Conversa com Prisca Agustoni
1.
Carola: A gente se conheceu num evento em Juiz de Fora, na época eu tinha acabado de lançar Flores azuis, acho. Conversamos e fiquei com muita vontade de te ler. Desde então acompanho com entusiasmo teu trabalho, mas é mais que isso, sinto que às vezes, nas entrelinhas, caminho ao teu lado, ao lado das tuas palavras. E me emociono.
Prisca: Sim, Carola, me lembro bem. Foi muito emocionante te conhecer naquele dia. Lembro de ter voltado para casa aquela tarde com a convicção de querer mergulhar de cabeça na escrita em língua portuguesa (escrevo em outras 2 línguas e isso, apesar de ser muito rico, traz também alguns conflitos e negociações, principalmente no que diz respeito ao tempo que cada uma das línguas me exige, e ao espaço mental que cada uma ocupa). Foi uma linda tarde de sol, a casa estava iluminada. Lembro de ter pensado exatamente isso: Prisca, tem que se priorizar, tem que abrir janelas imensas de tempo na sua vida para escrever. Ponto final. Esse encontro contigo me deu mais força, inclusive porque naquela altura vivia dividida entre poesia, prosa, escrita acadêmica, família (já tinha os dois filhos, um bem pequeno). Acho que hoje consegui resolver melhor as várias pontas da minha trajetória, assentei melhor em algumas delas, os filhos cresceram um pouco, aprendi a resolver de forma mais prática o que é urgente e irrefutável, e a recusar o que não é essencial para a escrita. Acho que aprendi a me priorizar, e isso não é pouca coisa para uma mulher que tem filhos e emprego e quer acima de tudo se dedicar à escrita. Sua escrita me move para uma profunda identificação. Acho que tem a ver com o fato de partilharmos experiências de migração dentro das línguas e das culturas, e isso acaba forjando uma visão do mundo mais estilhaçada, mais complexa, talvez, mais opaca, menos uniforme. Não sei, mas sinto essa conexão com seu trabalho, que é fonte de inspiração e de força. Não sei se cheguei a te dizer isso alguma vez, mas é bom que possa fazê-lo agora…
Carola: Que alegria saber disso, fico muito feliz. Eu sinto esses encontros como uma força coletiva, ou mais especificamente, uma energia que flui em todas as direções e, na possibilidade do diálogo, a gente vai pensando aquilo que ainda não pensou ou ressignificando ideias anteriores. Acredito muito na potência desse pensar junto, ainda mais no caso das escritoras, nós que viemos de uma tradição tão masculina, em que o pensar com o outro ou a partir do outro era quase sempre em relação ao homem. Para mim, dialogar com outras mulheres tem sido um dos aspectos mais enriquecedores da minha experiência literária. E inclusive trazer para essa conversa assuntos que antes eram considerados “pequenos demais” para fazer parte do mundo literário, como por exemplo, como conciliar filhos, casa, emprego e literatura.
2.
Carola: Sempre achei que quando tivesse filhos eu falaria com eles em português, mas aí, quando a minha filha nasceu, veio a surpresa, era totalmente impossível falar com ela em outra língua que não fosse o espanhol, o espanhol que eu ouvi criança, o espanhol que a minha avó falava comigo, o espanhol das canções que minha avó cantava para mim. Naquele momento me dei conta que aquilo, aquele ritmo, aquelas palavras estavam gravadas em mim, eram parte do meu corpo, da história do meu corpo. E isso, o mais curioso, é algo completamente separado do fato de eu escrever literatura em português e isso (o português) ser o lugar onde eu me sinto em casa. Como se cada idioma estivesse num compartimento diferente. Com meus irmãos falamos num espanhol carioca, ou seja, um espanhol permeado de gírias em português. Agora que estou na Alemanha e um dos meus irmãos também mora aqui, falamos um espanhol carioca germânico, não sei onde isso vai parar (risos). Ah, quando eu falo com bichos e plantas, falo em espanhol (sem gírias). Me lembrei agora, eu tinha um cachorro quando morava no Rio, e sempre que saia para passear com ele falava em espanhol, as pessoas achavam engraçado, eu também, me sentia meio ridícula, mas não conseguia fazer de outra forma.
Prisca: Sim… viver entre as línguas gera essa mistura muito engraçada. Mas acho que é bem isso: a língua é corpo, é a pele do pensamento, é a maneira como recebemos e trocamos a percepção interior e exterior do mundo, e também como a gente filtra essas percepções através do pensamento. Determinada forma de organizar e estruturar pensamento & sentimento. Percebo esse funcionamento como uma via de mão dupla: a língua acaba trabalhando, em nós, uma sensibilidade, uma atitude sensível perante o mundo. E cada língua que nos habita e através da qual nos expressamos, é uma ampliação desse canal sensível, um canal a mais para conhecer o mundo e si mesmo. No meu caso, ocorre essa mistura sempre, porém como minha primeira língua do afeto e das relações com a família, na verdade, é um dialeto — que não sei escrever —, acredito que isso influenciou muito minha relação fluida com as línguas. Porque o italiano (oficialmente minha “língua materna”), acaba que não é a língua de berço. Essa primeira abordagem com a língua do afeto mais íntimo (nunca falo italiano com a família na Suíça) afetou meu instinto antropofágico com as línguas e minha capacidade de aquisição delas. Quando vivi em Genebra, falava francês como se tivesse nascido ali, e hoje escrevo poesia e narrativa em francês. Fui para Genebra para cursar a Faculdade de Letras e Filosofia, estudei língua e literaturas hispânicas, vivia praticamente 24h por dia em contato com amigos que falavam espanhol… Tinha 20 e poucos anos e já transitava entre o dialeto, o italiano da formação escolar, o francês (primeira língua estrangeira e primeira paixão, que aprendi com 8 anos), o espanhol, o alemão e o inglês na convivência entre amigos e afetos. O português foi essa margem que entrou a partir dos 25 anos e que nunca mais saiu. E que mudou minha rota, uma espécie de equinócio, uma deriva inesperada na minha trajetória, inclusive literária. Ao me mudar para o Brasil, em 2002, as línguas que ficaram mais presentes no dia a dia foram o italiano (até por conta do trabalho de professora de literatura italiana na universidade) e o português. Aos poucos, percebi o quanto sentia falta da coexistência simultânea de todas as línguas que sou. Era uma sensação física mesmo, como se estivesse deixando secar algo em mim. Em particular me doía o silenciamento do francês — que já não estava falando com ninguém, no Brasil, pois não o usava nem em sala de aula, nem em família. Foi nesse momento que decidi que minha forma de deixar essa língua viver, uma parte fundamental de mim (como se fosse um braço adormecido), ia ser através da escrita — se eu sou escritora, nada mais justo e natural que deixar essa língua florescer naquilo que me constitui. Desde então escrevo em francês, italiano e português, com algumas incursões no espanhol — afinal, foram 10 anos de vida só lendo autores hispânicos, convivendo com amigos latino-americanos que marcaram profundamente meu universo estético, afetivo, simbólico, e que em momentos até difíceis dessa etapa de vida, quando saí de casa aos 18 anos para morar sozinha numa cidade cosmopolita e me sustentar, foram minha tábua de salvação: as noites de violão tocando Violeta Parra, Silvio Rodrigues e Pablo Milanés, as conversas sobre a poesia negra cubana, a descoberta da obra de Alejandra Pizarnik, as festas tradicionais andinas dos queridos amigos peruanos, as tertúlias na livraria hispano-americana onde trabalhei por um longo período, as viagens para o Peru, o México, Cuba… Sinto profunda saudade desse mundo mais cosmopolita e de falar várias línguas ao mesmo tempo!
Carola: Você me fez lembrar das minhas vivências com o mundo hispânico, que aconteceu, curiosamente, quando eu vim morar na Alemanha pela primeira vez. Eu tinha 24 anos, e até então, com exceção dos livros (da literatura), o mundo em espanhol era um mundo da família. Mas quando fui estudar na Alemanha fiz muitos amigos colombianos, chilenos, argentinos, equatorianos, etc., e de repente aquele mundo se revelou num espaço do lado de fora, e foi algo muito lindo, descobrir que existiam outras pessoas que ouviam Violeta Parra, Silvio Rodrigues… Sempre acho curioso que isso tenha acontecido na Alemanha, de certa forma aponta para a pouca troca que há entre o Brasil e o resto da América Latina, é uma pena, porque temos tanto em comum, temos toda uma história colonial em comum. Mas é claro, esse sintoma é um resultado do próprio processo de colonização do continente e sua política pós-colonial.
3.
Carola: Gosto muito do livro da Sylvia Molloy Vivir entre lenguas, cito aqui um trecho que me parece a essência do que ela diz: “Siempre se escribe desde una ausencia: la elección de un idioma automáticamente significa el afantasmamiento del otro pero nunca su desaparición. Ese otro idioma en que el escritor no piensa, dice Roa Bastos, lo piensa a él”. Me pergunto, como se dá isso quando escrevemos literatura, eu sei que se escrevesse em espanhol eu seria outra escritora, por muito tempo achei que essa “outra escritora” era apenas uma possibilidade não vivida, mas agora suspeito que não, talvez ela tenha estado ali o tempo todo.
Prisca: Sim, te entendo. São reflexões que me atravessam constantemente. Penso muito nisso quando escrevo, hoje de forma consciente. A maneira como a língua bate entre meus dentes, ao falar em português, me devolve em parte os sonidos dos dialetos familiares, que hoje uso quando falo com minha mãe e meus irmãos — mas que receio perder, algum dia, já que só posso falar com eles, com ninguém mais. Já perdi minhas avôs e meu pai, três guardiões importantes dessas línguas orais. E eu vou falando cada vez menos nessas línguas que são como minha placenta. Por outro lado, quando escrevo, tenho presente em mim a cantilena desses dialetos e das outras línguas — a prosopopeia do francês, por exemplo, é algo que me habita profundamente, a ponto de eu reservar um tempinho, todo dia, para falar francês em casa, sozinha, em voz alta, só para poder me ouvir. Bizarro, não é? Mas é que amo a carnalidade das palavras, pronunciá-las. Sentir que giram em minha boca. Quando escrevo poesia em português, por exemplo, tenho consciência de que tento inserir a música do italiano, o corte rítmico das palavras italianas, secas, montalianas. Sem dúvidas, não seria a mesma escritora, nem a mesma pessoa, se não tivesse incorporado na minha escrita — e na minha vida — as línguas que são minhas boias de ancoragem. Agora, Carola, te pergunto: Você tem consciência dessa presença do espanhol na sua forma de escrever? Já pensou em escrever direto em espanhol ou alemão também? Pergunto isso porque para mim, a partir do momento que decidi assumir essas várias vozes — ou que elas resolveram se impor naquilo que tenho de mais precioso e íntimo que é minha escrita — foi um processo liberatório, como se minha existência como pessoa e como escritora se tornasse mais completa, mais densa e mais integrada no mundo. Hoje sou esse conjunto de línguas que ressoam concomitantemente, cada uma com sua especificidade. No meu último livro, O mundo mutilado, tem um poema no qual falo disso (e que já publiquei num livro em francês):
Porque sou outra em cada língua, /mudo de endereço // anjo, raposa, sereia, peixe-espada // porque é impossível escondê-los/ pois dormem todos comigo // levanto cedo / temendo que eles acordem/antes de mim / e comecem a brigar pela minha boca.
Carola: Sabe que a sua pergunta me atravessou de alguma forma? Comecei a pensar de maneira mais profunda sobre isso. Eu sempre disse, em entrevistas e para mim mesma, que nunca escreveria em outro idioma que não o português. Mas nunca pensei muito no porquê disso. Lembro que um dia eu comecei a escrever algo em espanhol e aquela escritora que eu vislumbrava ali me trazia imensa angústia. Hoje entendo que talvez a língua portuguesa tenha me protegido de muita coisa e de certos traumas da infância, como se ao aprender português eu tivesse criado uma espécie de lugar seguro. Penso, agora te escrevendo, pela primeira vez, que talvez a língua portuguesa tenha me salvado. Mas talvez tenha chegado a hora de enfrentar certos fantasmas e compreender o que eles são, ou que outras possibilidades eles trazem. Ah, achei linda a imagem, você caminhando pela casa e falando sozinha em francês!
Prisca: Agora está ficando mais difícil esse meu peregrinar solitário na casa falando em francês, pois tenho filha adolescente que está muito interessada no mundo do Oriente e me contagiou. Estamos juntas no desafio da língua coreana e estou gostando muito!
4.
Carola: Pensei agora num poema seu, que saiu na Revista Capitolina e faz parte do seu próximo livro, Mundo mutilado, que sai pela Quelônio. E que eu conheci no início deste ano quando você esteve aqui, na universidade. É um poema que me emociona das mais diferentes formas.
cette langue qui tue ma langue maternelle:
a língua inimiga entra
pelos ouvidos e escorre
até à aorta
ali espera e rosna
um cão que sabe
o estranho à espreita
atrás da porta
nessa língua feita cão
que ladra
e rói o osso
da língua morta
a operária húngara
escreve seu caderno
como uma Penélope,
mais uma,
ela própria no exílio
tecendo
sua mortalha:
Agota Kristof
espera
a volta da língua
sacrificada,
a certeza da escrita
como única casa
rascunho eterno
numa língua torta
Prisca: Sim, gosto muito desse poema, primeiramente porque a Agota Kristof é uma das autoras que leio e releio e cuja trajetória biográfica e literária mobiliza reflexões constantes. Ela expressou muito bem esse sentimento de estranhamento diante da nova língua — o francês que ela aprendeu, já adulta, quando chegou como refugiada na Suíça — como sendo uma língua inimiga, por rasurar a lembrança e o uso do húngaro, sua língua materna. E porque sua obra literária — sua permanência, como autora, dentro de uma tradição literária — se deu a partir do francês. A fricção que acontece entre as línguas que são corpos vivos, que se tocam, se esbarram, se abraçam, por vezes se rejeitam… me interessa muito observar esse fenômeno e entender como ocorre nos outros. Me ajuda a entender meus movimentos. Já tive momentos de recusa momentânea do português — uma relação de paixão e ódio, talvez — quando, num momento difícil da minha vida, já no Brasil, percebi que estava usando só essa língua com os filhos e comigo mesma, por ser engolida pelo ritmo frenético de vida do cotidiano, que não deixava muito espaço para a pausa e a lentidão de outra língua em gestação, no interior da família. Me senti sufocar debaixo de uma onda gigantesca da qual não conseguia emergir. Se não tomasse cuidado, me tornaria pela primeira vez na vida um ser monolíngue. Isso me apavorou. Me senti amputada, sabe?, foi um momento estranho, não esperava sentir isso. Me senti furtada de uma parte fundamental de mim, num momento em que minha vida no país estava deslanchando. Minhas asas estavam murchando. Acho que é um sentimento que experimentam muitos dos que migram, essa ferida. Eu senti esse corte com intensidade, e em algum momento começou a sangrar. Mas foi algo que me fez bem, percebê-lo, quero dizer, porque depois veio a consciência de que precisava assumir plenamente essas línguas, esses mundos. A literatura me ajudaria a abrir minhas asas para o mundo. No livro O mundo mutilado deixei isso mais explícito, e é o que pretendo fazer daqui em diante: explicitar essa pluralidade, esse português contaminado, esse italiano contaminado, essa poesia contaminada que é a minha vida. Você se sentiu em algum momento furtada de algo, de uma parte da sua vida, por conta dessas idas e vindas entre as línguas?
Carola: Sim, sempre. Eu nasci em espanhol, aos três anos (quando cheguei ao Brasil) comecei a aprender o português, mas fui alfabetizada em inglês (o que é uma loucura) e logo depois, aos oito anos entrei para o colégio alemão. Eu me sentia pertencente a nada e a lugar nenhum. Mas a origem desse sentimento não está aí, porque eu podia ter passado por tudo isso de uma forma muito feliz. Acho que o problema vem de uma primeira ruptura que foi traumática, a vinda para o Brasil, no sentido que foi uma vinda que carregava toda uma série de acontecimentos traumáticos (e também fim de um sonho) de um país. Hoje eu entendo o quanto essa ruptura ficou marcada em mim, no meu corpo, na minha sensação de não pertencimento. De certa maneira, todos os meus livros têm sido uma forma de recontar e reescrever essa história. Então há algo que me foi tirado, mas ao mesmo tempo trata-se de algo que eu ganhei, a possibilidade e a necessidade da escrita. Um aspecto bonito de ressignificar os traumas é a chance de transformar a falta (e a morte) em potência, em vida.
5.
Carola: Na conversa com o Itamar Vieira Junior ele disse que precisava voltar para casa para poder escrever, depois me perguntou como era isso pra mim e eu respondi que no meu caso escrever era voltar para casa. E para você, como funciona essa relação casa-escrita?
Prisca: Então, a partir do momento em que tomei consciência da falta das outras línguas, isto é, a partir do momento em que entendi que eu sou essa multiplicidade de línguas e lugares, que dependo da existência e vitalidade delas para me sentir plena, e que depende de mim — e não do mundo ao redor — manter acesa a chama dessa coexistência, relaxei. Relaxei sobre onde viver, sobre onde é que realmente me sinto “em casa”. Escolhi a casa onde moro — em Juiz de Fora, um cantinho que amo profundamente — como sendo minha nau. Provisória mas sossegada. Aqui é onde tenho hoje as condições concretas de fazer meu mundo girar. Tenho uma vida organizada e o suficiente sossego para criar os filhos, sem renunciar à minha escrita. No futuro, quando eles tiverem asas próprias, acho que procurarei fazer outro movimento… Mas é a partir da minha casa, cercada pelo verde, que faço o mundo girar, constantemente. Às vezes, viajando eu mesma, apenas posso, porque adoro viajar para me alimentar. Por exemplo, quando vou a Genebra ou a Milão — duas cidades-casa para mim —, sinto claramente que elas arejam a cabeça, e volto cheia de ideias, livros e estímulos para escrever. As questões que se pensam por lá, as conversas com os amigos escritores, meus contemporâneos, a multiplicidade de línguas e de trajetórias, reacendem algo muito enraizado em mim, algo mais cosmopolita mesmo, e me sinto capaz de voos mais ousados. É sempre muito saudável sair da caixinha, olhar outros horizontes, outras problemáticas, mudar os hábitos e a rotina, não ficar preso a demagogias ou pensamentos únicos. Acho que um artista precisa estar sempre aberto a isso, para não se tornar um mero funcionário ou, pior, tecnocrata da palavra. Outras vezes — como nesse nosso tempo agônico, pandêmico — sem viajar, mas fazendo a escrita viajar, e acolhendo outras vozes como a minha, migrantes — através da tradução, que vivo cada dia mais como uma prática de acolhimento, de diálogo, de irmandade, de humanidade. Me interessa cada vez mais o aspecto político no sentido amplo, saber ler para além da melhor solução rítmica encontrada na tradução (fundamental, por sinal), a ferida que silencia, saber transpor para o leitor de outra língua, não tanto (não só) os jogos linguísticos mais geniais e criativos, mas o mundo que move o escritor. Sua visão de mundo. Suas complexidades. Suas feridas. Isso me exige calma, conhecimento, mergulho. Não é algo que se possa fazer correndo, entrando e saindo de uma tradução para outra, como atleta. Me sinto em dever de aprender sobre o universo que habita o escritor, além, claro, de conhecer a língua que traduzo, saber como ela soa em minha boca (em se tratando de uma língua viva), que sons essa língua provoca, quais associações imagéticas e sonoras e afetivas ela chama — porque, afinal, o tradutor faz uma transcrição. Acho fundamental conhecer bem a língua da qual se traduz, navegar nela com naturalidade, como algo que é entranhado na vivência, pois língua é corpo, é voz, é respiro, é olhar. Venho de um universo, o suíço, onde isso é muito importante, onde a trajetória do tradutor é muito respeitada. Gosto desse mergulho de escafandrista.
Carola: Que lindo o que você diz sobre o exercício da tradução, na realidade a arte da tradução. Saber ler a ferida que silencia. Penso que traduzir é antes de tudo saber ler. Mas talvez isso valha para tudo, a necessidade de saber ler o mundo, saber ler um filho, um amor, uma casa. A si mesma. Saber ler.
6.
Carola: Gosto muito de traduzir poesia, algo que faço apenas como exercício. Tenho a impressão de que traduzir um poema é pensar mais profundamente sobre o poema, e descobrir algo que não estava ali. Ou que estava apenas enquanto possibilidade.
Prisca: Acho que de alguma forma já respondi sem saber que viria essa sua observação….rsrsrs… curioso como nossos caminhos vão na mesma direção, inclusive nas observações que nos guiam…
Carola: Sim, isso costuma acontecer quando habitamos a conversa, como se habitássemos um espaço, um lugar. E as coisas saem do tempo linear. É muito bonito.
7.
Carola: Você vai lançar o seu primeiro romance, vai ser em 2021? É possível comparar essas duas experiências de escrita, a poesia e a prosa?
Prisca: Nos meus planos, terminaria o romance em 2020. Mas o 2020 foi um ano que estilhaçou os planos de todo mundo, acho. Aconteceu que em 2020, com a paralisia inicial, o trabalho feito a partir de casa, o isolamento que virou condição permanente, os filhos em casa e a casa se tornando uma Grande Mãe protetora, a poesia me pegou com força e fechei quatro livros que estavam em processo faz tempo. Dois devem sair ainda neste ano no Brasil, um na Itália, outro, quem sabe, em francês, na Suíça. E também me aventurei pela primeira vez na tradução de um romance. Um trabalho muito interessante, uma nova experiência. Mas estou priorizando agora a escrita do romance, que espero fechar até meados de 2021. As duas personagens principais são mulheres fortes, em certo sentido são migrantes, cujas trajetórias passam pela Suíça e pelo Brasil, num mergulho pra dentro da história pessoal e coletiva. Mas acho que esse ano é para fechar o livro e aí sim, procurar publicá-lo em 2022. Me parece que a experiência da escrita em si não é tão diferente, o que difere é o ritmo. Estou acostumada à intermitência na poesia. Tem livros que vou escrevendo, retomo, abandono, sem grandes problemas, num lapso de tempo longo. É uma temporalidade por lapsos com a qual sei lidar bem. Na prosa, percebi que isso é muito negativo. Acho que a prosa exige um esforço continuado e constante, de maratonista: antes de começar a escrever, durante e depois. Nesse sentido, no meu caso, sempre pensei que fosse mais difícil conciliar esse ritmo com meu dia a dia, dividido entre casa, filhos, aulas, pesquisa, viagens, traduções, etc. Mas quem sabe foi falta de organização e de coragem, um álibi que sempre arrumei, rsrs. A pandemia veio para me trancar em casa e me obrigar a priorizar e encarar esse álibi.
8.
Carola: A literatura salva?
Prisca: Olha, Carola, é uma pergunta complexa. Penso sobre isso, muitas vezes ao longo dos anos. E cada vez tenho uma resposta diferente. Por isso, não tenho nenhuma definitiva. Para mim pelo menos, não é que ela salve. Mas como qualquer experiência estética profunda, ela traz uma dimensão transcendente que de alguma maneira permite que sejamos algo a mais, ou que possamos nos conhecer melhor e portanto evoluir como seres humanos. Poder encarar nossas obsessões, vê-las, mergulhar nelas… Mas quem disse que isso salva? salvar de quê? de nós mesmos, da morte, dos outros, da peste? salvar os outros, talvez? Não sei. Mas acho que a arte nos dá essa chance: cumprir nossa circularidade, desabrochando não só no sentido biológico, mas nas inúmeras potencialidades da nossa espécie humana, plurifacetada: sensível, psicológica, afetiva, criativa, transcendente, sexual, etc. Nos dá outro canal de apreensão da realidade. Em termos sociais e coletivos, aí sim, penso que o contato com a literatura, com a arte, possa ser uma experiência profundamente arrebatadora, de transformação. Lembro bem: aos 15 anos a escola nos levou para ver o filme A dupla vida de Verônica, de Krzysztof Kieslowski. Eu ainda morava na Suíça. Aquele dia, na saída do cinema, perdi o rumo de casa e fui andando a esmo até encontrar a estação de trem que me levaria para casa. A mesma sensação tive quando li A metamorfose, de Kafka, aos 14 anos, e pouco depois, quando li pela primeira vez os Ossi di seppia, do Eugenio Montale, ou a poesia da Alejandra Pizarnik, aos 16 anos. Uma palpitação, um atordoamento. Algo do tipo: então é isso, é isso! Essas sensações eram maravilhosas, queria viver dentro delas! E o que estava ao meu redor passou a assumir outra dimensão na minha vida. Por outro lado, como fui criada num contexto muito católico, vi como esse ambiente neutralizou os desejos das mulheres da minha família. Com isso, tendo a não procurar na arte, na literatura, uma salvação. Aliás, não acredito muito nesse termo, nesse “ponto de chegada”. Acredito mais no desejo como motor muito potente, que nos move à eterna procura de algo. Mas é algo desassossegado, não pacífico. Adoro esse verso do poeta italiano Milo de Angelis, que resume bem meu pensamento: Não pedimos a água, mas a sede.
Carola: Sim, você faz a pergunta, se salvar de quê? Engraçado, eu nunca penso em salvação sob uma ótica cristã, talvez por não ter tido uma educação religiosa. Mas fiquei agora pensando na sua pergunta, se salvar do quê? Bom, da morte, claro, ninguém se salva. Mas podemos nos salvar da ignorância, do ódio, da solidão, do desamparo, do desamor. Acho que a literatura pode nos dar um lugar habitado, coletivo, onde antes não havia nada nem ninguém.
Prisca: Sim, você tem toda razão. Essa sensação de pertencimento, mesmo que na solidão do dia, na solidão do desespero — nesses dias desesperadores que vivemos, de profundo horror —, a consciência de ser parte de uma coletividade é realmente algo muito reconfortante. Sim, um lugar habitado. Bonito isso. Uma casa sempre aberta no espaço e no tempo. Como disse uma vez numa entrevista o escritor haitiano Dany Laferrière: com somente 26 letras do alfabeto, como se fossem 26 lanternas piscando a intermitência, iluminamos e ressuscitamos a companhia e o pensamento de milhões de pessoas, de dois mil anos de pessoas que disseram, pensaram e sentiram algo que nos é próximo, fraterno, familiar. E isso é realmente mágico.