* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
O meu “negócio” são as palavras. Mas, ao contrário da experiência da brasileira Conceição Evaristo, que ela mesma contou em recente entrevista a um programa televisivo local, eu nasci rodeado de palavras escritas, o que talvez contrarie certas ideias românticas, para não lhes chamar estereótipos, relativos a África e aos africanos. Filho de um casal da classe média baixa urbana, com todos os limites desse conceito num contexto colonial como aquele em que nasci, cresci rodeado de jornais, revistas e livros. A escola apenas reforçou isso. O meu temperamento também ajudou, pois nunca fui nem sou, digamos assim, muito “oral”. Por força de vários ofícios que tive ao longo da vida, aprendi a falar em público, mas ainda hoje tenho verdadeiro pavor quando me pedem que diga “umas palavrinhas” no aniversário de um familiar ou amigo qualquer.
Sempre preferi, pois, ler e escrever. A chamada oralidade africana captei-a nas conversas que ouvia em casa – felizmente, pertenço a uma família vasta, cheia de misturas de cores, tipo de educação, experiências e níveis sociais –, na rua e, por estranho que pareça, nas minhas primeiras leituras, nomeadamente da poesia de Viriato da Cruz, António Jacinto e outros, bem como das narrativas de Arnaldo Santos, Benúdia e Luandino Vieira. Outra nota imperiosa: essa oralidade não constituía uma réplica fiel da tradição lírica do mato (campo), mas correspondia – isso, sim – à sua reprodução urbana, articulada e desarticulada com o português falado na cidade de Luanda, onde nasci e cresci.
A oralidade sempre foi para mim uma forma de interação social e, a partir do momento em que comecei a escrever, uma espécie de “material literário”. Tenho poucas ou nenhumas dúvidas de que a escrita foi um avanço civilizacional decisivo. Melhor, tinha, até recentemente. Nos últimos quarenta anos, começámos a assistir a uma evidente degradação da linguagem escrita, primeiro com o advento da televisão e do vídeo, que foram assumindo o “monopólio da fala”, como ensinou Muniz Sodré (afinal, o “vídeo” está em todo o lado, dos aparelhos de TV aos computadores, smartphones, painéis publicitários e tutti quanti), e depois pela crescente implantação da linguagem digital, deliberadamente assente em processos binários, limitados por definição. Por conseguinte, tenho cada vez mais dúvidas sobre as virtualidades prospetivas da linguagem.
Como poderemos, nos dias de hoje, formular e expressar os sonhos de construção, invenção e redenção que sempre moveram os seres humanos, ao longo da sua história? Há quarenta anos, na sequência da crise da modernidade clássica, da ocorrência da revolução nos transportes e nas tecnologias de comunicação e do advento da globalização, pensámos ser possível expandir ao máximo as possibilidades da linguagem. Do pós-modernismo à desconstrução, aos jogos de linguagem, ao pós-colonialismo, às novas teorias de género e outras, pensámos ser possível regenerar a humanidade simplesmente trazendo à cena todos os anteriores excluídos. No plano da literatura, esta seria, acreditávamos, cada vez mais criativa e “desenvolvida”, o que se via “nas tramas e estruturas cada vez mais complexas”.
Salvo um ou outro caso isolado, nada disso aconteceu em geral. Pelo contrário, a tendência que se tornou predominante é – digo-o sem receio – assustadora: como consequência da crescente colonização por parte do vídeo e da linguagem digital, assistimos a um predomínio da cultura do entretenimento, ao empobrecimento da linguagem escrita, à redução do vocabulário, à implantação da interpretação literal, ao advento do pensamento binário e à supremacia do debate em detrimento do diálogo. Assim, subtilezas linguísticas, trocadilhos e outros procedimentos são incompreendidos. O humor e a ironia estão cada vez mais sob suspeita. Autores de best sellers, cada vez mais confundidos com influenciadores digitais e “celebridades”, esnobam (gosto deste verbo inventado pelos brasileiros) daqueles que, parafraseando o grande pintor riograndense Iberê Camargo, escrevem “porque o mundo dói”. Quanto aos autores “inovadores”, o mercado absorve apenas os que lhes convêm.
Lamento informar que, de um modo geral, e havendo uma guerra óbvia por espaços (“lugares de fala”, “divulgação”, “mercados”), todos os atores podem eventualmente ser contaminados por tais males. Por um lado, aqueles que dominaram o mundo pelo menos nos últimos quinhentos anos, assustados com a possibilidade de emergência dos excluídos apostados em reescrever a história, cerram fileiras em torno de ideologias e projetos supremacistas e protofascistas; por outro, os excluídos e marginalizados, desejosos de ocupar os espaços a que, como indivíduos, têm direito, caem por vezes na tentação de mimetizar as práticas dos dominadores, enfraquecendo, portanto, as suas próprias lutas (por exemplo, defender, com justeza, a necessidade de dar voz a autores e temas homossexuais e discriminar autores e temas heterossexuais devido à sua tonalidade… heterossexual, como se os escritos homossexuais ou quaisquer outros não tivessem também uma tonalidade própria; a androginia tem, naturalmente, direito ao seu espaço, mas nem toda a linguagem tem de ser andrógina).
Ou seja: concordo, absoluta e radicalmente, que as palavras precisam de reinventar-se e tornar-se mais inclusivas, mas sem se tornarem vazias, perdendo a sua capacidade de comunicação, e, muito menos, sem cederem a quaisquer tentações excludentes, talvez de sinal contrário, como muitas vezes parece acontecer. Exagero? Atente-se, então, para a seguinte notícia: no Canadá, 150 títulos, entre eles álbuns de Tintin, foram retirados das escolas, por serem considerados “discriminatórios”; uma responsável por um conselho escolar católico, que defende um país “mais inclusivo”, defendeu a queima de livros perigosos, a fim de “enterrar as cinzas do racismo e dos preconceitos”.
É indubitável que a luta contra a segregação, em todas as suas formas e manifestações, implica pôr em causa as estruturas que estão por detrás da mesma, mas é preciso ir mais longe e ultrapassar a ideologia (supremacista e excludente) em que tais estruturas radicam. A atual crise da linguagem talvez seja a expressão da crise de representação da humanidade, a braços com o confronto entre aqueles que querem redimir os seus pecados do passado e aqueles que os querem manter ou – o que dará no mesmo – reproduzir.