O Professor me olha do canto da mesa, olhar penetrante de quem sabe o desafio que tenho agora ao escrever essa coluna apĂłs ler os jornais do dia. O Professor, assim com P maiĂşsculo, Ă© o eterno mestre Antonio Candido, e o olhar permanente vem de uma foto nossa quando ele recebeu o PrĂŞmio Jabuti pelo seu livro Brigada ligeira e outros escritos, que editei pela Editora Unesp há muitos anos. Deste olhar para o canto da mesa de trabalho, que visito diariamente, retiro muitos ânimos e energias, lembrando de boas prosas e, principalmente, de muitas ĂŞnfases Ă s duras realidades da vida que ele logo colocava em movimento: “É isso mesmo, o fato Ă© esse, mas agora Ă© rever, renovar, partir para novas iniciativas”. Palavras que repito aqui, nĂŁo por serem exatamente o que me dizia, mas porque o sentido inequĂvoco como as pronunciava sempre me empurraram para a frente da batalha.
Exerci várias vezes essas prosas longas, que me apaziguavam o espĂrito e me fustigavam o coração e a mente. Elas aconteceram nos perĂodos em que exerci atividades pĂşblicas desafiadoras, começando pela direção geral da Biblioteca PĂşblica Mário de Andrade, em SĂŁo Paulo, e posteriormente nas minhas duas passagens como secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Quando precisava de um oxigĂŞnio vital, ligava para ele e sempre ouvia: vem tomar um cafĂ©! Nunca saĂ de lá sem um cafĂ© passado na hora e um olhar novo para a vida.
É impossĂvel pensar o Brasil de hoje, e em certa medida o mundo, sem extrair a sábia resiliĂŞncia dos intelectuais e militantes de gerações mais velhas que a minha e que contribuĂram muito para a infindável luta de transformar esse territĂłrio privilegiado pela natureza em uma nação democrática e justa. Tive a sorte de encontrar e conviver com mulheres e homens que batalharam desde a juventude nos anos 1920, 1930, 1940, alcançando-os em vida ativa e com a generosidade para compartilhar. Os encontrei na universidade, na militância polĂtica, na vida profissional como professor/pesquisador, editor e atĂ© como livreiro na juventude.
De todos encontrei vitalidade, força persistente, mesmo em momentos que pareciam duvidar de sua prĂłpria luta. Alguns dizem que essas gerações falharam no seu projeto emancipador, talvez impressionados pela lĂşgubre paisagem do nosso tempo, mas deles extraio antes de tudo a inquebrantável resistĂŞncia e a noção generosa do tempo histĂłrico, o Ăşnico tempo que pode transformar nações e povos. E Ă© desse tempo histĂłrico que recordo, a tĂtulo de exemplo do que estou argumentando, dois Ăndices que considero vitais para nossos sonhos de equidade e direitos para todos: nos anos 1950, meros 70 anos atrás, o Brasil tinha 51,5% de analfabetos, hoje sĂŁo 6,6%; a mortalidade infantil era de 136,2 mortes/1.000 nascimentos, em 2019 foi de 12,9/1.000. É Ăłbvio que nĂŁo Ă© admissĂvel a existĂŞncia de sequer um analfabeto e de uma morte infantil, mas Ă© fundamental assimilar que nenhuma das conquistas humanitárias e civilizatĂłrias dos Ăşltimos cem anos teriam sido arrancadas do capitalismo primário e infame que nos domina há sĂ©culos se nĂŁo fosse a coragem e a resiliĂŞncia dos que nos antecederam na luta pela equidade e pela democracia.
Se estamos ainda muito longe de alcançar esta cidadania almejada, e nossos direitos humanos continuam sendo vilipendiados, isso não significa que já chegamos ao final da estrada e que o único caminho que nos resta é o da profundidade infernal e imobilizadora da ausência de perspectivas e do conformismo.
Volto às angustiantes manchetes de hoje, do Brasil e do mundo, e sei que se nos fixarmos apenas ao aqui e ao agora, sem a resiliência de transformá-los, o cenário que se apresenta é devastador e paralisante. Uma pequena amostra dos jornais deste 10 de novembro é suficiente para alimentar a ativa e insinuante indústria do desânimo. Vamos aos “flashes”.
Na nação mais rica e poderosa do mundo, os jornais denunciam a dissecação de um cadáver humano por um profissional mĂ©dico que vendeu o “espetáculo” a 500 dĂłlares por ingresso, uma sĂntese metafĂłrica do neoliberalismo que aquele paĂs lidera e retrato bem-acabado do quĂŁo profunda precisa ser a mudança estrutural do poder global que está nos conduzindo ao desaparecimento como espĂ©cie. Na economia brasileira as manchetes apontam inflação acelerada e acumulada em dois dĂgitos, aliada Ă desvalorização crescente de nossa moeda, projetando estagnação econĂ´mica e pauperização social ainda maior em 2022. Na polĂtica, foi lançada hoje a candidatura do ex-juiz que foi indelevelmente marcado pela corte suprema do paĂs com a pecha de parcial em seus julgamentos, portanto, ele personifica a antĂtese do que deve ser um magistrado. Para piorar o quadro, os seus seguidores o apresentam como o Ăcone da justiça e da moral ilibada, mesmo apĂłs as denĂşncias da investigação jornalĂstica chamada Vaza Jato, cujo livro, com o mesmo tĂtulo e escrito por LetĂcia Duarte e equipe da Intercept Brasil, Ă© finalista do PrĂŞmio Jabuti 2021 (Editora MĂłrula, 2020). Na saĂşde o Brasil supera a triste marca de 610 mil mortes por Covid-19 e o presidente da repĂşblica Ă© denunciado por juristas no Tribunal Penal Internacional em Haia por “crime de extermĂnio contra a população brasileira”.
Essa enxurrada de dejetos malcheirosos atinge a todos nós com aguda pontaria, principalmente porque sabemos que as manchetes de amanhã seguirão no mesmo tom e gravidade. Vivemos num tempo em que a porta escancarada do desânimo se apresenta diariamente, aliados ao cotidiano mesquinho e torpe, e tenta nos seduzir para que adentremos na indolência morna dos que não se indignam, dos que não se rebelam, dos que acham que não vale a pena, dos que estão tão fartos de tudo isso que acham que o melhor é viverem suas próprias vidas.
Em sĂntese, abdicar da polĂtica, e nĂŁo a retomar, como deverĂamos.
Um dos temas mais debatidos nesta pandemia enfocou a possibilidade de sairmos melhor, enquanto humanidade, desse horror em que nos metemos. Acompanhei os debates, desde os que colocam messianicamente a inexorabilidade deste caminho atĂ© os que o olham com escárnio e o entendem inviável. Prefiro me alinhar entre os que analisam esta conjuntura, que expõe cruamente nossas mazelas estruturais, e buscam o resgate da polĂtica e sua centralidade quando tratamos de governos em sociedades complexas como sĂŁo as deste sĂ©culo 21.
Um dos pensadores instigantes para esse resgate da polĂtica Ă© o espanhol Daniel Innerarity. A leitura de A polĂtica em tempos de indignação (Leya, 2017), entre outros textos e artigos mais recentes, fustiga o pensamento e nos move para a frente, enxergando as questões centrais do fazer polĂtico em nossa sociedade contemporânea.
CrĂtico do teatro marqueteiro do sistema polĂtico atual, onde há mais polĂticos preocupados em se vender para seguir no poder nas eleições seguintes do que governar, Innerarity coloca no centro a ideia de governo e o que significa exercer o poder na complexidade das democracias do sĂ©culo 21. Pragmático, insiste em “pensar mais naquilo que os governos podem fazer e menos naquilo que podem prometer”.
Segundo ele, e isso interessa ao Brasil em particular, Ă© importante converter a polĂtica “numa reflexĂŁo coletiva sobre o futuro e sua configuração democrática”, criticando ainda as enormes dificuldades atuais da polĂtica pensar estrategicamente, a longo prazo, antecipando o futuro: “A polĂtica atual padece de um grande dĂ©ficit de capacidade estratĂ©gica; seus principais atores sĂŁo administradores aplicados que trabalham num horizonte temporal muito curto e cedem com frequĂŞncia Ă tentação de transferir as dificuldades para o futuro, Ă custa das gerações seguintes. (…) Apenas se a polĂtica recuperar capacidade estratĂ©gica Ă© que conseguirá passar do mundo das reparações para o das configurações”.
É sempre bom lembrar que nossa luta por um paĂs de leitores Ă© estratĂ©gia e configuração, nĂŁo reparação. A prioridade em educação e cultura Ă© a antecipação do futuro. Saibamos construĂ-lo.