A violência é uma constante desde o momento em que acordamos para o dia. Atentos, ou não, assistimos aos apontamentos de maldade que nos entram pelos olhos. Contudo é notório uma certa anestesia, apatia face aos vários cenários, onde a integridade fÃsica e psicológica do outro está sempre em risco. Continuamos muito bem sentados no nosso lugar confortável do sofá.
Existe algo parecido com a revolta, mas não mexemos pedra sobre pedra. É como se nada se passasse e tudo permanecesse na mesma. Por vezes exalamos o descontentamento por meio das redes sociais, e sentimos que a nossa parte está cumprida. Sinal de preguiça, de impotência, de que não é nada conosco ou falta-nos algo mais para que deixemos de normalizar a violência como mais um fato do dia?
No entanto, há sempre alguém desconfortável quando a violência, ou o próprio fenômeno do mal, exibe as suas garras cortantes. Há quem sangre a todo o momento com esta hemorragia constante, que permeia cotidianos. Estão cansados desta perversa lógica, a de que a Justiça tudo resolve e a todos chega, quer por meio das leis, quer por obra e graça do divino. Há quem não aguente mais a postura da inação, e encontre na escrita uma forma de expor as muitas vozes que são silenciadas; vozes envergonhadas dentro de suas dores.
Se há algo que vou reter do conto Os cães ladram, da portuguesa Andreia Azevedo Moreira, é a violência que não se quer herdar. Nesta história, suspensa num tempo e lugar imprecisos, mas com a vida rural como pano de fundo, somos assaltados pelo flagelo da fome e do mal na sua totalidade, e que apagam as fronteiras do que é moralmente aceitável. Aqui não há espaço para a ingenuidade. As nódoas nos olhos, ombros, rins e pulsos são o prato do dia de NÃvea, que se vinga da porrada do homem que a submete, e da fome que deixa as suas marcas fundas em todo o corpo, servindo na ementa os cães como sinônimo de refeição.
Neste lugar, que está algures esquecido num mapa da ficção, mas que na realidade está bem presente à vista de qualquer um, os cães que verdadeiramente ladram, e mordem, deixam marcas perenes, e a caravana que passa, quando passa, olha, mas não vê, não quer ver, porque ver significa agir, e sabe tão bem ser um revoltado com lugar cativo, e confortável, no sofá.
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