(27/11/20)
NĂŁo sei se vocĂŞ sabe, considerado(a) leitor/leitora, mas nĂŁo tive, de maneira geral, o privilĂ©gio de estudar em boas escolas. Minha formação educacional se deu de forma bastante errática. Na infância, no que hoje denomina-se pomposamente de Ensino Fundamental I e antigamente chamava-se apenas primário, frequentei o Grupo Escolar Flávia Dutra, onde compartilhavam o mesmo espaço filhos da classe mĂ©dia e crianças oriundas de famĂlias operárias, como era meu caso. Portanto, nesses primeiros quatro anos, oferecia-se um conhecimento básico mais ou menos democrático – e digo mais ou menos porque, embora estivĂ©ssemos sob o mesmo teto, os alunos e alunas eram separados entre “adiantados” e “atrasados”, o que significava, grosso modo, “remediados” e “pobres” – nĂŁo havia “ricos” nas imediações da escola –, e que, ao fim e ao cabo, redundava quase numa distinção entre “brancos” e “nĂŁo brancos”. Mas os que se encontravam sentados nas carteiras de madeira – sempre em dupla –, ainda podiam se sentir privilegiados, porque boa parte dos nossos colegas sequer estava estudando – naquela Ă©poca, 34% da população era analfabeta…
ConcluĂda esta etapa, uma parcela dos alunos seguia em frente para cursar o que se chamava ginasial – o equivalente ao Ensino Fundamental II. Havia poucas opções na cidade – a minha sempre pranteada Cataguases – e a mim coube estudar num colĂ©gio cenecista – calma, leitor/leitora nĂŁo se trata de nenhuma ordem religiosa catĂłlica, mas simplesmente de um negĂłcio chamado Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC), uma instituição mantida pela comunidade para ofertar ensino aos meninos e meninas, cujas famĂlias nĂŁo conseguiam vagas nas escolas pĂşblicas e muito menos tinham dinheiro para pagar escolas privadas. A escola funcionava em prĂ©dios ociosos e, com mensalidades bastante acessĂveis, oferecia ensino de qualidade duvidosa, suficiente apenas para formar mĂŁo de obra nĂŁo especializada, mas minimamente alfabetizada, capaz de suprir as necessidades das fábricas de tecido e do comĂ©rcio local em troca de salário-mĂnimo.
Frequentar o secundário – o que hoje se intitula Ensino MĂ©dio – era para pouquĂssimos. Aos 15 anos, a maioria dos jovens já estava se inserindo no mercado de trabalho para ajudar a compor o orçamento domĂ©stico. O ColĂ©gio Cataguases, entidade pĂşblica, tinha um curso cientĂfico, pela manhĂŁ, destinado aos filhos da burguesia local, preparando-se para a universidade, e para os filhos da classe mĂ©dia, preparando-se para concursos do governo – na Ă©poca, entrar para o Banco do Brasil, Caixa EconĂ´mica Federal, Receita estadual ou federal, e congĂŞneres, era uma forma segura de mobilidade social. Para os pobres que heroicamente conseguiam alcançar essa etapa, restava o curso de contabilidade, Ă noite – o que fiz, enquanto trabalhava como operário na Companhia Manufatora Mineira de Tecidos de AlgodĂŁo, no setor de algodĂŁo hidrĂłfilo (algodĂŁo Apolo, aquela caixinha azul, ah, vocĂŞ conhece, nĂ©?). Depois, por caminhos bastante tortuosos, cheguei atĂ© mesmo a me formar na Universidade Federal de Juiz de Fora, mas esta já Ă© outra histĂłria.
Toda essa lengalenga autobiográfica, carĂssimo(a) leitor/leitora, para comentar – e lamentar – uma pesquisa recente, que mostra que, no mundo, o Brasil Ă© o paĂs que menos valoriza a profissĂŁo de professor, segundo o ĂŤndice Global de Status de Professores. Baseado em análises de opiniĂŁo realizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisa EconĂ´mica e Social da Inglaterra com mais de 35 mil adultos na faixa etária entre 16 e 64 anos e mais de 5,5 mil professores ativos em 35 paĂses, a pesquisa mostra que 9 em cada 10 brasileiros acreditam que nĂŁo há respeito por parte dos alunos aos seus professores. Tenho certeza de que vocĂŞ já ouviu relatos, alguns assustadores, que confirmam e dĂŁo concretude a esses nĂşmeros…
Pois bem, como disse lá em cima, de maneira geral, nĂŁo estudei em boas escolas, mas garanto a vocĂŞ que, com todos os professores que tive, melhores uns, piores outros, aprendi alguma coisa. Todos, sem exceção, me ajudaram a compreender o meu lugar no mundo, ajudaram a me fazer entender que eu era um ser vivo, diferente dos cachorros e gatos e galinhas, porque falava e pensava, mas tambĂ©m diferente dos meus pais, dos meus irmĂŁos, dos meus amigos e dos meus vizinhos, porque falava e pensava de uma forma absolutamente singular. E foi isso, a descoberta da minha subjetividade, que permitiu refletir sobre o que enxergava Ă minha volta e aspirar por uma vida diferente da que tiveram meus pais – vĂtimas do ĂŞxodo rural que, sem instrução, foram ser lavadeira de roupas, ela, pipoqueiro, ele – e meus irmĂŁos, operários das fábricas de tecido. Eu compreendi que o meu destino estava em minhas mĂŁos – e que eu podia modificá-lo, caso quisesse.
O que esperar de uma sociedade que despreza o professor, a mais nobre das profissões, pois as outras todas dependem umbilicalmente dela? Ano a ano, cada vez menos alunos se interessam por cursos de formação pedagĂłgica, pois sabem que os esperam um futuro de baixos salários, preconceito, desprestĂgio social e violĂŞncia – as prĂłprias universidades tratam as licenciaturas com desdĂ©m. E nĂŁo há segredo: todos os paĂses que conseguiram dar um salto econĂ´mico, e, por consequĂŞncia, social, alavancaram a mudança na oferta de uma educação universalizada, pĂşblica e de qualidade. NĂłs estamos trafegando no caminho contrário… NĂŁo Ă© coincidĂŞncia que, se ocupamos o Ăşltimo lugar no ranking de valorização do professor, tambĂ©m ocupamos o Ăşltimo lugar na avaliação dos alunos pelo PISA… Trata-se de um beco sem saĂda…
Luz na escuridĂŁo
Ronaldo Cagiano, cronista, poeta, ficcionista: “Sigo escrevendo a novela Esse paĂs sem nome, percorrendo a histĂłria de uma famĂlia dividida pelos conflitos polĂticos do paĂs apĂłs o golpe contra Dilma e a ascensĂŁo do fascismo bolsonariano. Terminei um novo livro de poemas, que escrevi durante a quarentena (nĂŁo motivado, nem sobre a quarentena): AutĂłpsia do instante. E estou lançando Cartografia do abismo, safra de poemas escritos nesses quatro anos de vivĂŞncia em Portugal” – livro que vocĂŞ pode encontrar aqui.
Parachoque de caminhĂŁo
“A impotência gosta de refletir sua nulidade no sofrimento alheio.”
Georges Bernanos (1888-1948)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Casimiro de Abreu
(Casimiro de Abreu, RJ, 1839 – Casimiro de Abreu, RJ, 1860)
Meus oito anos
Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos nĂŁo trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
Ă€ sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como sĂŁo belos os dias
Do despontar da existĂŞncia!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingĂŞnuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida nĂŁo era
Nessa risonha manhĂŁ.
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delĂcias
De minha mĂŁe as carĂcias
E beijos de minha irmĂŁ!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberto ao peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
Ă€ roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava Ă beira do mar;
Rezava Ă s Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos nĂŁo trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
Ă€ sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
(As Primaveras, 1859)