito, que vem a ser a oposição entre a sanidade e a loucura, essa dĂade fantasmática que, de um modo ou outro, mais cedo ou mais tarde, nos assalta em nossa trilha existencial, a qual sempre desejamos que seja de paz e serenidade. Enfim: em muitos momentos, somos esse advogado. Por esta razĂŁo, Bartleby deve ir para nossa mochila.