Fiquei boquiaberto quando Josiane Lopes me falou que em Caratinga, cidade onde nasceu, e cuja residĂŞncia localizava-se junto Ă rodoviária, nĂŁo era incomum que, um dia, um sujeito que matara alguĂ©m, a facada ou foiçada num dos inĂşmeros distritos, fugisse para o Rio de Janeiro ou SĂŁo Paulo e que, decorridos alguns anos, certo de que o crime já prescrevera na memĂłria dos habitantes, voltasse para rever os parentes, e, mal os pĂ©s tocavam o estribo do Ă´nibus, caĂa abatido com trĂŞs tiros no peito. Na parede da casa onde morávamos havia marcas de balas, ela rememorava, com naturalidade, no inĂcio da dĂ©cada de 1980, em Juiz de Fora. Eu frequentava o apartamento que Josiane dividia com a irmĂŁ, Josete, na rua Santo AntĂ´nio, para filar os Ăłtimos almoços que elas preparavam com o dinheiro curto, e que para mim eram mais divinos ainda, já que durante o resto da semana tinha que me contentar com a pĂ©ssima comida servida no Restaurante Universitário da Universidade Federal.
Digo que fiquei boquiaberto porque este tipo de ocorrĂŞncia era absolutamente incomum na minha cidade, Cataguases. Lá convivĂamos com a violĂŞncia domĂ©stica – marido agredindo a mulher, ambos agredindo os filhos –, mas eram raros, ou melhor, rarĂssimos, os casos de roubo ou assassinato. Havia furtos, geralmente de pouca importância, e a cadeia vivia lotada de “vagabundos, marginais e desordeiros”, rubrica na qual a polĂtica repressiva da ditadura militar incluĂa todos aqueles que “importunassem a ordem estabelecida”, como gostava de bradar o famoso delegado, famoso por torturar pessoalmente os presos.
Na verdade, tudo isso nos parecia muito distante, alienados que estávamos, minha famĂlia, mergulhados na sobrevivĂŞncia cotidiana. NĂłs, que vivĂamos num cortiço encravado na Vila Teresa, finalmente havĂamos conseguido adquirir um lote no ParaĂso, bairro novo, cujo arruamento precário carecia de iluminação elĂ©trica e redes de água e esgoto. A duras penas, construĂmos uma casa, em regime de mutirĂŁo, e nos mudamos para lá no inĂcio dos anos 1970. Cada um contribuĂa como podia para o orçamento domĂ©stico: meu pai vendia pipoca na praça Santa Rita, meu irmĂŁo e minha irmĂŁ trabalhavam numa das fábricas de tecidos – ele como contramestre, ela como tecelĂŁ –, e eu, montado numa velhĂssima bicicleta inglesa Rambler, aro 26, carregava as trouxas de roupa que minha mĂŁe lavava e passava para fora.
Mas, em 1976, aos quinze anos, fui contratado para trabalhar na seção de algodĂŁo hidrĂłfilo da Companhia Manufatora Mineira de Tecidos de AlgodĂŁo – aliás, Ăşnico setor que ainda funciona naquela empresa, que, como quase todo o resto do parque industrial da cidade, desmoronou. A primeira providĂŞncia que tomei foi passar no Ulisses, que tendo começado com uma oficina de conserto de bicicletas na Vila Teresa, agora possuĂa uma revenda, para adquirir uma Monark aro 28, novinha, cor laranja, dando a Rambler de entrada…
Por quatro meses andei orgulhoso pelas ruas da cidade, montado no selim da minha bicicleta, que tinha capa com escudo do Flamengo, indo e voltando para o trabalho, indo e voltando para o Ginásio Antônio Amaro, onde estudava à noite. Mas, infelizmente, não durou muito minha alegria. Na madrugada de sábado de carnaval de 1977, acordei assustado, acreditando ter ouvido barulho no quintal. Sentei na cama, assuntei o breu da noite, mas me convenci de que fora apenas um sonho.
No entanto, ao levantar no dia seguinte e procurar a bicicleta que dormia estacionada na varanda, apenas um frágil cadeado a prender a roda traseira, meu coração sobrepassou. Pensei que talvez eu a tivesse colocado em outro lugar e rodeei toda a casa, sem sucesso: ela havia desaparecido… Ainda incrĂ©dulo, percorri todo o bairro, na esperança de que alguĂ©m a tivesse pegado emprestado sem me avisar ou de brincadeira a houvesse escondido somente para me assustar, mas, no fundo, eu sabia, nunca mais a veria… Voltei, minha mĂŁe me aguardava na cozinha, eu a abracei, e sĂł entĂŁo as pernas fraquejaram e as lágrimas transbordaram pelo meu rosto…
Passei oito meses pagando prestações de uma bicicleta que nĂŁo possuĂa, andando a pĂ© e de Ă´nibus, os olhos secos, o peito opresso, as mĂŁos vazias.
Luz na escuridĂŁo
Alberto Mussa, romancista, contista, tradutor, ensaĂsta: “Depois que terminei o ciclo do CompĂŞndio mĂtico do Rio de Janeiro, quis dar um tempo na ficção, precisava me desligar do ambiente daqueles cinco livros. E decidi escrever um ensaio, planejado há muitos anos, que se chama A origem da espĂ©cie: o roubo do fogo e a noção de humanidade. Estudei mais de trezentos mitos sobre a origem do fogo e reconstituĂ o que presumo ser sua versĂŁo original, a histĂłria do roubo do fogo como foi contada pela primeira vez, há pelo menos 160 mil anos (segundo meus cálculos). Procurei tambĂ©m entender a importância desse mito para a humanidade prĂ©-histĂłrica, e concluĂ que ele representou um verdadeiro programa ideolĂłgico, que define a prĂłpria noção do que Ă© ser humano. Agora enfrento o grande desafio da minha carreira: escrever um romance passado nos anos 1970, na Zona Norte do Rio. Digo que Ă© um desafio porque nunca cheguei tĂŁo perto de mim mesmo. A trama do livro (que tambĂ©m será policial) envolve o ambiente das escolas de samba, dos botequins, das favelas, dos terreiros de umbanda, do jogo do bicho, do EsquadrĂŁo da Morte. O romance já tem nome: Fantástico desfile da escola de samba Floresta do AndaraĂ”.
Parachoque de caminhĂŁo
“O fascismo Ă© uma praga difĂcil de exterminar. (…) E contra ele sĂł há um remĂ©dio verdadeiro: conquistar e manter a todo custo a liberdade do homem, e sĂł há liberdade entre os homens quando cada um vale pelo seu trabalho – e nĂŁo pelo seu nascimento nem pelos seus privilĂ©gios.”
Rubem Braga (1913-1990)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Auta de Souza
(MacaĂba, RN, 1876 – Natal, RN, 1901)
SĂşplica
Se tudo foge e tudo desaparece,
Se tudo cai ao vento da Desgraça,
Se a vida é o sopro que nos lábios passa
Gelando o ardor da derradeira prece;
Se o sonho chora e geme e desfalece
Dentro do coração que o amor enlaça,
Se a rosa murcha inda em botão, e a graça
Da moça foge quando a idade cresce;
Se Deus transforma em sua lei tĂŁo pura
A dor das almas que o Ideal tortura
Na demĂŞncia feliz de pobres loucos…
Se a água do rio para o oceano corre,
Se tudo cai, Senhor! por que nĂŁo morre
A dor sem fim que me devora aos poucos?
(Horto, 1900)