G. era estudante universitário em Juiz de Fora e namorava firme F., em sua cidade-natal. G. militava no clandestino Partido Comunista, distribuindo exemplares do jornal Voz Operária e participando ativamente da polĂtica universitária – uma atitude de extrema coragem, já que estávamos no auge da ditadura militar, que censurava, torturava e matava aqueles que ousassem manifestar insatisfação, em que grau fosse.
O jovem casal de namorados vislumbrava um futuro melhor que o de suas famĂlias, gente que havia migrado do campo para a cidade e agora lutava com enormes dificuldades para sobreviver. Aguardavam apenas a formatura de G. para consubstanciar a uniĂŁo, que sabiam, antecipadamente, contaria somente com uma recepção modesta, pois todo o minguado dinheiro que arrecadavam escorria para pagar alguns poucos mĂłveis e eletrodomĂ©sticos, adquiridos em mĂłdicas prestações mensais.
Tudo corria bem entre eles – uma única coisa motivava o desentendimento. F. sonhara, desde criança, entrar na Igreja-Matriz vestida de noiva, causando inveja nas amigas e conhecidas, ser surpreendida no final da cerimônia com uma chuva de arroz e tomar um carro-de-praça que sairia arrastando um monte de latas amarradas no parachoque. G., no entanto, inimigo figadal da Igreja, em particular dos padres de sua cidade-natal, não admitia a hipótese de participar da cerimônia religiosa.
Logo apĂłs a formatura, G. e F. ficaram noivos e anunciaram o casamento. Quanto mais se aproximava a data, mais G. se sentia pressionado, por F., pela famĂlia dela, pela famĂlia dele, por amigos e conhecidos, a aceitar o sacramento catĂłlico. E tanto se movimentaram, e tantas pequenas e grandes chantagens foram feitas, que afinal G. viu-se sem outra opção senĂŁo engolir aquele dissabor.
EntĂŁo, o fatĂdico sábado chegou. A igreja lotada – alguns amigos, espĂrito-de-porco, soltavam foguetes na praça, comemorando mais a capitulação do noivo do que mesmo a realização da cerimĂ´nia – assistiu Ă chegada de G. Enfiado num terno mal-ajambrado, cara amarrada, caminhou devagar atĂ© o pĂşlpito, onde aguardou, por minutos que pareciam sĂ©culos, a entrada triunfal da noiva, de braços com o irmĂŁo mais velho – o pai se sentira mal na vĂ©spera –, ao som do coro do grupo de jovens, que entoava desafinado a canção Andança…
O retratista, ascendente nome da fotografia social da cidade, esmerava-se no seu ofĂcio, espocando flashes e postando-se nos lugares mais improváveis, em busca do melhor ângulo. A cerimĂ´nia arrastava-se na voz monĂłtona do padre, conhecido por seus sermões indignados contra os novos costumes da juventude: cabelos longos, saias curtas, mĂşsica indecente, comportamentos condenáveis. F. manifestava sua imensa felicidade por baixo da maquiagem carregada e do vestido desconfortável, enquanto G., desesperado, molhava a camisa de suor, embora fosse inverno.
Enfim, o padre declarou-os marido e mulher, trocaram beijos, os padrinhos e madrinhas se aproximaram para os cumprimentos e todos começaram a se levantar para sair e garantir os melhores lugares na recepção – salgadinhos, cerveja e refrigerantes Ă vontade. Foi quando o fotĂłgrafo, notando que filme havia acabado, abriu a máquina, e, desequilibrando-se num degrau, viu, estarrecido, o rolo desdobrar-se inteiro, permanecendo apenas com uma ponta da pelĂcula entre seus dedos. Em pânico, ele chamou o pai do noivo e explicou que o filme havia velado…
Logo, o zunzunzum se espalhou. Avisada, a noiva sentou-se num banco, desconsolada, acudida pela mĂŁe e uma das madrinhas. Os padrinhos conferenciaram entre si e chegaram a uma conclusĂŁo: a cerimĂ´nia teria de ser refeita, pelo menos partes dela, para que se pudesse garantir alguns momentos, os mais importantes, para o álbum de fotografias. Convencido o padre, assim foi feito: G., mesmo inconformado, teve que participar da encenação… A vingança de Deus estava completa: G., que nĂŁo queria se casar na igreja, casou-se duas vezes…
Luz na escuridĂŁo
AntĂ´nio Torres, romancista:
“12 anos para escrever um romance. O 12Âş romance. Foi um processo vagaroso, no qual eu ficava dias, Ă s vezes atĂ© semanas, penteando um parágrafo, a me recordar da minha mĂŁe a passar um pente fino nos cabelos das minhas irmĂŁs para lhes tirar as lĂŞndeas, ao mesmo tempo em que me sentia o escritor mais lento do mundo. Esse trabalho exaustivo, penitente atĂ©, em busca de uma frase que me surpreendesse, me levava sempre Ă mesma pergunta: Quem se importará com isso? Resposta: Certamente ninguĂ©m. Mas vocĂŞ se importa. E isso Ă© o que importa. Pronto. O resultado está aĂ, com o tĂtulo de Querida cidade, em edição da Record, com uma bela capa de Leonardo Iaccarino. Escrevi-o tendo aos ouvidos uma mĂşsica chamada Dolores Sierra, que dizia que quem nasce na roça tem sempre a ilusĂŁo de viver na cidade. E na mente, umas linhas de um cĂ©lebre crĂtico literário, o norte-americano Edmund Wilson, nas quais ele concluĂa que sĂł existem trĂŞs personagens na literatura ocidental: Primeiro – o que vai do campo para a cidade e se deixa seduzir por ela. Segundo – o que faz o mesmo percurso, nĂŁo se encanta com a cidade, e volta para os seus pagos. Terceiro – o da cidade.
É possĂvel que em Querida cidade eu tenha tentado dar espaço para cada um deles, numa histĂłria cheia de histĂłrias. Espero que bem contadas”.
Parachoque de caminhĂŁo
“Há certo tipo de seres humanos que quanto mais cruéis são os sofrimentos que lhes são infligidos, mais cruéis se tornam para com os que têm a infelicidade de serem mais fracos ou mais miseráveis do que eles.”
e. e. Cummings (1894-1962)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Lupe Cotrim Garaude
(São Paulo, SP, 1933 – Campos do Jordão, SP, 1970)
Saudade
A saudade é o limite da presença,
estar em nĂłs daquilo que Ă© distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade Ă© um ser sozinho descontente
um amor contraĂdo, nĂŁo rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversĂvel tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vĂŁo de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que Ă© perdida.
(Inventos, 1968)