Fiquei pensando nos sapatos rotos que a narradora no texto de Natalia Ginzburg tem o privilégio de usar, já que é uma escolha ou uma adaptação ao convencional.
Quando vi uma foto de 1998 tirada, me lembro bem, em Niterói pela irmã de uma amiga querida, me assustei por não me lembrar já há tanto tempo do par de botas que eu usava naquele dia. Botas marrons que chegavam na parte baixa do tornozelo, de pontas meio quadradas e que, quando chovia, se tingiam de um marrom muito escuro e encharcavam meus pés dos esgotos imundos e sangrentos do Rio de Janeiro. Usei aquele par de botas durante anos. Certamente durante todo o tempo que morei no Rio e lá, na cidade maravilhosa, eu fui casada, divorciada, fiz faculdade, fiz teatro, estágio, dei aulas de inglês, sofri violências e uma delas foi o assédio de um chefe. Vi também o sol nascer em Ipanema, disse e ouvi eu te amo, tomei porres e dancei na People, no El Turf, no Mostarda. Virei a noite no Lord Jim e na Lapa. Fiz provas no Fundão, corri atrás do 485 que parava fora do ponto, fui à delegacia – outra pessoa dizia que era eu e passou a comprar computadores no meu nome. Tudo isso com os pés enfiados dentro daquele par de botas.
Minha mãe odiava aqueles sapatos que também faziam o trajeto interestadual Rio-Minas através de rodoviárias e seus banheiros feitos de pinho sol e roletas. Como é possÃvel que eu tenha me esquecido desse par de botas até encontrá-los de novo naquela foto antiga? Por que eu usei um par de botas no Rio por tantos anos? Acabei me lembrando de uma briga com a minha mãe exatamente por causa dessa bota. Era um casamento de um parente na cidade e eu queria vestir uma calça e usar a bota. Perdi a briga, me vesti e me calcei conforme todas as outras mulheres. Estive infeliz e contrariada naquele dia, mas obediente ao convencional.
Em Minas, riam de mim. Um primo perguntava a que horas eu ia para o exército. Não eram coturnos, eram botas marrons. No Rio ninguém ria das botas, ninguém se interessava, ninguém devia notar. O fato é que aquelas botas me davam um forte senso de identidade que era diferente daquela das pessoas que usavam havaianas, rasteirinhas – pessoas coerentes, muito mais que eu sempre fora do lugar.
Eu calçava as botas para ir trabalhar num escritório de traduções, no centro do Rio. Eu era a estagiária e tinha uma sala só para mim, computador, telefone, ramal. Tinha também um chefe que vinha sempre verificar minhas tarefas. Um dia, ele me chamou na sala dele. Quando eu entrei, ele fechou a porta, duas voltas na chave. Venha ver esse programa novo no computador. Sente-se na minha cadeira. Está vendo, vou te mostrar, vamos ver juntos. Quero você. Ele agarrou meu corpo de vinte e três anos e abafou meu grito com a mão macia e suada que eu mordi. É nauseante pensar no corpo a corpo necessário para a sua própria proteção. Eu o empurrei e ele bateu a cabeça na janela de vidro. Foi quando me chamou de vaca. Destranquei a porta, ainda dentro das minhas botas, saà e nunca mais voltei nem mesmo para buscar minhas coisas, cobrar meu salário que ele nunca pagou. É lamentável que eu não tenha usado minhas botas para chutá-lo. Usei aquele par marrom para sair, para correr. É triste reconhecer que o criminoso ganharia aquela briga, caso eu a comprasse.
No ônibus do Largo da Carioca até a Santa Clara, eu, as minhas botas e o meu silêncio que virou pedra e vergonha. Ainda assim, eu me manteria viva por muitos anos, pensando naquele dia como um esquecimento, um tropeço, um rabisco feio a ser largado para trás no caminho adiante. Essa sobrevivência especÃfica pode ter sido resultado dos pés enxutos e aquecidos que eu tive quando criança, dos quais falou Natalia Ginzburg em seus sapatos rotos. É provável que eu tenha me esquecido dessas botas durante estes anos todos porque foi calçando aquele par marrom surrado que eu tive o privilégio de escapar.