🔓 Andreia Azevedo Moreira

Ensaio fotográfico de Andreia Azevedo Moreira
Foto: Ozias Filho
01/06/2022

A violência é uma constante desde o momento em que acordamos para o dia. Atentos, ou não, assistimos aos apontamentos de maldade que nos entram pelos olhos. Contudo é notório uma certa anestesia, apatia face aos vários cenários, onde a integridade física e psicológica do outro está sempre em risco. Continuamos muito bem sentados no nosso lugar confortável do sofá.

Existe algo parecido com a revolta, mas não mexemos pedra sobre pedra. É como se nada se passasse e tudo permanecesse na mesma. Por vezes exalamos o descontentamento por meio das redes sociais, e sentimos que a nossa parte está cumprida. Sinal de preguiça, de impotência, de que não é nada conosco ou falta-nos algo mais para que deixemos de normalizar a violência como mais um fato do dia?

No entanto, há sempre alguém desconfortável quando a violência, ou o próprio fenômeno do mal, exibe as suas garras cortantes. Há quem sangre a todo o momento com esta hemorragia constante, que permeia cotidianos. Estão cansados desta perversa lógica, a de que a Justiça tudo resolve e a todos chega, quer por meio das leis, quer por obra e graça do divino. Há quem não aguente mais a postura da inação, e encontre na escrita uma forma de expor as muitas vozes que são silenciadas; vozes envergonhadas dentro de suas dores.

Se há algo que vou reter do conto Os cães ladram, da portuguesa Andreia Azevedo Moreira, é a violência que não se quer herdar. Nesta história, suspensa num tempo e lugar imprecisos, mas com a vida rural como pano de fundo, somos assaltados pelo flagelo da fome e do mal na sua totalidade, e que apagam as fronteiras do que é moralmente aceitável. Aqui não há espaço para a ingenuidade. As nódoas nos olhos, ombros, rins e pulsos são o prato do dia de Nívea, que se vinga da porrada do homem que a submete, e da fome que deixa as suas marcas fundas em todo o corpo, servindo na ementa os cães como sinônimo de refeição.

Neste lugar, que está algures esquecido num mapa da ficção, mas que na realidade está bem presente à vista de qualquer um, os cães que verdadeiramente ladram, e mordem, deixam marcas perenes, e a caravana que passa, quando passa, olha, mas não vê, não quer ver, porque ver significa agir, e sabe tão bem ser um revoltado com lugar cativo, e confortável, no sofá.

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

Foto: Ozias Filho

 

Andreia Azevedo Moreira
Nasceu em Lisboa, em 1978. Licenciada em Engenharia Florestal, trabalha com fundos comunitários. Escreveu os argumentos e os roteiros dos curtas-metragens, Espelho meu e A escritora, em parceria com Hugo Pinto, o realizador, e o argumento/roteiro do curta-metragem À vida (48HFPLisboa), realizado por André Costa. Colabora com o projeto online Fotografar palavras, idealizado por Paulo Kellerman. É autora dos contos: Os cães ladram (O país invisível, C.E. Mário Cláudio, 2016); Mar fechado (Grotta n.º4, 2019/2020); A vinte e quatro minutos da eternidade, e Abel (Ed. Minimalista, 2020 e 2021); Pode um corpo morto, As paredes em volta e Augustine e os maus sentimentos (Nova Mymosa, 2019, 2020 e 2021).
Ozias Filho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1962. É poeta, fotógrafo, jornalista e editor. Autor de Poemas do dilúvio, Páginas despidas, O relógio avariado de Deus, Insulares, Os cavalos adoram maçãs e Insanos, estes dois últimos, em 2023). Como fotógrafo tem vários livros publicados e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017. Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil, Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991.

Rascunho