Assim como meu querido amigo Frei Betto é meteorologista amador – e não sei se divulgando essa informação estarei cometendo uma inconfidência… –, eu sou um epidemiologista amador. Passei a me interessar pelo tema quando li, no início dos anos 1980, ainda estudante em Juiz de Fora, o fabuloso tratado do ensaísta canadense William H. McNeill (1917-2016), Plagues and people, lançado em 1976, e inacreditavelmente nunca traduzido por aqui. Neste livro, McNeill defende uma interessantíssima tese de que, por trás do surgimento e da queda das grandes civilizações, existe sempre uma crise sanitária, provocada por uma epidemia ou por uma pandemia.
Estou cada vez mais convencido do acerto desta perspectiva, que de alguma maneira é corroborada pelos fatos ao longo da História. Para ficar em apenas dois eventos, podemos evocar as trágicas consequências da importação de moléstias exóticas dos cantos mais distantes que desencadearam o esfacelamento do Império Romano no século 5, e, mil anos depois, a derrocada dos grandes impérios americanos – asteca e inca – não pelas armas, mas pelas doenças que os espanhóis traziam com eles.
Tudo isso, erudito (a) leitor (a), para compartilhar com você um trecho do excelente compêndio intitulado As epidemias na história do homem, publicado originalmente em francês em 1984, com tradução para o português (de Portugal), em 1986. Nele, os autores, Jean-Charles Sournia (1917-2000), médico e historiador de medicina, e Jacques Ruffie (1921-2004), hematologista, geneticista e antropólogo, traçam um extenso panorama a respeito do contato dos seres humanos com vírus, bactérias e vermes, que provocaram verdadeiras catástrofes demográficas nesse pequeno espaço do Universo onde vivemos.
Perceba, querido (a) leitor (a), como a descrição de uma severa epidemia de cólera que grassou em Paris em 1832 ecoa semelhanças impressionantes com os nossos tempos, demonstrando, como diria o cantor e compositor cearense Belchior, que, por mais que nos transformemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais…
“A França tivera tempo de se preparar para este acontecimento, mas que teria podido fazer? (…) Ninguém acreditava nela. A cólera provocava muitas vítimas na Polônia e na Rússia, países ‘selvagens’ e longínquos (…) como se poderia pensar que um país limpo e civilizado como a França pudesse ser contaminado massivamente por esta doença vinda do centro da Ásia, lugar de pobreza, sujidade e de miséria? (…) Em breve foi necessário ter em conta a evidência (…): a França fora atingida pela cólera (…) O Journal des Débats deixou de se interessar apenas pelas notícias necrológicas e descobriu a estatística sanitária: a partir de 2 de abril, anunciava cem novos falecimentos diários; em 14 de abril, o balanço do flagelo subia a treze mil doentes, dos quais sete mil mortos, e no fim do mês a doze mil e oitocentos mortos. Desde então, a indiferença popular foi substituída pelo medo colectivo. (…). Muitos notáveis abandonaram a cidade. (…) Houve também, como sempre, as ‘grandes cabeças’ incrédulas. Escarnecia-se da cólera (…) Na quinta-feira da terceira semana da Quaresma, numerosas máscaras parodiaram a cólera. Dupuytren viu chegar ao hospital carrinhas de pierrots e colombines que, brutalmente abordados em plena festa, eram conduzidos ao hospital sem sequer terem tempo de passar em suas casas. Alguns foram enterrados com os seus disfarces, como o notou H. Heine. A partir de então, a epidemia galopou (…) Faltavam os carros fúnebres, foram requisitados os fiacres, os ónibus, os carros para mudança e outros; os veículos do exército foram postos ao serviço (…) Acabaram com carros puxados por homens e depois carrinhos de mão. Como os carpinteiros não chegavam para as tarefas, renunciou-se aos caixões e viam-se circular através de Paris cadáveres esfarrapados, sujos como as suas dejeções infectantes. (…) Os transportes dos corpos teriam sido uma dificuldade menor se se soubesse onde metê-los. O efectivo de coveiros estava adaptado a um ritmo diário de falecimentos (…) que era largamente ultrapassado: os veículos faziam longas filas às portas dos cemitérios (…) Foi resolvido cavar largas fossas comuns onde os cadáveres se empilhavam uns sobre os outros (…) Contudo, as pessoas continuavam a divertir-se nos bairros finos da capital” (páginas 117 a 119).
Para finalizar, paciente leitor (a), três comentários dos autores, pertinentes para os dias de hoje:
“(…) para que uma lei seja seguida, é necessária uma autoridade que vele pela sua aplicação, com sanções para as infrações; além disso, é também desejável uma certa adesão do público” (p. 108);
“(…) para obter 60% das pessoas imunes é necessário vacinar pelo menos 80% ou 90%. As vacinas são caras e devem ser armazenadas em certas condições de temperatura; uma campanha de vacinação massiva é geralmente decidida às pressas perante uma ameaça urgente, e os países em desenvolvimento não têm muitas vezes os meios humanos, em produtos e financeiros para lançar sem atraso uma ação salvadora” (pág. 172);
“Os progressos da ciência, particularmente da medicina, foram tais desde há meio século que acreditamos possuir o domínio total da natureza que nos cerca, nada de mais falso. O homem continua a ser tão frágil como foi, e a sua adaptação e a sua defesa contra o meio muitas vezes agressivo que o cerca devem renovar-se incessantemente: ele deverá inventar sempre novas armas contra novos inimigos” (pág. 179).
Luz na escuridão
Eltânia André, romancista: “Quando trabalhava como psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial (São Bernardo do Campo), eu e a usuária Letícia Soares de Freitas, responsável pelo projeto audiovisual Aspie Aventura, iniciamos uma intensa comunicação através do WhatsApp, o que resultou no livro ainda inédito, de título provisório Entremundos ou Diário dos mundos. A protagonista Luna, uma jovem autista, ao falar sobre o seu desejo de atravessar o Atlântico para se reencontrar com a sua amiga que se mudou para Lisboa, revela o seu modo de ser, pensar e estar no mundo. Sigo escrevendo uma série de contos e acabo de lançar o romance Terra dividida”. Confira aqui.
Parachoque de caminhão
“Não existe nem felicidade nem infelicidade neste mundo, mas a comparação de uma com a outra.”
Alexandre Dumas (1802-1870)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Alphonsus de Guimaraens
(Ouro Preto, MG, 1870 – Mariana, MG, 1921)
A Catedral
Entre brumas, ao longe, surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
(Pastoral aos crentes do amor e da morte, 1923)