🔓 As novas literaturas políticas

A literatura engajada não esgota o conceito de “literatura política”. Esta também pode ser a poesia amorosa ou a “poesia do quotidiano
As ideias de Marx impulsionaram o anticolonialismo
24/01/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

As relações entre literatura e política (no sentido amplo) são tão antigas como a literatura. É possível detetá-la, desde logo, na poesia oral desenvolvida por todos os povos antes da invenção da escrita. De igual modo, como negar essa estreita relação, por exemplo, na poesia épica praticada pelos gregos antigos? Por outro lado, a poesia de românticos e pós-românticos europeus, no século 19, era claramente panfletária. Tais relações foram levadas ao extremo pela maioria das correntes literárias do século 20, assumindo, em muitos casos, uma declarada feição político-partidária.

Recorde-se que, desde o fim do século 19 e início do século 20, as ideias revolucionárias e socialistas estavam em ascensão, tendo esse processo adquirido um impulso decisivo com o êxito das revoluções ocorridas no referido período, principalmente na Rússia, China e Cuba. As ideias libertárias, como a negritude (uma reação necessária ao racismo antinegro inventado e praticado pelas classes dominantes europeias na sequência do comércio esclavagista), floresciam. Após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo, o anticolonialismo, fortemente influenciado pelo marxismo, ganhou um impulso decisivo. O próprio feminismo, nos seus primórdios, bebeu dessa influência socialista e marxista. Naturalmente, a literatura do período em questão estava influenciada pelo espírito da época.

Fatores literários e extraliterários levaram ao esvaziamento e a uma reação violenta contra esse tipo de literatura, sobretudo entre as duas últimas décadas do século 20 e o início do século 21. Por um lado, o esgotamento criativo, que levou à perda de originalidade (no sentido comum e não etimológico do termo) da produção literária politicamente comprometida. Por outro, a crise das revoluções (transformadas em ditaduras ou autocracias), a degradação das utopias sociais e, por fim, a ascensão do neoliberalismo, a partir dos anos 80 do século passado, foram acompanhados por um discurso ufanista por parte dos novos vencedores, que não só proclamaram o fim da História, como a morte definitiva da literatura política.

Assim, nesse período, acirrou-se uma ideia pré-concebida: a literatura de temática política não é (?) literatura. O resultado, porém, não foi famoso: uma literatura insossa, sem carne, nervos, sangue ou esperma, de um cosmopolitismo artificial, pretensamente universal (global?), um formalismo e um experimentalismo inconsequentes e, nos piores casos, autoajuda, coaching e outros formatos literários nefastos.

A situação começa a mudar nos últimos anos, em várias partes do mundo. Dois fatores têm contribuído para isso: as lutas sociais e, sobretudo, identitárias contemporâneas, com as suas virtualidades e excessos, como acontece com todas as lutas (um deles a tendência para a crescente fragmentação), o que tem permitido a emergência de novos atores, temas e reivindicações; e a expansão da Internet, possibilitando que novos autores, alguns deles inclusive sem obra publicada, passassem a ser conhecidos, assim como uma ligação mais estreita entre escritores e leitores. Tudo isso está a levar os sistemas literários de todos os países, uns mais lentos do que outros, a adaptar-se a essa nova realidade, começando a publicar e promover novos autores fora do cânone tradicional (alguns deles, logicamente, tornar-se-ão o novo cânone).

Desse modo, a literatura política, seja qual for a melhor definição para essa realidade, está outra vez em alta. Mas com uma diferença em relação à realidade, por exemplo, do século 20: agora são várias literaturas políticas. De facto, o famoso “mercado” está cada vez mais interessado nas várias literaturas politicamente comprometidas ou literaturas de causas, da literatura negra à literatura feminista, gay, queer, bi, trans e outros apostos.

O referido interesse começa a resolver um problema real e efetivo: a falta de visibilidade de autores não-brancos, não-masculinos e não-hetero. Para conquistarem essa visibilidade, quanto a mim, os mesmos não precisam e muito menos devem ser exortados ou “orientados”, necessariamente, a escrever sobre temas negros ou de outros grupos étnicos discriminados, temas de género ou de orientação sexual. A verdadeira arte não se compadece com o dirigismo, seja ele qual for (político-partidário, social, estético ou mercadológico). Tem de ser, sempre, uma decisão pessoal do próprio artista ou autor.

De todo o modo, e por isso mesmo, tais escritores são também livres de escrever sobre temáticas que lhes digam diretamente respeito ou até com base nas suas experiências pessoais. Há, inclusive, conjunturas, como parece ser a atual, em que os mesmos têm todo o direito de, livremente, escrever para defender ou promover causas.

Na realidade, e evocando o início deste texto, toda a literatura é política. Para entendê-lo, é fundamental diferenciar a natureza política da literatura do seu eventual engajamento em prol de uma causa específica (político-partidária no século 20 e social ou identitária nos tempos atuais). Esse engajamento é legítimo, mas não esgota a natureza política intrínseca de toda a literatura, como atividade criativa dos seres humanos. Toda a literatura tem a ver com a condição humana, o que é radicalmente um ato político.

O caráter político da literatura não está apenas na letra dos textos. Se a literatura de protesto ou empenhada é explicitamente política, normalmente baseada ou apoiada em factos ou causas, como uma espécie de resposta ou posicionamento perante os acontecimentos, também pode sê-lo a literatura que simplesmente resulta de um “mal estar epocal”, não se alimentando, portanto, de acontecimentos ou situações políticas concretas.

A expressão “mal estar epocal” retirei-a de João Barrento, organizador de uma antologia de poesia política alemã do século 20, designada Outros tons de azul (Outro Modo, Lisboa, 2021). Para ele, a poesia pop norte-americana, a poesia satírico-grotesca de Günter Grass ou Peter Ruhmkorf, a “onda lírica” da antiga RDA ou a “poesia do quotidiano”, entre outros, também são literatura política. Na mesma linha, o professor e crítico angolano Francisco Soares considera que a poesia amorosa dos poetas angolanos da Geração de 80 também era uma reação à esgotada tradição da literatura revolucionária e político-partidária das gerações anteriores, logo, era literatura política. Tudo depende, pois, do contexto.

Termino com uma ressalva óbvia, mas imprescindível. Literatura é linguagem. Por conseguinte, a estética, associada explicitamente ou não à responsabilidade cívica, deve estar no centro das preocupações de qualquer escritor. A ressalva vale também para os críticos. Por vezes, alguns deles, ao analisarem obras que não escondem o seu viés político e mesmo empenhado, escolhem o caminho mais fácil: comentam unicamente esse viés, esquecendo-se de apreciar e valorizar as preocupações e o nível de realização estética dos autores.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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