* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
“Racismo estrutural” é um conceito das ciências sociais que explica a existência de sociedades estruturadas com base na discriminação que privilegia algumas raças em detrimento de outras. Na verdade, a legislação de todos os países do mundo, praticamente, estipula a igualdade de todos os cidadãos, mas em muitos deles as diferenças de representatividade, acessos e oportunidades ainda são estabelecidas consoante a raça de cada um. “Raça”, aqui, é usado no sentido social do termo, isto é, como sinónimo virtual de “fenótipo”, enquanto “estruturas” são práticas institucionais, formais ou informais, podendo, portanto, “independer” das leis.
A verdade, por exemplo, é que nos países americanos e europeus, o racismo estrutural favorece os brancos e desfavorece os povos originários (prefiro este adjetivo e não “indígenas”, que são todos aqueles que nascem num determinado lugar) e os negros. Uma pergunta possível é se, por exemplo, nos países onde os brancos são minoria, isto é, em África e na Ásia, não existirá também “racismo estrutural” contra eles. Não há, convenhamos, sinais externos nesse sentido, pelo menos como prática generalizada, mas talvez esse possa ser um campo de pesquisa para os interessados. O exemplo do Uganda, em 1972, quando o ditador Idi Amin expulsou do país entre 40 a 50 mil asiáticos, alerta-nos que tal possibilidade não é meramente teórica. Um detalhe: a responsabilidade pela existência de racismo estrutural numa determinada sociedade não recai apenas sobre as maiorias, como o demonstra o exemplo do Brasil, onde os brancos são minoria demográfica, para não recordar, claro, o exemplo do apartheid sul-africano.
Na coluna de hoje, entretanto, quero levantar um ponto que me parece fulcral: a necessidade de realçar a existência do “racismo estrutural”, lá onde ele existir (para superar o argumento hipócrita e falho de não haver leis racistas), pode por vezes levar a conclusões incorretas e que põem em xeque o verdadeiro objetivo de toda a luta antirracista, a saber, a plena igualdade de todos os indivíduos, independentemente da cor da sua pele e outras características fenotípicas. A primeira é a suposta inexistência de “racismo anti-branco”, a que alguns chamam “racismo reverso”, pelo facto de, nas américas e na Europa, as classes dominantes serem brancas e não negras (o primeiro vício dessa conclusão é ignorar os contextos, esquecendo que os negros estão no poder em muitos países do mundo, a começar por um país americano, o Haiti; portanto, e pelo menos em tese, também podem ou poderiam estabelecer formas de “racismo estrutural” contra os brancos). A segunda conclusão incorreta, talvez mais perversa, é alegar que só o “racismo estrutural” (isto é, apenas práticas institucionais racistas, sejam elas formais ou informais) é racismo, desvalorizando, assim, outras manifestações racistas observadas no plano dos preconceitos pessoais que todos alimentamos no nosso dia a dia.
Acredito que, a partir de agora, esses dois equívocos podem ser engavetados para sempre, deixando literalmente de ser motivo de debate. Um facto que tem tudo para ser considerado histórico, não apenas pela sociedade brasileira, mas por todos os antirracistas do mundo, é, na minha opinião, responsável por isso: a recente promulgação pelo presidente Lula da lei que equipara injúria racial a racismo.
Comecemos pelo impacto dessa decisão no plano da sociedade brasileira. Não tenhamos dúvidas de que se trata de uma decisão histórica. Recordo que o Brasil já possui uma lei contra o racismo, aprovada em 1989. Essa lei, entretanto, sofreu uma alteração em 1997, quando a maioria dos deputados criou uma diferenciação entre ofensas racistas dirigidas diretamente a uma pessoa e a discriminação racial. Assim, a injúria racial foi extirpada da lei contra o racismo e colocada no Código Penal.
Como resultado, a injúria racial tornou-se um crime menos grave, com pena menor e podendo mesmo prescrever após um determinado prazo. Em caso de alguém ser acusado de injúria racial, poderia, inclusive, responder em liberdade, mediante o pagamento de uma indemnização. A verdade é que, devido a essa diferenciação, praticamente ninguém foi condenado até hoje no Brasil por crime de racismo. Além da conversão da maioria de acusações de racismo em crimes de injúria racial, contribui também para isso o facto de grande parte dos juízes ter pouco conhecimento do que é racismo ou discriminação e não saber o que é direito anti – discriminatório.
A equiparação de injúria racial e racismo é correta, justa e necessária. Afinal, e como bem observou Adilson Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, o que está por detrás das injúrias raciais contra indivíduos negros, muitas delas em forma de “meras” (aspas imprescindíveis) piadas, é o conceito de supremacia branca, ou seja, a ideia de que as populações brancas são superiores às demais. De notar que a lei acabada de sancionar pelo presidente Lula estabelece penas mais duras se as ofensas racistas ocorrerem através do humor ou em ambientes culturais, desportivos e similares.
Finalmente, no plano geral, a equiparação de injúria racial e racismo desmistifica, por exemplo, o debate sobre a existência ou não de negros racistas. Obviamente, também os há. Na realidade, todos podemos ser racistas. Negros, asiáticos ou ameríndios também podem cometer injúrias raciais contra brancos, mesmo quando não são eles que controlam as estruturas de dominação dos respetivos países, como no Brasil.
Fica claro de uma vez por todas, assim, que o objetivo da luta antirracista é acabar com todas as formas e manifestações (estruturais, pessoais ou “recreativas”) de racismo, independentemente de quem as pratica. A lei que o presidente brasileiro acaba de promulgar é um exemplo para todo o mundo.