🔓 A vingança de Deus

Comunista, G. se recusava a casar na igreja. Mas, pressionado por amigos e familiares, acabou cedendo
Ilustração: FP Rodrigues
27/08/2021

G. era estudante universitário em Juiz de Fora e namorava firme F., em sua cidade-natal. G. militava no clandestino Partido Comunista, distribuindo exemplares do jornal Voz Operária e participando ativamente da política universitária – uma atitude de extrema coragem, já que estávamos no auge da ditadura militar, que censurava, torturava e matava aqueles que ousassem manifestar insatisfação, em que grau fosse.

O jovem casal de namorados vislumbrava um futuro melhor que o de suas famílias, gente que havia migrado do campo para a cidade e agora lutava com enormes dificuldades para sobreviver. Aguardavam apenas a formatura de G. para consubstanciar a união, que sabiam, antecipadamente, contaria somente com uma recepção modesta, pois todo o minguado dinheiro que arrecadavam escorria para pagar alguns poucos móveis e eletrodomésticos, adquiridos em módicas prestações mensais.

Tudo corria bem entre eles – uma única coisa motivava o desentendimento. F. sonhara, desde criança, entrar na Igreja-Matriz vestida de noiva, causando inveja nas amigas e conhecidas, ser surpreendida no final da cerimônia com uma chuva de arroz e tomar um carro-de-praça que sairia arrastando um monte de latas amarradas no parachoque. G., no entanto, inimigo figadal da Igreja, em particular dos padres de sua cidade-natal, não admitia a hipótese de participar da cerimônia religiosa.

Logo após a formatura, G. e F. ficaram noivos e anunciaram o casamento. Quanto mais se aproximava a data, mais G. se sentia pressionado, por F., pela família dela, pela família dele, por amigos e conhecidos, a aceitar o sacramento católico. E tanto se movimentaram, e tantas pequenas e grandes chantagens foram feitas, que afinal G. viu-se sem outra opção senão engolir aquele dissabor.

Então, o fatídico sábado chegou. A igreja lotada – alguns amigos, espírito-de-porco, soltavam foguetes na praça, comemorando mais a capitulação do noivo do que mesmo a realização da cerimônia – assistiu à chegada de G. Enfiado num terno mal-ajambrado, cara amarrada, caminhou devagar até o púlpito, onde aguardou, por minutos que pareciam séculos, a entrada triunfal da noiva, de braços com o irmão mais velho – o pai se sentira mal na véspera –, ao som do coro do grupo de jovens, que entoava desafinado a canção Andança

O retratista, ascendente nome da fotografia social da cidade, esmerava-se no seu ofício, espocando flashes e postando-se nos lugares mais improváveis, em busca do melhor ângulo. A cerimônia arrastava-se na voz monótona do padre, conhecido por seus sermões indignados contra os novos costumes da juventude: cabelos longos, saias curtas, música indecente, comportamentos condenáveis. F. manifestava sua imensa felicidade por baixo da maquiagem carregada e do vestido desconfortável, enquanto G., desesperado, molhava a camisa de suor, embora fosse inverno.

Enfim, o padre declarou-os marido e mulher, trocaram beijos, os padrinhos e madrinhas se aproximaram para os cumprimentos e todos começaram a se levantar para sair e garantir os melhores lugares na recepção – salgadinhos, cerveja e refrigerantes à vontade. Foi quando o fotógrafo, notando que filme havia acabado, abriu a máquina, e, desequilibrando-se num degrau, viu, estarrecido, o rolo desdobrar-se inteiro, permanecendo apenas com uma ponta da película entre seus dedos. Em pânico, ele chamou o pai do noivo e explicou que o filme havia velado…

Logo, o zunzunzum se espalhou. Avisada, a noiva sentou-se num banco, desconsolada, acudida pela mãe e uma das madrinhas. Os padrinhos conferenciaram entre si e chegaram a uma conclusão: a cerimônia teria de ser refeita, pelo menos partes dela, para que se pudesse garantir alguns momentos, os mais importantes, para o álbum de fotografias. Convencido o padre, assim foi feito: G., mesmo inconformado, teve que participar da encenação… A vingança de Deus estava completa: G., que não queria se casar na igreja, casou-se duas vezes…

Luz na escuridão
Antônio Torres, romancista:

“12 anos para escrever um romance. O 12º romance. Foi um processo vagaroso, no qual eu ficava dias, às vezes até semanas, penteando um parágrafo, a me recordar da minha mãe a passar um pente fino nos cabelos das minhas irmãs para lhes tirar as lêndeas, ao mesmo tempo em que me sentia o escritor mais lento do mundo. Esse trabalho exaustivo, penitente até, em busca de uma frase que me surpreendesse, me levava sempre à mesma pergunta: Quem se importará com isso? Resposta: Certamente ninguém. Mas você se importa. E isso é o que importa. Pronto. O resultado está aí, com o título de Querida cidade, em edição da Record, com uma bela capa de Leonardo Iaccarino. Escrevi-o tendo aos ouvidos uma música chamada Dolores Sierra, que dizia que quem nasce na roça tem sempre a ilusão de viver na cidade. E na mente, umas linhas de um célebre crítico literário, o norte-americano Edmund Wilson, nas quais ele concluía que só existem três personagens na literatura ocidental: Primeiro – o que vai do campo para a cidade e se deixa seduzir por ela. Segundo – o que faz o mesmo percurso, não se encanta com a cidade, e volta para os seus pagos. Terceiro – o da cidade.

É possível que em Querida cidade eu tenha tentado dar espaço para cada um deles, numa história cheia de histórias. Espero que bem contadas”.

Parachoque de caminhão
“Há certo tipo de seres humanos que quanto mais cruéis são os sofrimentos que lhes são infligidos, mais cruéis se tornam para com os que têm a infelicidade de serem mais fracos ou mais miseráveis do que eles.”
e. e. Cummings (1894-1962)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Lupe Cotrim Garaude
(São Paulo, SP, 1933 – Campos do Jordão, SP, 1970)

Saudade

A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.

Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.

Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço

num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.

(Inventos, 1968)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho