Até um período da História, antes de 1979, no Irã, as mulheres não usavam o hijab. A polícia tinha, inclusive, o direito de remover o véu à força. A frase é problemática. Retirar algo à força de alguém não é base do reconhecimento ao respeito e fundamenta-se na vulnerabilidade alheia.
O ponto aqui foi e continua sendo a imposição de uma censura, a extinção da liberdade e da escolha, o uso da força, nesse caso, em relação ao uso de um item de vestimenta associado ao islamismo. Mas não só: para nós, brasileiros, por exemplo, o uso do hijab no Irã, pode estar associado a algo mais incômodo do que uma regra religiosa e cultural. O uso ou o não uso de qualquer coisa que seja à força castra, de acordo com a nossa convicção geográfica e cultural, um direito básico que é o da livre expressão. Direito não adquirido universalmente.
No entanto, dizer que o que acontece no Irã em relação ao uso forçado do véu é um absurdo, é dizer muito pouco. Classificar como absurdo ou opressor um ato de censura naquele país é simplificar a questão de tal forma que desvaloriza, ainda que não seja a intenção, a luta daquelas mulheres naquele preciso momento contra o que eu considero um regime cruel e nocivo.
A própria palavra absurdo reduz a profundidade da reivindicação das mulheres daquele país. Absurdo sugere uma ideia de ilógico, irracional, fora da realidade. Porém, até agora tem sido exatamente essa realidade considerada, acredito, por nós, a maioria das brasileiras como opressora, obviamente machista, desrespeitosa, violenta e atroz, que vivem as iranianas. Elas não vivem um absurdo: elas vivem um quotidiano cheio de censuras e que voltam a ser questionadas e com o claro objetivo de transformação para uma sociedade mais livre e que exerça os direitos entre homens e mulheres de formas mais iguais. Absurdo é pouco e é simples demais.
Quando chegar a vez de as brasileiras fazer passeatas e pressionar o Congresso Nacional para fazer do aborto seguro e disponível gratuitamente a todas nós um direito, é possível que as argentinas, que já conseguiram esse direito na mesma América Latina conservadora, não nos julguem como atrasadas ou que é um absurdo ter que lutar por isso no tempo que for. O apoio não é exatamente esse porque esse tipo de apoio sugere condescendência e tolerância, o que também sugere uma ideia de superioridade que precisa ter, necessariamente, aspectos de inferioridade. A empatia é aliada da união na sua forma mais humana e honesta.
Se para nós, brasileiras, que podemos mostrar nossos corpos e cabelos sem receio ou medo, em outras geografias isso não está adquirido. Aliás, os direitos nunca estão garantidos. Na Itália, Georgia Melloni, uma simpatizante do Mussolini, foi eleita primeira-ministra. Se isso soa como um retrocesso é porque é mesmo. É para quem vai concordar comigo que o fascismo precisa ser constantemente combatido e que é inaceitável. Precisamente essas diferenças de pontos de vista e convicções fazem da luta por direitos e seus movimentos um processo, ou seja, algo, por natureza, inacabado. Se pensarmos na lei do aborto nos Estados Unidos, por exemplo, e que, recentemente, sofreu um imenso golpe e, em vez de ser um direito nacional, passou a ser uma decisão de cada Estado, podemos ver mais um exemplo da inquietude necessária para as lutas por direitos humanos que se tornam uma constante, identitárias, um modo de viver, e não um posicionamento somente para quando houver questionamento. Ou seja, dizer que o que acontece no Irã é um absurdo, é pouco.
Assim como é pouco e um desserviço fazer julgamento sobre a religião alheia. No entanto, se para mim seria torturante, humilhante e impensável viver sob um regime religioso fundamentalista ou qualquer regime religioso que fosse, há mulheres que vivem e muitas delas, por não concordarem e por quererem a liberdade que essas estruturas sociopolíticas negam, lutam neste preciso momento para derrubar leis que elas também consideram, como eu, tiranas e violentas.
Diferentemente dos desdobramentos sobre convicções político-religiosas, absurdo é o assassinato de Mahsa Amini, a mulher iraniana que foi morta por não usar o véu da forma que os extremistas consideram como correta. Um assassinato ultrapassa um ponto de vista. Um assassinato sim, é absurdo, inaceitável, uma barbárie, um crime e está concluído. Gostaria de ressaltar ainda que, segundo o veículo Al Jazeera, a família de Mahsa não teve permissão para ver o seu corpo. A exceção foi para os pés que estavam muito machucados. A partir daí, eu suponho uma violência contra Amini antes do golpe final e a grande probabilidade da violação desse mesmo corpo pelas autoridades que a prenderam. A suposta e injustificável razão por trás dessa atrocidade é que precisa ser identificada porque, neste momento, faz parte da cultura de um povo. Se este é o momento das iranianas e, crucialmente, iranianos se levantarem contra esse e outros tipos de censura e violência, então esta é a oportunidade de apoio, de entendimento da cultura e complexidades de um país que não é o nosso. É o momento de escrever e divulgar sobre um sistema opressor e perverso que é rejeitado e denunciado agora por mulheres do Irã. É hora de ajudar a valorizar essa luta por mais absurda que eu ache. Mas o que eu acho, pouco importa.