No ano atĂpico e horribilis que acaba de deixar-nos, com um misto de sinais — da possibilidade de vacinação contra a Covid 19, graças Ă cooperação global no domĂnio da ciĂŞncia, ao crescimento, um pouco por todo o lado, do pensamento retrĂłgrado e protofascista, supremacista identitário, negacionista e anticientĂfico —, assinalei, pessoalmente, 50 anos de escrita literária. Tenho muitas ideias, planos e projetos para o futuro, mas, neste texto, pretendo evocar como foi “a minha primeira vez”, contando com a generosidade dos leitores para “receberem” com benevolĂŞncia as curiosidades que partilharei nas prĂłximas linhas.
Comecei a escrever poesia — por onde, em regra, começam todos os adolescentes aspirantes a escritores — em 1970, aos 15 anos de idade, depois de uma viagem de comboio [trem] entre Luanda e Malanje, uma cidade localizada no nordeste de Angola, a cerca de 400 quilómetros da primeira. Pode parecer estranho, mas é facto. Além disso, talvez dê — passe a presunção — uma boa frase de efeito.
Eu já vivia rodeado de livros e lia bastante, para a idade. AlĂ©m de pertencer a uma famĂlia de artistas e intelectuais, quer pelo lado materno quer paterno, na casa onde passei a infância e a adolescĂŞncia, havia várias estantes com livros, sobretudo clássicos portugueses. RecebĂamos tambĂ©m regularmente duas revistas brasileiras — Manchete e Cruzeiro —, cujos e cujas cronistas, entre elas a grande Rachel de Queiroz, me encantavam (alĂ©m dos desenhos de PĂ©ricles).
Eu não morei com o meu pai desde os meus 6 anos, pois em 1961 ele, que era jornalista profissional e — descobri-o mais tarde — também escrevia contos e peças de teatro, abandonou Angola para juntar-se à luta armada pela independência de Angola. Só voltei a vê-lo em dezembro de 1974, depois do 25 de abril em Portugal. Lembro-me que, após o nosso reencontro, e quando soube que eu queria ser escritor, ele disse-me: “Se queres ser escritor, tens de ler Eça”. Conselho sábio, que até hoje agradeço.
O meu padrasto, com quem a minha mãe casou anos depois, foi um segundo pai para mim e o meu irmão. Ele cultivava igualmente o gosto pela leitura e o conhecimento em geral e estimulou-nos muito. Lembro que ele gostava de ler as minhas redações escolares e discuti-las comigo, dando-me ideias.
Os meus tios pelo lado materno — Henrique Guerra e Mário Guerra — tambĂ©m eram escritores, estavam ligados Ă importante revista Cultura, publicada em Angola entre 1957 e 1960, e certamente contribuĂram ainda mais para a minha curiosidade pelos livros. AlĂ©m disso, eram ambos artistas plásticos. Estar com eles, portanto, ouvi-los, vĂŞ-los trabalhar, inoculou em mim alguma coisa inexplicável, que apenas mais tarde compreenderia.
Em 1970, fiz a minha primeira viagem de comboio — coisa que amo até hoje fazer — de Luanda a Malanje, para passar umas férias com os familiares do meu pai. Não esqueço essa viagem, principalmente por causa da paisagem, em especial a floresta do morro do Mbinda, com todo aquele verde exuberante e extraordinário. Literalmente, aquela visão provocou um pequeno sismo dentro de mim. Considero-o um autêntico choque criativo.
A verdade é que cheguei a Luanda, no fim das férias, só pensando em escrever. Antes peguei novamente em alguns livros, para voltar a lê-los. Recordo-me perfeitamente que li um poema que Pessoa tinha escrito à sua mãe, aos 5 anos de idade, e pensei então, ingénua e arrogantemente: “Se ele, com 5 anos, escreveu um poema, então eu, que tenho 15, também posso fazê-lo!”.
Os meus primeiros poemas eram um lixo. Por exemplo, rimavam olhos com abrolhos e coisas assim patĂ©ticas. EntĂŁo aconteceu outro choque. Naquele mesmo ano, 1970, fui com a famĂlia a Portugal, passar as chamadas “fĂ©rias graciosas” (trĂŞs meses de fĂ©rias que todos os funcionários pĂşblicos, como a minha mĂŁe e o meu padrasto, tinham direito de quatro em quatro anos, durante a Ă©poca colonial). Essa viagem definiu o meu futuro percurso literário.
Durante a referida estada em Lisboa, fomos uma noite Ă casa de Rui Mingas, grande mĂşsico angolano, um dos autores do hino nacional do paĂs (ele musicou tambĂ©m um belo poema de Solano Trindade), pois as nossas famĂlias eram conhecidas. No meio da conversa, creio que o meu padrasto lhe disse que eu “escrevia poemas”; entĂŁo, ele foi Ă estante e entregou-me um exemplar da antologia Poesia negra de expressĂŁo portuguesa, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco JosĂ© Tenreiro. Foi um autĂŞntico “alumbramento”, como diria Manuel Bandeira. Naquele momento, descobri imediatamente que nĂŁo podia mais continuar a escrever como escrevia: aquela era a poesia que eu tinha de escrever!
De facto, depois de ler aqueles poemas, escritos por Viriato da Cruz, Agostinho Neto, AntĂłnio Jacinto, Costa Andrade, Alda do EspĂrito Santo, OnĂ©simo da Silveira, NoĂ©mia de Sousa, JosĂ© Craveirinha e tantos outros, aprendi definitivamente que eu precisava de escrever sobre a minha prĂłpria realidade geográfica, antropolĂłgica, histĂłrica, social e polĂtica.
Não posso igualmente deixar de mencionar alguns poetas brasileiros que me ajudaram também a encontrar esse caminho, tal como já tinha acontecido a outros autores das gerações anteriores à minha e que foram responsáveis pela autonomia da literatura angolana moderna. Cito, entre eles, dois nomes: Jorge de Lima e Manuel Bandeira. E, num registo diferente, João Cabral de Melo Neto, cuja leitura me mostrou aquilo que mais tarde “intelectualizei” com a leitura de Bakhtin: “o conteúdo está na forma”.
Comecei, pois, a escrever poemas nesse sentido. De todos os poemas que escrevi ainda em 1970, depois desses “choques”, sobreviveu apenas um deles, felizmente, O aprendiz de kimbanda, que incluĂ no meu terceiro livro, Poemas angolanos. A sĂ©rie de canções lĂricas, que compus na mesma Ă©poca tentando resgatar uma certa tradição rural e oral, tambĂ©m faz parte desse livro. Algumas delas foram os meus primeiros textos literários impressos e divulgados, o que aconteceu em 1973, na revista Semana Ilustrada, publicada em Luanda.
Entretanto, o meu primeiro livro — Definição, tĂtulo que hoje eu trocaria — sĂł seria publicado treze anos mais tarde, em 1986. Naquele tempo, nĂŁo tĂnhamos pressa de publicar ou de ter sucesso instantaneamente. O mundo ainda nĂŁo sucumbira Ă vertigem da velocidade e do ĂŞxito fácil e temporário.
* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico e variante angolana da lĂngua portuguesa.