* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
A propósito das comemorações dos 100 anos do modernismo brasileiro, pretendo, na coluna de hoje, abordar a possível relação entre antropofagia, no sentido simbólico-cultural e, concomitantemente, político que lhe atribuiu Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropófago (1928), e um tema da contemporaneidade: a apropriação cultural.
Escreveu ele no referido documento-tese do movimento modernista brasileiro: “Mas não foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”. Seguidamente, acrescentou: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas”.
Permitam-me um olhar estrangeiro e africano, um século depois, quando tantas águas já correram por debaixo de todas as pontes, sobre duas interessantes e produtivas contradições do manifesto andradiano.
Primeiro, a ocultação feita pelo autor da sua própria ascendência. Afinal, sabe-se, ele também era filho desses falsos cruzados, desses fugitivos da civilização europeia (não será melhor chamá-los “pontas de lança” da referida civilização?) que aportaram às américas, à África e à Asia em busca de um novo mundo, ou seja, das especiarias, do ouro e dos diamantes. De todo o modo, esse apagamento, por Oswald, das suas origens pessoais serve-nos, hoje, para relembrar um facto da história dos homens: nada impede que membros dos grupos dominantes se rebelem contra eles, lutando ao lado dos dominados e explorados. Aqueles que, atualmente, alegam, por exemplo, que brancos, homens e heterossexuais não podem falar pelos negros, mulheres ou homossexuais precisam de aprender com as lições da história.
Segundo, a afirmação de que só as elites foram capazes de realizar a “antropofagia carnal”, expressão que tem sub-entendida, a partir de um episódio da história do Brasil (o naufrágio de um navio português onde ia um bispo que foi devorado por índios antropófagos), a absorção e deglutição daqueles que tinham chegado pelo mar numa manhã qualquer, fugidos da miséria europeia, não apenas em busca de refúgio e acolhimento, mas com claros intuitos de dominação, de que a catequese era um dos principais instrumentos.
Uma observação e uma pergunta. A observação é que fica clara, pelo menos transcorridos estes cem anos, a perspetiva autoritária do Manifesto Antropófago, o que, esclareço, é uma simples constatação: afinal, esse traço está alinhado com a pretensão vanguardista dos modernistas. A pergunta é: será mesmo que já comemos os nossos antigos dominadores ou, pelo contrário, continuámos a ser mastigados por eles, até sermos desprovidos de toda a carne, todo sangue e toda a seiva e sermos deixados sucumbir no Mediterrâneo, na fronteira entre o México e dos Estados Unidos, na Somália, na Palestina, na Síria ou no Yémen?
Como leitor estrangeiro e africano, o que me chamou particularmente a atenção no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, é a total ausência a qualquer referência aos negros brasileiros. Se hoje, um século depois, eles constituem a maioria demográfica do país, na época, antes da implantação das políticas oficiais de promoção da emigração de europeus e outros povos de tez branca para o Brasil, deveriam sê-lo ainda mais. No entanto, não se vislumbra no documento qualquer referência à sua existência.
Os hoje chamados – corretamente, diga-se – povos originários brasileiros são, para Oswald, o único sinónimo de “brasilidade”. Proclamou ele: “Tupi or not tupi, that is the question”. É verdade que ele também diz que só lhe interessa “o que não é meu”, mas a expressão parece ter sentido único: trata-se de comer os falsos cruzados, mas também, provavelmente, todos aqueles que não sejam “originários” (o manifesto é omisso em relação a esse ponto, o que permite todas as especulações), para unir a todos (quem?) “social, económica e filosoficamente”.
O autor do Manifesto Antropófago não podia saber, evidentemente, que um século depois um escritor africano diria: “A cidadania e a identidade são definidas pelo nascimento, pela ancestralidade e pelos factos da história [sublinhado meu]”. A verdade é que, no caso do Brasil, não há como ignorar e desvalorizar a contribuição negro-africana para a identidade nacional e cultural do país. Mas Oswald de Andrade parece ter preferido apoiar-se na utopia do bom selvagem de Rousseau, para formular a sua tese.
Isto dito, tranquilizo os eventuais leitores: não vou cancelar Oswald de Andrade nem o seu Manifesto Antropófago. Cem anos depois, ele mantém o mesmo potencial produtivo, podendo contribuir para desenhar e promover estratégias de luta política, económica, social e cultural para a construção de sociedades plurais, onde todos tenham rigorosamente as mesmas condições de base e as mesmas oportunidades de afirmação. No início do novo século, a humanidade continua a precisar, como ele dizia, de uma “unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem”.
“Comamo-nos uns aos outros”
O antropólogo Rodney William, em Apropriação cultural, define-a como “uma estratégia de dominação que visa apagar a potência de grupos histórica e sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significado todas as suas produções, como forma de promover seu genocídio simbólico”. Passando por cima do meu incómodo pessoal com a palavra “potência”, assinalo o esforço de William a fim de manter a discussão no plano intelectual e no nível estrutural, quando afirma que a natureza problemática da apropriação da cultura de outrem resulta do facto de que, em regra, os grupos dominantes apropriam-se dos símbolos e manifestações culturais dos grupos subalternos sem o devido reconhecimento e mantendo estes últimos numa situação de inferioridade (às vezes, mesmo, sem respeito, por exemplo, por símbolos religiosos e outros).
William tem o cuidado de dizer que a discussão acerca da apropriação cultural não é sobre indivíduos. A verdade, entretanto, é que o debate tornou-se altamente confuso e equivocado e até, muitas vezes, pessoal. Com frequência, e tal como acontece em outros níveis, não são levadas em consideração, sequer, as diferenças de contexto, que deveriam obrigar a teoria e a militância a procederem a análises mais finas e rigorosas e a adotar estratégias mais efetivas.
A respeito deste tópico, é imperioso não esquecer que, em sociedades onde a dinâmica racial foi causa de forte segmentação cultural, como os Estados Unidos, exemplos de comunicação intercultural podem ser entendidos como formas de apropriação cultural, enquanto em sociedades mais expostas a diferentes religiões, nacionalidades e modos de vida, isso pode não ser visto do mesmo modo. Atrevo-me a dizer, inclusive, que a juventude, em todos os países do mundo, graças às viagens e sobretudo à televisão por satélite e às novas tecnologias de comunicação, tende a encarar este tema com menos rigidez. Mesmo nos EUA, com o crescimento de hispânicos e asiáticos, já começa a haver nuances que carecem de estudo e reflexão.
A verdade – vou dizê-lo – é que trocas culturais sempre existiram, desde que o primeiro homem nascido no sudeste de África pôs o pé na estrada e povoou a Terra inteira. Como dizia o bispo Desmond Tutu, “somos todos africanos”. Também é verdade que a humanidade não se tem desenvolvido de um modo igual (“ah, mundo tão desigual”, canta Gil), pelo que tais trocas são sempre determinadas pelas relações de poder existentes nos diferentes contextos. Mas é impossível deixar de reconhecer que, mesmo em condições desiguais, as trocas acontecem.
Mais importante ainda, embora muitos o costumem esquecer: as trocas têm mão dupla. Assim, se é verdade que os grupos dominantes tendem a apropriar-se, muitas vezes abusivamente, das culturas subalternas, estas também se apropriam de elementos culturais daqueles. Não me refiro, clarifico, à assimilação cultural imposta pelos grupos dominantes aos grupos dominados, mas à apropriação natural ou mesmo deliberada, como parte da sua estratégia de luta, de elementos culturais dos primeiros por parte dos segundos.
Um exemplo da primeira via: os turbantes usados por certas mulheres africanas e que, na realidade, foram “importados” dos árabes, cuja presença no continente africano é historicamente anterior à dos europeus (assim como as práticas de escravidão de que foram responsáveis) ou os quimonos – uma espécie de blusa – usados pelas bessanganas [mulheres africanas, normalmente pertencentes aos grupos mais altos e respeitados dentro da sociedade local] de Luanda. “Quimono” é um nome de origem japonesa e foi certamente introduzido no país pelos portugueses, que têm um contacto secular com o Japão.
Como exemplo da apropriação estratégica de elementos culturais dos exploradores por parte dos explorados, cito a decisão de todas as antigas colónias africanas de Portugal de adotarem o português como língua de unidade nacional, desde o início das lutas de libertação, e como língua oficial depois das respetivas independências. É célebre a frase de Amílcar Cabral: “A língua foi a melhor coisa que os portugueses nos deixaram”. Não posso também deixar de mencionar, aqui, o trabalho de recriação do português feito por alguns escritores angolanos, dos quais o mais notável é Luandino Vieira. Se isso não é apropriação cultural, temos de repensar os conceitos.
Chegou, pois, o momento de indagar: será a antropofagia uma modalidade de apropriação cultural? Uma apropriação, digamos assim, avant la lettre? Não tenho dúvidas de que sim. Relembro: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. É o que diz Oswald no seu manifesto. O que, no fundo, ele propõe é que todos se comam, perdão, se amem uns aos outros: “Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados, pelos turistas”.
Volto a Rodney William. “O debate sobre apropriação cultural é sobre o sistema capitalista que, visando o lucro, transforma a cultura de um povo em produto, mas não valoriza o povo a que tal cultura pertence”, diz ele. Tem razão. É por isso – agora sou eu que falo – que as lutas identitárias, se não forem enquadradas numa estratégia mais ampla, que unifique raça, cor, género, classe, religião, país, região e – por que não? – blocos geopolíticos, estarão fadadas ao fracasso. Fragmentadas e fragmentárias, elas alimentam o capitalismo financeiro, que não se importa a mínima com as pessoas, o monstro neoliberal, os algoritmos e seus robôs. Alguns de nós lucrarão com essas lutas, monetizando as suas contas no Facebook e no Instagram e fazendo ensaios fotográficos para a Vogue. E a esmagadora maioria?
Há cem anos – lembram-se? –, Oswald de Andrade defendia a unificação de todas as revoltas. Um século depois do Manifesto Antropófago, estamos mais longe disso do que naquela época.
Parodiando uma velha palavra de ordem angolana, a luta continua e a vitória é incerta.
NOTA
Texto adaptado de uma conferência online com o mesmo título apresentada no dia 25 de março de 2022 no lançamento do projeto ALMA (Antropologia, Literatura, Modernismo e Audiovisual), uma iniciativa da Universidade Federal de São Carlos e do Polo Audiovisual da Zona da Mata, ambas instituições brasileiras, assim como da Universidade do Minho, portuguesa.