🔓 A minha primeira vez

Os meus primeiros poemas eram um lixo. Por exemplo, rimavam olhos com abrolhos e coisas assim patéticas. Então aconteceu outro choque
O poeta moçambicano José Craveirinha
04/01/2021

No ano atípico e horribilis que acaba de deixar-nos, com um misto de sinais — da possibilidade de vacinação contra a Covid 19, graças à cooperação global no domínio da ciência, ao crescimento, um pouco por todo o lado, do pensamento retrógrado e protofascista, supremacista identitário, negacionista e anticientífico —, assinalei, pessoalmente, 50 anos de escrita literária. Tenho muitas ideias, planos e projetos para o futuro, mas, neste texto, pretendo evocar como foi “a minha primeira vez”, contando com a generosidade dos leitores para “receberem” com benevolência as curiosidades que partilharei nas próximas linhas.

Comecei a escrever poesia — por onde, em regra, começam todos os adolescentes aspirantes a escritores — em 1970, aos 15 anos de idade, depois de uma viagem de comboio [trem] entre Luanda e Malanje, uma cidade localizada no nordeste de Angola, a cerca de 400 quilómetros da primeira. Pode parecer estranho, mas é facto. Além disso, talvez dê — passe a presunção — uma boa frase de efeito.

Eu já vivia rodeado de livros e lia bastante, para a idade. Além de pertencer a uma família de artistas e intelectuais, quer pelo lado materno quer paterno, na casa onde passei a infância e a adolescência, havia várias estantes com livros, sobretudo clássicos portugueses. Recebíamos também regularmente duas revistas brasileiras — Manchete e Cruzeiro —, cujos e cujas cronistas, entre elas a grande Rachel de Queiroz, me encantavam (além dos desenhos de Péricles).

Eu não morei com o meu pai desde os meus 6 anos, pois em 1961 ele, que era jornalista profissional e — descobri-o mais tarde — também escrevia contos e peças de teatro, abandonou Angola para juntar-se à luta armada pela independência de Angola. Só voltei a vê-lo em dezembro de 1974, depois do 25 de abril em Portugal. Lembro-me que, após o nosso reencontro, e quando soube que eu queria ser escritor, ele disse-me: “Se queres ser escritor, tens de ler Eça”. Conselho sábio, que até hoje agradeço.

O meu padrasto, com quem a minha mãe casou anos depois, foi um segundo pai para mim e o meu irmão. Ele cultivava igualmente o gosto pela leitura e o conhecimento em geral e estimulou-nos muito. Lembro que ele gostava de ler as minhas redações escolares e discuti-las comigo, dando-me ideias.

Os meus tios pelo lado materno — Henrique Guerra e Mário Guerra — também eram escritores, estavam ligados à importante revista Cultura, publicada em Angola entre 1957 e 1960, e certamente contribuíram ainda mais para a minha curiosidade pelos livros. Além disso, eram ambos artistas plásticos. Estar com eles, portanto, ouvi-los, vê-los trabalhar, inoculou em mim alguma coisa inexplicável, que apenas mais tarde compreenderia.

Em 1970, fiz a minha primeira viagem de comboio — coisa que amo até hoje fazer — de Luanda a Malanje, para passar umas férias com os familiares do meu pai. Não esqueço essa viagem, principalmente por causa da paisagem, em especial a floresta do morro do Mbinda, com todo aquele verde exuberante e extraordinário. Literalmente, aquela visão provocou um pequeno sismo dentro de mim. Considero-o um autêntico choque criativo.

A verdade é que cheguei a Luanda, no fim das férias, só pensando em escrever. Antes peguei novamente em alguns livros, para voltar a lê-los. Recordo-me perfeitamente que li um poema que Pessoa tinha escrito à sua mãe, aos 5 anos de idade, e pensei então, ingénua e arrogantemente: “Se ele, com 5 anos, escreveu um poema, então eu, que tenho 15, também posso fazê-lo!”.

Os meus primeiros poemas eram um lixo. Por exemplo, rimavam olhos com abrolhos e coisas assim patéticas. Então aconteceu outro choque. Naquele mesmo ano, 1970, fui com a família a Portugal, passar as chamadas “férias graciosas” (três meses de férias que todos os funcionários públicos, como a minha mãe e o meu padrasto, tinham direito de quatro em quatro anos, durante a época colonial). Essa viagem definiu o meu futuro percurso literário.

Durante a referida estada em Lisboa, fomos uma noite à casa de Rui Mingas, grande músico angolano, um dos autores do hino nacional do país (ele musicou também um belo poema de Solano Trindade), pois as nossas famílias eram conhecidas. No meio da conversa, creio que o meu padrasto lhe disse que eu “escrevia poemas”; então, ele foi à estante e entregou-me um exemplar da antologia Poesia negra de expressão portuguesa, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro. Foi um autêntico “alumbramento”, como diria Manuel Bandeira. Naquele momento, descobri imediatamente que não podia mais continuar a escrever como escrevia: aquela era a poesia que eu tinha de escrever!

De facto, depois de ler aqueles poemas, escritos por Viriato da Cruz, Agostinho Neto, António Jacinto, Costa Andrade, Alda do Espírito Santo, Onésimo da Silveira, Noémia de Sousa, José Craveirinha e tantos outros, aprendi definitivamente que eu precisava de escrever sobre a minha própria realidade geográfica, antropológica, histórica, social e política.

Não posso igualmente deixar de mencionar alguns poetas brasileiros que me ajudaram também a encontrar esse caminho, tal como já tinha acontecido a outros autores das gerações anteriores à minha e que foram responsáveis pela autonomia da literatura angolana moderna. Cito, entre eles, dois nomes: Jorge de Lima e Manuel Bandeira. E, num registo diferente, João Cabral de Melo Neto, cuja leitura me mostrou aquilo que mais tarde “intelectualizei” com a leitura de Bakhtin: “o conteúdo está na forma”.

Comecei, pois, a escrever poemas nesse sentido. De todos os poemas que escrevi ainda em 1970, depois desses “choques”, sobreviveu apenas um deles, felizmente, O aprendiz de kimbanda, que incluí no meu terceiro livro, Poemas angolanos. A série de canções líricas, que compus na mesma época tentando resgatar uma certa tradição rural e oral, também faz parte desse livro. Algumas delas foram os meus primeiros textos literários impressos e divulgados, o que aconteceu em 1973, na revista Semana Ilustrada, publicada em Luanda.

Entretanto, o meu primeiro livro — Definição, título que hoje eu trocaria — só seria publicado treze anos mais tarde, em 1986. Naquele tempo, não tínhamos pressa de publicar ou de ter sucesso instantaneamente. O mundo ainda não sucumbira à vertigem da velocidade e do êxito fácil e temporário.

* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico e variante angolana da língua portuguesa.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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