A expressĂŁo latina hic sunt leones, encontrada em mapas do ImpĂ©rio Romano por volta do sĂ©culo 10 d.C., indicava territĂłrios desconhecidos nas cartas geográficas africanas. Ao atribuĂrem Ă s feras os espaços que nĂŁo conheciam, os antigos conquistadores romanos cunharam a expressĂŁo que seria atribuĂda a áreas de ignorância ou a limites desejáveis para o saber humano, como no diálogo entre os personagens Jorge de Burgos e Guglielmo da Baskerville, na obra prima de Umberto Eco, O nome da rosa. Em diálogo, Burgos afirma a Baskerville: “Há limites alĂ©m dos quais nĂŁo Ă© permitido ir. Deus queria que fosse escrito em certos papĂ©is: hic sunt leones”.
Encontro novamente a expressĂŁo em um artigo de Zygmunt Bauman — Sintomas Ă procura de um objeto e um nome — no excelente livro A grande regressĂŁo, organizado por Heinrich Geiselberger, e editado no Brasil em 2019 pela Estação Liberdade. O livro traz artigos primorosos que nos ajudam a compreender melhor este difĂcil mundo contemporâneo. A edição brasileira conta com um importante capĂtulo a mais, de Renato Janine Ribeiro.
Pensar o Brasil contemporâneo, ĂłrfĂŁo de polĂticas pĂşblicas voltadas para o bem comum e substituĂdas por polĂticas econĂ´micas e sociais tecnocráticas voltadas para concentrar bens e riquezas para poucos, nos obriga a refletir sobre as “áreas de ignorância” como um exercĂcio intelectual e cidadĂŁo. Por que cidadĂŁo? Valho-me de uma cĂ©lebre entrevista da veneranda economista Maria da Conceição Tavares ao programa Roda Viva, da TV Cultura, hoje muito reproduzida nas redes sociais: “Se (o economista) nĂŁo se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, vocĂŞ nĂŁo Ă© um economista sĂ©rio, vocĂŞ Ă© um tecnocrata”. Ou seja, no quadro histĂłrico de desigualdades abissais da sociedade brasileira, Ă© impossĂvel refletir sobre polĂticas pĂşblicas sem levar em conta a ideia de cidadania.
As “áreas de ignorância” sĂŁo magistralmente tocadas no capĂtulo de Bauman no referido livro. Em resposta Ă sua auto pergunta sobre as origens da “intolerância básica” que permearia as relações conflituosas originadas nos fenĂ´menos contemporâneos das migrações, ele argumenta: “Em Ăşltima análise, sugiro, o medo do desconhecido…”. E avança, na mesma medida dos nossos medos contemporâneos, utilizando-se do hic sunt leones: “…essas bestas misteriosas, sinistras e assustadoras, leões disfarçados de migrantes, a esta altura já abandonaram suas tocas distantes e se agacharam, furtivamente, na porta ao lado”.
Qual o alcance deste fenĂ´meno da intolerância que opõe, em permanente conflito, “nĂłs” e “eles” neste Brasil permeado pelo Ăłdio e por polĂticas pĂşblicas excludentes? Bauman delimita metodologicamente, com o exemplo das migrações, quem sĂŁo os nĂłs e os eles nesse jogo contemporâneo de pânico migratĂłrio. Focando sua análise neste extrato social delimitado, e igualmente totalizante das questões centrais da contemporaneidade, o filĂłsofo conceitua e compõe perguntas fundamentais para a compreensĂŁo do presente.
Como essa reflexĂŁo de Bauman pode ser Ăştil Ă compreensĂŁo do Brasil? Suas reflexões e perguntas sĂŁo adequadas ao contexto nacional? Como nĂŁo reconhecer o Brasil quando ele questiona: o que Ă© dado esperar de um futuro em que a atĂ© entĂŁo praticada esperança do melhor porvir está sendo substituĂda pela angĂşstia de um amanhĂŁ desprovido de empregos, de queda na renda familiar, de fragilidade das garantias sociais, do abismo econĂ´mico e de poder aquisitivo crescente entre os poucos que tĂŞm muito e os muitos que nada tem? Como nĂŁo reconhecer nosso territĂłrio, onde o desconhecimento impera secularmente, sendo alimentado com o fomento da ignorância e da anti-ciĂŞncia como práticas de polĂticas governamentais?
Como tratar problemas de escala pĂşblica, que esperariam escuta, diálogo, análise baseada em evidĂŞncias, compartilhamento, vendo-as substituĂdas por sandices terraplanistas ou por calculados artifĂcios de tecnocratas ou de polĂticos direcionados a impulsionar a ilusĂŁo populista, fomentando a ignorância de parte significativa da população?
As primeiras páginas da nossa grande imprensa sĂŁo o retrato da nossa angĂşstia social e polĂtica. Convivem na mesma página e pixels os saltos biliardários da exitosa e concentradora agroindĂşstria com campanhas benemĂ©ritas de setores oligopolistas das finanças, das indĂşstrias e dos comĂ©rcios com ações emergenciais para sanar a fome das famĂlias dos muitos “eles”, alĂ©m de acudirem hospitais com insumos básicos para o socorro Ă s vidas que se perdem aos milhares na pandemia graças ao desgoverno cotidiano.
Não contesto ações beneméritas de atendimento social. Mas aponto suas contradições. Onde estão essas mesmas forças poderosas na reivindicação de que se cumpram as leis que sustentam o SUS, na defesa ativa ao direito constitucional à vida, no direito à informação livre, à educação, à cultura, entre tantos direitos assegurados na lei maior e em leis derivadas da Constituição Cidadã? Onde estão as forças não submetidas aos territórios dos leões para conter a sanha genocida de um governo internacionalmente conhecido como contrário ao bem-estar e à vida digna de seu povo?
Nossa encruzilhada hoje nĂŁo Ă© mais uma simples disputa polĂtico-partidária em projetos pontualmente antagĂ´nicos. Vivemos hoje, todos nĂłs, na encruzilhada das polĂticas pĂşblicas que valorizam a vida e aquelas que a dizimam, literal e metaforicamente.
Como sabemos, os exemplos dessas polĂticas regressivas sĂŁo inĂşmeros, algumas repetidas insistentemente, como a presente nova tentativa de se taxar o livro em 12% proposto pelo ministro da economia. O argumento de que quem compra livro Ă© rico e aos pobres o governo provĂŞ, Ă© contrariado pelas pesquisas, como a Ăşltima Retratos da Leitura no Brasil, que explicita com dados recolhidos pelo Ibope InteligĂŞncia: a maior parte dos leitores brasileiros se concentra na classe C, sendo que as classes D e E apresentam nĂşmeros expressivos. Resumidamente, 4% dos leitores de livros pertencem Ă classe A, 26% integram a classe B, 49% fazem parte da classe C e 21% estĂŁo nas classes D e E. O objetivo principal dessa iniciativa já foi sobejamente denunciado: cumprir agenda ideolĂłgica de extrema direita ao dificultar ao máximo o acesso aos livros e infringir danos permanentes Ă indĂşstria livreira independente, já que os principais prejudicados serĂŁo os pequenos e mĂ©dios editores e as pequenas e mĂ©dias livrarias. Cardápio perfeito para a “elite branca”, como denominou antologicamente Cláudio Lembo, que cumpre a agenda separatista entre seus pares fundamentalistas, preservadores de privilĂ©gios ameaçados pelos “leões” que, cada vez mais, se sentam Ă s suas portas.
Se a complexidade do mundo globalizado é árdua para o entendimento, se não há soluções simples capazes de resolver problemas complexos, por outro lado já sabemos algumas respostas fundamentais. Uma delas é a potencialidade, a força transformadora das ações que educam para a autonomia e a liberdade de pensamento e questionamento. Ações que possuem entre suas principais fortalezas, a leitura.
Bauman termina seu artigo com um elogio Ă prática de uma educação voltada para o diálogo. Para nĂłs, milhares de militantes pela formação leitora, diversos em seus muitos nichos do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas, já soubemos em passado recente praticar a arte do diálogo, baseado na escuta e no objetivo maior de fazer o Brasil produzir uma PolĂtica de Estado para a formação de leitores. ConstruĂmos o Plano Nacional do Livro e Leitura e observamos os seus desdobramentos ainda em curso nos Estados e nos MunicĂpios. E conquistamos a lei 13.696/2018 que nos legou a PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita, obviamente engavetada pelo desgoverno presente.
É hora desse diálogo despertar novamente, e junto das outras forças progressistas, reivindicar com força o direito Ă leitura para todos, contribuindo para a educação democrática e laica que, sabemos, Ă© imprescindĂvel. Já trilhamos e sabemos o caminho, Ă s lideranças caberá o chamado unificador.