🔓 A sedução do desânimo

Vivemos num tempo em que o desânimo se apresenta diariamente, tentando nos seduzir à indolência morna dos que não se indignam
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2021

O Professor me olha do canto da mesa, olhar penetrante de quem sabe o desafio que tenho agora ao escrever essa coluna após ler os jornais do dia. O Professor, assim com P maiúsculo, é o eterno mestre Antonio Candido, e o olhar permanente vem de uma foto nossa quando ele recebeu o Prêmio Jabuti pelo seu livro Brigada ligeira e outros escritos, que editei pela Editora Unesp há muitos anos. Deste olhar para o canto da mesa de trabalho, que visito diariamente, retiro muitos ânimos e energias, lembrando de boas prosas e, principalmente, de muitas ênfases às duras realidades da vida que ele logo colocava em movimento: “É isso mesmo, o fato é esse, mas agora é rever, renovar, partir para novas iniciativas”. Palavras que repito aqui, não por serem exatamente o que me dizia, mas porque o sentido inequívoco como as pronunciava sempre me empurraram para a frente da batalha.

Exerci várias vezes essas prosas longas, que me apaziguavam o espírito e me fustigavam o coração e a mente. Elas aconteceram nos períodos em que exerci atividades públicas desafiadoras, começando pela direção geral da Biblioteca Pública Mário de Andrade, em São Paulo, e posteriormente nas minhas duas passagens como secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Quando precisava de um oxigênio vital, ligava para ele e sempre ouvia: vem tomar um café! Nunca saí de lá sem um café passado na hora e um olhar novo para a vida.

É impossível pensar o Brasil de hoje, e em certa medida o mundo, sem extrair a sábia resiliência dos intelectuais e militantes de gerações mais velhas que a minha e que contribuíram muito para a infindável luta de transformar esse território privilegiado pela natureza em uma nação democrática e justa. Tive a sorte de encontrar e conviver com mulheres e homens que batalharam desde a juventude nos anos 1920, 1930, 1940, alcançando-os em vida ativa e com a generosidade para compartilhar. Os encontrei na universidade, na militância política, na vida profissional como professor/pesquisador, editor e até como livreiro na juventude.

De todos encontrei vitalidade, força persistente, mesmo em momentos que pareciam duvidar de sua própria luta. Alguns dizem que essas gerações falharam no seu projeto emancipador, talvez impressionados pela lúgubre paisagem do nosso tempo, mas deles extraio antes de tudo a inquebrantável resistência e a noção generosa do tempo histórico, o único tempo que pode transformar nações e povos. E é desse tempo histórico que recordo, a título de exemplo do que estou argumentando, dois índices que considero vitais para nossos sonhos de equidade e direitos para todos: nos anos 1950, meros 70 anos atrás, o Brasil tinha 51,5% de analfabetos, hoje são 6,6%; a mortalidade infantil era de 136,2 mortes/1.000 nascimentos, em 2019 foi de 12,9/1.000. É óbvio que não é admissível a existência de sequer um analfabeto e de uma morte infantil, mas é fundamental assimilar que nenhuma das conquistas humanitárias e civilizatórias dos últimos cem anos teriam sido arrancadas do capitalismo primário e infame que nos domina há séculos se não fosse a coragem e a resiliência dos que nos antecederam na luta pela equidade e pela democracia.

Se estamos ainda muito longe de alcançar esta cidadania almejada, e nossos direitos humanos continuam sendo vilipendiados, isso não significa que já chegamos ao final da estrada e que o único caminho que nos resta é o da profundidade infernal e imobilizadora da ausência de perspectivas e do conformismo.

Volto às angustiantes manchetes de hoje, do Brasil e do mundo, e sei que se nos fixarmos apenas ao aqui e ao agora, sem a resiliência de transformá-los, o cenário que se apresenta é devastador e paralisante. Uma pequena amostra dos jornais deste 10 de novembro é suficiente para alimentar a ativa e insinuante indústria do desânimo. Vamos aos “flashes”.

Na nação mais rica e poderosa do mundo, os jornais denunciam a dissecação de um cadáver humano por um profissional médico que vendeu o “espetáculo” a 500 dólares por ingresso, uma síntese metafórica do neoliberalismo que aquele país lidera e retrato bem-acabado do quão profunda precisa ser a mudança estrutural do poder global que está nos conduzindo ao desaparecimento como espécie. Na economia brasileira as manchetes apontam inflação acelerada e acumulada em dois dígitos, aliada à desvalorização crescente de nossa moeda, projetando estagnação econômica e pauperização social ainda maior em 2022. Na política, foi lançada hoje a candidatura do ex-juiz que foi indelevelmente marcado pela corte suprema do país com a pecha de parcial em seus julgamentos, portanto, ele personifica a antítese do que deve ser um magistrado. Para piorar o quadro, os seus seguidores o apresentam como o ícone da justiça e da moral ilibada, mesmo após as denúncias da investigação jornalística chamada Vaza Jato, cujo livro, com o mesmo título e escrito por Letícia Duarte e equipe da Intercept Brasil, é finalista do Prêmio Jabuti 2021 (Editora Mórula, 2020). Na saúde o Brasil supera a triste marca de 610 mil mortes por Covid-19 e o presidente da república é denunciado por juristas no Tribunal Penal Internacional em Haia por “crime de extermínio contra a população brasileira”.

Essa enxurrada de dejetos malcheirosos atinge a todos nós com aguda pontaria, principalmente porque sabemos que as manchetes de amanhã seguirão no mesmo tom e gravidade. Vivemos num tempo em que a porta escancarada do desânimo se apresenta diariamente, aliados ao cotidiano mesquinho e torpe, e tenta nos seduzir para que adentremos na indolência morna dos que não se indignam, dos que não se rebelam, dos que acham que não vale a pena, dos que estão tão fartos de tudo isso que acham que o melhor é viverem suas próprias vidas.

Em síntese, abdicar da política, e não a retomar, como deveríamos.

Um dos temas mais debatidos nesta pandemia enfocou a possibilidade de sairmos melhor, enquanto humanidade, desse horror em que nos metemos. Acompanhei os debates, desde os que colocam messianicamente a inexorabilidade deste caminho até os que o olham com escárnio e o entendem inviável. Prefiro me alinhar entre os que analisam esta conjuntura, que expõe cruamente nossas mazelas estruturais, e buscam o resgate da política e sua centralidade quando tratamos de governos em sociedades complexas como são as deste século 21.

Um dos pensadores instigantes para esse resgate da política é o espanhol Daniel Innerarity. A leitura de A política em tempos de indignação (Leya, 2017), entre outros textos e artigos mais recentes, fustiga o pensamento e nos move para a frente, enxergando as questões centrais do fazer político em nossa sociedade contemporânea.

Crítico do teatro marqueteiro do sistema político atual, onde há mais políticos preocupados em se vender para seguir no poder nas eleições seguintes do que governar, Innerarity coloca no centro a ideia de governo e o que significa exercer o poder na complexidade das democracias do século 21. Pragmático, insiste em “pensar mais naquilo que os governos podem fazer e menos naquilo que podem prometer”.

Segundo ele, e isso interessa ao Brasil em particular, é importante converter a política “numa reflexão coletiva sobre o futuro e sua configuração democrática”, criticando ainda as enormes dificuldades atuais da política pensar estrategicamente, a longo prazo, antecipando o futuro: “A política atual padece de um grande déficit de capacidade estratégica; seus principais atores são administradores aplicados que trabalham num horizonte temporal muito curto e cedem com frequência à tentação de transferir as dificuldades para o futuro, à custa das gerações seguintes. (…) Apenas se a política recuperar capacidade estratégica é que conseguirá passar do mundo das reparações para o das configurações”.

É sempre bom lembrar que nossa luta por um país de leitores é estratégia e configuração, não reparação. A prioridade em educação e cultura é a antecipação do futuro. Saibamos construí-lo.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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