🔓 A palavra e o silêncio

Conversa com Aline Bei aborda os vários significados que o silêncio, a infância e o tempo podem adquirir na escrita literária
Ilustração: Carolina Vigna
01/08/2021

Conversa com Aline Bei

1.
Carola: Tua escrita é um acontecimento único. Ela me chamou a atenção desde o início, especialmente porque você narra a partir da falta. À beira do abismo. Uma narrativa que exige muita coragem, esse lugar da fragilidade, que a meu ver, é o lugar da grande arte. Tenho pensado muito nisso, em formas de habitar a falta. De suportar nossa fragilidade, nosso desamparo. Como é isso para você, essa trajetória, esse caminho?

Aline Bei:
narro a partir de duas Perdas
que eu tive,

o Teatro
e a Poesia.

ainda que, curiosamente, eu sinta os dois pulsarem na minha linguagem, eles são a base de tudo, o Teatro, a Poesia
e a Infância
os três estão mais conectados dentro de mim do que consigo dizer nessas linhas.
se eu tivesse que escolher uma única palavra para o meu processo criativo
seria a Infância e
não pisco quando digo isso, tenho Certeza, a infância é o meu abandono.
ter sido pequena
moldou a mulher que eu sou.
me lembro bem da sensação: pernas adultas ao redor dos meus brinquedos
versus
a potência do desejo (a infância) que nos leva para a fase mais divina do ser humano, o seu Começo.
escrever a partir disso
me conecta com a menina que fui, com o Palco que já não habito, com a Poesia e o seu vulto majestoso
a Poesia que nunca
me olhou nos olhos
no fundo, escrevo
a partir do Desejo.

Carola: Que bonito, querida. Me lembrei agora de um verso (de Borges) que a Maria Esther Maciel citou quando conversei com ela (e que me tocou muito): “Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las, e que essas perdas, agora, são o que é meu”. Fiquei pensando no que você disse, nessa tríade de perdas teatro-poesia-infância, e especialmente na infância, há uma sabedoria muito profunda na infância, eu percebi isso quando tive a minha filha, e agora vendo-a crescer. E me lembrei de uma frase do Ailton Krenak, que diz: “Perguntar para uma criança o que ela quer ser é uma ofensa. Isso é apagar o que ela já é”.

Aline Bei:
que lindo, Carola. penso na minha sobrinha, de dois anos. ela está numa fase que não quer dormir, quer estar
na vida, acesa, absorvendo, trocando, correndo por todos os cantos da casa.
quer afastar
o Cansaço, de alguma forma já intui que viver é um jogo de perdas, mas ainda não aceita isso, e
quando dorme, finalmente
é um desmaio.
ver a intensidade de sua Luta, ainda que ela habite um corpo tão pequeno, é muito inspirador.

2.
Carola: Quando começou a pandemia me senti sem palavras, como se elas tivessem me abandonado, ou perdido o sentido. O livro no qual eu estava trabalhando também deixou de fazer sentido. Por muito tempo achei que não seria capaz de escrever nada, mas depois a escrita veio como uma necessidade urgente, uma forma de continuar no mundo. De compreendê-lo.

Aline Bei:
a palavra como forma de continuar no mundo. ah, que Lindo, Carola!
e veja, o Silêncio é fundamental nesse processo de aproximação das histórias que queremos contar.
é preciso respeitar o Tempo. ser atravessada por Ele.
se calar, pelo Tempo que for necessário. dizer, quando a Febre chegar.
escrever com febre, cansar os dedos, escrever caindo
do alto de um precipício.

me lembrei de duas Artistas que amo e de coisas lindas que elas disseram e que guardo comigo. uma é a Virginia Woolf. ela diz o seguinte:

“…as palavras, assim como nós, para viver à vontade, precisam de privacidade. Sem dúvida, gostam que pensemos e gostam que sintamos antes de usá-las, mas também gostam que paremos, que fiquemos inconscientes. Nossa inconsciência é a privacidade delas; nossa escuridão é a luz delas… Dá-se aquela pausa, desce-se aquele véu de escuridão, para que as palavras se sintam tentadas a se unir num daqueles casamentos rápidos que geram imagens perfeitas e criam uma beleza imorredoura”.

e a Pina Bausch:

“Nossos sentimentos, todos eles, são muito precisos, mas é um processo muito, muito difícil torná-los visíveis. Sempre tenho a sensação de que é algo com que se deve lidar com muito cuidado. Se eles forem nomeados muito rápido com palavras, desaparecem ou se tornam banais. Mas, mesmo assim, é um saber preciso que todos temos, e a dança, a música, etc. são uma linguagem bem exata, com que se pode fazer pressentir esse saber. Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se de vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida. E, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte”.

ou seja: você jamais deixou de gestar os seus Livros.

Carola: Curiosamente, o silêncio nunca me incomodou, até a pandemia. Porque na pandemia (ao menos no início) era um silêncio diferente daquele que eu conhecia. Como se o tempo (e as palavras) estivessem em suspenso não só no mundo lá fora, mas também dentro de mim. Algo muito estranho e que eu nunca havia vivenciado. Pensando agora com mais calma acho que há silêncios-vida e silêncios-morte. E eu me deparei com um silêncio-morte num sentido coletivo, acho que foi isso. Mas sim, concordo com você, a gente começa a gestar muito antes da escrita propriamente dita. Adorei as citações que você trouxe. Deixo aqui uma das minhas preferidas sobre o assunto, que é da Suely Rolnik, em seu livro Esferas da insurreição:

Os guarani chamam a garganta de (…) “ninho das palavras-alma”. (…) É porque eles sabem que embriões de palavras emergem da fecundação do ar do tempo em nossos corpos (…) Que as palavras tenham alma e a alma encontre suas palavras é tão fundamental para eles que consideram que a doença, seja ela orgânica ou mental, vem quando estas se separam (…). Eles sabem igualmente que há um tempo próprio para sua germinação e que, para que esta vingue, o ninho tem que ser cuidado. Estar à altura desse tempo e desse cuidado para dizer o mais precisamente possível o que sufoca e produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está aflorando diante disso para que a vida recobre um equilíbrio — não será esse o trabalho do pensamento propriamente dito? (…) não será nisso afinal que consiste o trabalho de uma vida.

Aline Bei:
que trecho maravilhoso, esse da Suely. concordo com você
sobre o silêncio morte e o silêncio vida.
mas penso que
na palavra silêncio há muita vida, e só vida.
o silêncio da morte não é exatamente um silêncio, é uma dureza definitiva, a imobilidade perpétua. e penso que o silêncio é fruto de um movimento interno bastante intenso, esse de absorver a vida em suas complexidades.
gostaria de estar na sua frente agora, para dançar o que sinto em relação ao silêncio, imagine
que danço.
te imagino assistindo
e assim temos o nosso diálogo mais completo
todo construído a partir do enigma silêncio-movimento-respiração-Dor.

3.
Carola: Tanto O peso do pássaro morto quanto Pequena coreografia do adeus são romances escritos em versos. Como surgiu essa experiência? Que mundos ela atravessa?

Aline Bei:
o mundo das Perdas. quando comecei a escrever, imaginei que eu era poeta. escrevia quebrando frases, mas pensava que eram versos. até que
as pessoas me contaram
que não era poesia
(não?)
mas também não era prosa
(nada)
era algo
que ficava na fronteira
dos gêneros.
em um primeiro momento me senti Triste.
depois decidi acolher essa voz fragmentada, de vidro
investigar as suas possibilidades
e limitações
usar as minhas palavras magras, são essas
as pedras que tenho, para traçar o meu caminho
a minha longa viagem dentro do meu pequeno círculo.  

Carola: Você fala em perdas, e eu ao te ler agora penso em palavras-perdas, como se você escrevesse com palavras-perdas, e ao mesmo tempo, com palavras-pedras, numa construção muito especial. Um poema pode ser um edifício, uma catedral, uma montanha, algo que se ergue a partir do nada, ou a partir de uma força primordial.

Aline Bei:
é Isso.
as nossas palavras são feitas de algum material íntimo + algum material que está no mundo, uma mistura de, por exemplo, ferro e mágoa. palavra-mágoa com textura de ferro.
a minha: palavra-perda com textura de pedra.
a do Manoel de Barros: palavra-infância com textura de terra.
e a Sua? qual é a mistura de elementos das suas palavras?  

Carola: Que bonita essa ideia, essa pergunta, de que material são feitas as nossas palavras? As minhas? Talvez: palavras-sonho (ancestral?) com textura de terra.

4.
Carola: Você vem do teatro. Há uma atriz que escreve? Como foi essa passagem (se é que houve uma passagem), do teatro para a literatura? Ou é uma via de mão dupla? Que diferenças existem (ou não) na construção de um personagem?

Aline Bei:
é a minha atriz que escreve, foi ela que encontrou no silêncio da página uma forma de se expressar, ela e a menina que fui. a escritora que está na superfície da minha pele tenta orquestrar essas vozes, mas o jorro da criação é a partir do corpo teatro-infância. penso que estão todas na minha barriga. e que a minha barriga é a caixa preta do teatro.
criar uma personagem no palco e na página tem muito em comum.
a única diferença que vejo é que no livro o corpo do personagem é evocado
no teatro o corpo se materializa.
mas as entranhas do processo criativo se parecem muito.
nos dois, é preciso encontrar dentro de si pontes emocionais possíveis com o personagem retratado
para colocá-lo em movimento sem julgar o seu voo, é preciso colocar as coisas em movimento com o ritmo da própria coisa e não com o seu.
é também olhar para um objeto com peso narrativo.
no teatro, chamamos esses objetos de adereços.
faço isso na literatura também, eu me aproximo
dos objetos, cheiros, tecidos para criar os meus personagens na folha.
quando eu era atriz, deixava esses portais no camarim.
agora que escrevo deixo na minha mesa de trabalho.
antes era o espelho, eu encontrando no meu rosto o rosto do meu personagem.
agora é o computador, os dedos, as minhas palavras encontrando as palavras da história que quero contar.
há um termo no teatro, para quando os atores ainda estão no processo de destrinchar o texto, discutindo as suas complexidades, então dizemos que: “estamos em trabalho de mesa”.
minha escritora
é uma atriz em trabalho de mesa.  

Carola: Que interessante isso, você diz que é a sua atriz que escreve. Acho misterioso, e me lembra os heterônimos do Fernando Pessoa, e um de seus poemas mais famosos:

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. 

Aline Bei:
o Fernando Pessoa é o primeiro Poeta da minha vida.
e será o último, quero ler um verso dele quando chegar a hora de partir.

5.
Carola: Ainda sobre o teatro, eu ando muito interessada em exercícios de escrita e como você também dá oficinas, que exercícios do teatro, da preparação do ator, poderiam ser interessantes para a literatura?

Aline Bei:
eu já fiz, em uma oficina, a experiência de juntar os dois. estávamos em um sítio em Porangaba, passamos o fim de semana lá, criando.
usamos jogos teatrais
para depois, suados, vivos
os escritores-atores irem para a folha ao invés do palco.
foi muito rico porque todos estavam abertos para a experiência.
os exercícios sensoriais, de concentração, toque e presença são os melhores para um artista.
antes de escutar os outros corpos, é preciso escutar o Seu.
uma provocação que sempre proponho nas minhas oficinas: convidar a pessoa mais importante da sua vida para se sentar na sua frente, em silêncio. se olhem, por 15 minutos. escreva sobre a experiência.
(há um livro muito interessante que eu usava quando dava aula de Teatro e também uso nas minhas oficinas de escrita: Jogos teatrais, da Viola Spolin. você verá o quanto de infância que há ali. muitos dos jogos são brincadeiras que fazíamos na rua, e então me lembro de Freud: “O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas a realidade”.) 

Carola: Eu me interesso muito por esse tema, o do brincar, quando criança todos somos artistas, no sentido mais abrangente do termo, criamos o tempo todo, histórias, imagens, etc. Brincar é a ferramenta que a criança tem para compreender o mundo e a si mesma. Depois, ao tornar-se adulta, lhe é vetada a brincadeira (porque para nossa sociedade parece algo sem objetivo), os únicos que se livram dessa maldição são os “artistas”, àqueles a quem a sociedade permite continuar “brincando”. Imagina como seria se todos pudessem ser artistas ou continuar sendo artistas?

Aline Bei:
penso muito nisso. e de tanto pensar viro uma cabeça
andante, de perninhas minúsculas.
pra voltar as formas que não assustam, desincho em versos de Sylvia Plath:  

Dying
is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

6.
Carola:
Em seu artigo The carrier bag theory of fiction, Ursula Le Guin fala sobre uma teoria da ficção como sacola, que remete à uma pré-história de mulheres coletoras, em oposição à ficção enquanto “a jornada do herói”, que seria a narrativa daqueles que foram caçar o mamute. Ela comenta que a caça ao mamute parece realmente bem mais emocionante do que a narrativa da colheita de aveia, mas nem por isso deveríamos ignorá-la, ao contrário:

It is the story that makes the difference. It is the story that hid my humanity from me, the story the mammoth hunters told about bashing, thrusting, raping, killing, about the Hero. The wonderful, poisonous story of Botulism. The killer story. It sometimes seems that that story is approaching its end. Lest there be no more telling of stories at all, some of us out here in the wild oats, amid the alien corn, think we’d better start telling another one, which maybe people can go on with when the old one’s finished. Maybe. The trouble is, we’ve all let ourselves become part of the killer story, and so we may get finished along with it. Hence it is with a certain feeling of urgency that I seek the nature, subject, words of the other story, the untold one, the life story.

O que seria para você a “história não contada, a história da vida”? Quais caminhos poderiam apontar para uma “Carrier Bag Theory od Fiction/Teoria da ficção como sacola”?

Aline Bei:
estou emocionada com essa perspectiva. sinto que essa é a minha obsessão.
mais que trazer uma heroína para a cena
meu texto é um exercício de olhar para o micro
e então regar, com palavras, a humanidade que há nos pequenos gestos, uma tristeza que atravessa os dias e que de repente passa porque um jazz invadiu a sala, o marido ligou a vitrola depois de meses sem nenhuma música.
para mim, essa busca pela Vida
está especialmente em dois livros que amo: A balada do café triste, da Carson McCullers
e no As i lay dying, do William Faulkner.  

Carola: Eu adoro esse ensaio. E me chama a atenção, além do que você observou, a ideia de carregar algo conosco. Carregar histórias, sementes, filhos, etc. Carregar é um ato de amor, e também de sobrevivência. E está relacionado diretamente ao corpo, carregamos no corpo a narrativa que virá, em silêncio.

Aline Bei:
que lindo. e então, o verbo gestar de alguma forma volta
para a nossa cena.
o palco está em Vermelho agora, veja
e então penso, inevitavelmente, em Louise Bourgeois.
ela gostava de fazer, enquanto tomava café da manhã, pequenas esculturas com as banhas do pão.
e dizia que: Todo dia você tem que abandonar o seu passado ou aceitá-lo, e se não conseguir aceitá-lo, torna-se uma escultora.
talvez seja possível trocar a palavra escultora por artista.

7.
Carola: Deixo aqui um dos meus poemas preferidos da Alfonsina Storni.

¿Qué diría?

¿Qué diría la gente, recortada y vacía,
Si en un día fortuito, por ultrafantasía,
Me tiñera el cabello de plateado y violeta,
Usara peplo griego, cambiara la peineta
Por cintillo de flores: miosotis o jazmines,
Cantara por las calles al compás de violines,
O dijera mis versos recorriendo las plazas,
Libertado mi gusto de vulgares mordazas?
¿Irían a mirarme cubriendo las aceras?
¿Me quemarían como quemaron hechiceras?
¿Campanas tocarían para llamar a misa?
En verdad que pensarlo me da un poco de risa.

Aline Bei:
recebo.
Acolho.
entrego, em uma Sacola

El poema que no digo,
el que no merezco.
Miedo de ser dos
camino del espejo:
alguien em mi dormido
me come y me bebe.

Alejandra Pizarnik.

Pequena coreografia do adeus
Aline Bei
Companhia das Letras
282 págs.
Aline Bei
Nasceu em São Paulo (SP), em 1987. É formada em letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em artes cênicas pelo teatro-escola Célia Helena. Seu romance de estreia, O peso do pássaro morto (2017), foi vencedor do prêmio São Paulo de Literatura e do prêmio Toca, além de finalista do Prêmio Rio de Literatura. Acaba de lançar Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras).
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho