* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da lĂngua portuguesa, em formação.
As relações entre literatura e polĂtica (no sentido amplo) sĂŁo tĂŁo antigas como a literatura. É possĂvel detetá-la, desde logo, na poesia oral desenvolvida por todos os povos antes da invenção da escrita. De igual modo, como negar essa estreita relação, por exemplo, na poesia Ă©pica praticada pelos gregos antigos? Por outro lado, a poesia de românticos e pĂłs-românticos europeus, no sĂ©culo 19, era claramente panfletária. Tais relações foram levadas ao extremo pela maioria das correntes literárias do sĂ©culo 20, assumindo, em muitos casos, uma declarada feição polĂtico-partidária.
Recorde-se que, desde o fim do sĂ©culo 19 e inĂcio do sĂ©culo 20, as ideias revolucionárias e socialistas estavam em ascensĂŁo, tendo esse processo adquirido um impulso decisivo com o ĂŞxito das revoluções ocorridas no referido perĂodo, principalmente na RĂşssia, China e Cuba. As ideias libertárias, como a negritude (uma reação necessária ao racismo antinegro inventado e praticado pelas classes dominantes europeias na sequĂŞncia do comĂ©rcio esclavagista), floresciam. ApĂłs a Segunda Guerra Mundial, sobretudo, o anticolonialismo, fortemente influenciado pelo marxismo, ganhou um impulso decisivo. O prĂłprio feminismo, nos seus primĂłrdios, bebeu dessa influĂŞncia socialista e marxista. Naturalmente, a literatura do perĂodo em questĂŁo estava influenciada pelo espĂrito da Ă©poca.
Fatores literários e extraliterários levaram ao esvaziamento e a uma reação violenta contra esse tipo de literatura, sobretudo entre as duas Ăşltimas dĂ©cadas do sĂ©culo 20 e o inĂcio do sĂ©culo 21. Por um lado, o esgotamento criativo, que levou Ă perda de originalidade (no sentido comum e nĂŁo etimolĂłgico do termo) da produção literária politicamente comprometida. Por outro, a crise das revoluções (transformadas em ditaduras ou autocracias), a degradação das utopias sociais e, por fim, a ascensĂŁo do neoliberalismo, a partir dos anos 80 do sĂ©culo passado, foram acompanhados por um discurso ufanista por parte dos novos vencedores, que nĂŁo sĂł proclamaram o fim da HistĂłria, como a morte definitiva da literatura polĂtica.
Assim, nesse perĂodo, acirrou-se uma ideia prĂ©-concebida: a literatura de temática polĂtica nĂŁo Ă© (?) literatura. O resultado, porĂ©m, nĂŁo foi famoso: uma literatura insossa, sem carne, nervos, sangue ou esperma, de um cosmopolitismo artificial, pretensamente universal (global?), um formalismo e um experimentalismo inconsequentes e, nos piores casos, autoajuda, coaching e outros formatos literários nefastos.
A situação começa a mudar nos Ăşltimos anos, em várias partes do mundo. Dois fatores tĂŞm contribuĂdo para isso: as lutas sociais e, sobretudo, identitárias contemporâneas, com as suas virtualidades e excessos, como acontece com todas as lutas (um deles a tendĂŞncia para a crescente fragmentação), o que tem permitido a emergĂŞncia de novos atores, temas e reivindicações; e a expansĂŁo da Internet, possibilitando que novos autores, alguns deles inclusive sem obra publicada, passassem a ser conhecidos, assim como uma ligação mais estreita entre escritores e leitores. Tudo isso está a levar os sistemas literários de todos os paĂses, uns mais lentos do que outros, a adaptar-se a essa nova realidade, começando a publicar e promover novos autores fora do cânone tradicional (alguns deles, logicamente, tornar-se-ĂŁo o novo cânone).
Desse modo, a literatura polĂtica, seja qual for a melhor definição para essa realidade, está outra vez em alta. Mas com uma diferença em relação Ă realidade, por exemplo, do sĂ©culo 20: agora sĂŁo várias literaturas polĂticas. De facto, o famoso “mercado” está cada vez mais interessado nas várias literaturas politicamente comprometidas ou literaturas de causas, da literatura negra Ă literatura feminista, gay, queer, bi, trans e outros apostos.
O referido interesse começa a resolver um problema real e efetivo: a falta de visibilidade de autores nĂŁo-brancos, nĂŁo-masculinos e nĂŁo-hetero. Para conquistarem essa visibilidade, quanto a mim, os mesmos nĂŁo precisam e muito menos devem ser exortados ou “orientados”, necessariamente, a escrever sobre temas negros ou de outros grupos Ă©tnicos discriminados, temas de gĂ©nero ou de orientação sexual. A verdadeira arte nĂŁo se compadece com o dirigismo, seja ele qual for (polĂtico-partidário, social, estĂ©tico ou mercadolĂłgico). Tem de ser, sempre, uma decisĂŁo pessoal do prĂłprio artista ou autor.
De todo o modo, e por isso mesmo, tais escritores são também livres de escrever sobre temáticas que lhes digam diretamente respeito ou até com base nas suas experiências pessoais. Há, inclusive, conjunturas, como parece ser a atual, em que os mesmos têm todo o direito de, livremente, escrever para defender ou promover causas.
Na realidade, e evocando o inĂcio deste texto, toda a literatura Ă© polĂtica. Para entendĂŞ-lo, Ă© fundamental diferenciar a natureza polĂtica da literatura do seu eventual engajamento em prol de uma causa especĂfica (polĂtico-partidária no sĂ©culo 20 e social ou identitária nos tempos atuais). Esse engajamento Ă© legĂtimo, mas nĂŁo esgota a natureza polĂtica intrĂnseca de toda a literatura, como atividade criativa dos seres humanos. Toda a literatura tem a ver com a condição humana, o que Ă© radicalmente um ato polĂtico.
O caráter polĂtico da literatura nĂŁo está apenas na letra dos textos. Se a literatura de protesto ou empenhada Ă© explicitamente polĂtica, normalmente baseada ou apoiada em factos ou causas, como uma espĂ©cie de resposta ou posicionamento perante os acontecimentos, tambĂ©m pode sĂŞ-lo a literatura que simplesmente resulta de um “mal estar epocal”, nĂŁo se alimentando, portanto, de acontecimentos ou situações polĂticas concretas.
A expressĂŁo “mal estar epocal” retirei-a de JoĂŁo Barrento, organizador de uma antologia de poesia polĂtica alemĂŁ do sĂ©culo 20, designada Outros tons de azul (Outro Modo, Lisboa, 2021). Para ele, a poesia pop norte-americana, a poesia satĂrico-grotesca de GĂĽnter Grass ou Peter Ruhmkorf, a “onda lĂrica” da antiga RDA ou a “poesia do quotidiano”, entre outros, tambĂ©m sĂŁo literatura polĂtica. Na mesma linha, o professor e crĂtico angolano Francisco Soares considera que a poesia amorosa dos poetas angolanos da Geração de 80 tambĂ©m era uma reação Ă esgotada tradição da literatura revolucionária e polĂtico-partidária das gerações anteriores, logo, era literatura polĂtica. Tudo depende, pois, do contexto.
Termino com uma ressalva Ăłbvia, mas imprescindĂvel. Literatura Ă© linguagem. Por conseguinte, a estĂ©tica, associada explicitamente ou nĂŁo Ă responsabilidade cĂvica, deve estar no centro das preocupações de qualquer escritor. A ressalva vale tambĂ©m para os crĂticos. Por vezes, alguns deles, ao analisarem obras que nĂŁo escondem o seu viĂ©s polĂtico e mesmo empenhado, escolhem o caminho mais fácil: comentam unicamente esse viĂ©s, esquecendo-se de apreciar e valorizar as preocupações e o nĂvel de realização estĂ©tica dos autores.