🔓 A lama não cobre tudo

Conto inédito de Rodrigo Santos
Ilustração: Denise Gonçalves
01/01/2023

Passava um pouco das nove da manhã, e Anderson já deitava uma long neck na loja de conveniência do posto de gasolina. Quando queria sair do tumulto da cidade, ia pra lá. Pegava uma cerveja e observava os caminhões rasgando a estrada. Madeira, borracha, cimento, e às vezes até animais vivos.

Tinha saudades do mar.

— Bugalu?

Anderson nem virou.

— Não ouço esse nome há anos.

— Porque ninguém aqui te conhece como eu conheço. Posso me sentar?

Anderson fez um meneio de cabeça e indicou a cadeira vazia com o queixo. Sabrina sentou, e colocou a mochila em cima da mesa.

— Você nunca bebia antes das dez. Dizia que um pescador de Arraial do Cabo tinha te ensinado isso.

— É, mas não pretendo pescar hoje mesmo.

Virou a long neck e se levantou, sumindo pela porta da loja. Voltou com mais duas cervejas, uma água com gás e um bombom Serenata de Amor.

— Obrigada. Pela lembrança.

— Você está muito longe de casa, Sabrina.

— E não é? — Bebeu a água de uma vez, comeu o bombom e depois abriu a cerveja, girando a tampinha com ajuda da camisa. — Não sou a única, né? Qual é o teu carro, é aquela caminhonete ali?

— Não, é o Sandero cinza.

— Ora, ora, quem diria. Bom, à nossa.

As garrafas se tocaram, de maneira tímida.

— Como você me achou?

— Ah, cara… Eu sempre soube que você estava vivo. Foi tipo um pavê de improbabilidades, né? Seu corpo nunca foi achado.

Anderson bebeu mais um gole.

— Nem o meu, nem tantos outros que foram soterrados.

— Ao mesmo tempo, teve o lance da escola… Claro que o Instituto Abel, o grande colégio católico de Niterói, não ia deixar vazar, né? Mas eu tava lá, Bugalu. Todo mundo sabia que tinha dado merda. Eu só liguei os pontos.

— Você ainda usa a aliança.

Sabrina olhou para o dedo anelar da mão direita.

— É, ela ainda cabe. Mas não usei esse tempo todo não. Afinal, doze anos, né? Só coloquei para vir te encontrar. Vejo que você não usa nenhuma.

— Não me casei, não. Vivo sozinho nesse fim de mundo.

Sabrina olhou para a estrada, para os caminhões.

— Mas não vive duro, né?

Anderson fez um muxoxo.

— Não posso me queixar.

Ela riu.

— Caralho, Buga. Você roubou a mensalidade de todos os alunos! É muito aluno, e todos pagando caro! Você veio pra Corumbá com a burra cheia de dinheiro, enquanto a gente esperou meses pra ganhar um apartamentinho fudido onde era o 3º BI. Como você fez?

— O quê?

— Como você conseguiu desviar todos aqueles boletos?

Bebeu a cerveja, suspirou. Que mal havia? Doze anos já.

— Eu alterei o código de barras.

— Você o quê?

— Alterei o código de barras. Eu era o responsável pela emissão dos boletos, daí alterei os códigos de barras para que todos os pagamentos fossem para uma conta fantasma. No dia que a barreira do Bumba caiu, eu não estava em casa, tinha ido sacar o dinheiro pra fugir. Eu sabia que ia dar merda, mais cedo ou mais tarde seria pego. Eu estava na rua, com a mala, quando vi pela TV.

Foi a vez da Sabrina levantar e pegar mais duas cervejas, e outra água mineral. Dessa vez ela bebeu primeiro a cerveja.

— Aí tu meteu o pé, foi dado como morto, e pronto, né? Cara, a tua mãe e teu irmão morreram ali. Meu padrasto. Teu parceiro Badureco também, e toda a família dele. E alguns amigos do futebol de sábado. Porra, até o Johnny!

— Johnny era um cachorro maneiro.

— Até o Johnny morreu soterrado por aquela lama toda! Eu ainda consegui tirar a minha mãe e meu irmão, e só.

Anderson suspirou, e olhou para a ponta dos próprios pés.

— Sua mãe, como está?

— Está bem, tirando o problema da pressão, que só piorou. Agora deu pra beber escondido a cachaça da pomba-gira pra gente não reclamar. Depois, tome-lhe furosemida e captopril.

Anderson riu. Corumbá era quente àquela época do ano. O calor refletido no asfalto gerava miragens distorcidas, e os veículos levantavam a poeira fina quando passavam.

— Eu estava voltando pra te buscar — falou, quase em murmúrio.

Sabrina virou a cabeça, e a apoiou com a mão esquerda, fixando o olhar em Anderson.

— Eu estava voltando pra te buscar, a gente ia começar uma vida nova, longe daquela merda. Depois eu via o que ia fazer, buscava minha mãe, sua mãe, o Johnny, sei lá. Mas eu tava cansado de ser fudido, Bina. Tinha pesquisado, dá pra ganhar um bom dinheiro investindo em gado sem ser dono de nada, sabia? Mas quando vi aquelas imagens na TV, pessoas conhecidas chorando, com o rosto cheio de lama… Sei lá. Dei uma pirada.

— Deu uma pirada ou viu a oportunidade perfeita?

— Não sei. As duas coisas.

— E largou todo mundo pra trás, né? Inclusive eu.

Anderson pegou na mão de Sabrina, que recuou como se sentisse as patas pegajosas de um sapo. Ele suspirou, e se ajeitou na cadeira, virando-a de frente pra ela.

— Bina…

— Você deveria ter sido o meu primeiro. — Anderson arregalou os olhos. — A gente se guardando, toda aquela pegação no sofá da tua casa, e eu antecipando o momento maravilhoso de você ser o meu primeiro homem. Um menino trabalhador, inteligente, que me trazia bombons Serenata de Amor, fazendo faculdade com bolsa, enquanto eu limpava aquelas salas, sabe? Aquelas salas imundas, com aquele monte de papel de bala e chiclete jogados pelas crianças ricas e mal-educadas. Eu imaginava a gente junto a vida inteira, filhos brincando nas ruas, você voltando do trabalho, todas essas coisas. Comendo bombons juntos, na cama. Eu sabia que você queria mais, era ambicioso, e eu imaginava que é por isso que você estudava depois do trabalho. Lembro do dia em que você largou o futebol. “Sábado de manhã, Bina. Dá pra mim não, faculdade e trabalho, eu fico acabado”, você disse. E eu acreditei.

— Eu vi que o campo foi destruído no soterramento também, né?

— Foi, mas a prefeitura fez outro depois. — Sabrina bateu com a mão no ar, como se espantasse uma muriçoca. — Eu criei todo esse mundo na minha cabeça, e daí você desaparece debaixo da lama. Chorei, claro. Chorei pra caralho. Achei que minha vida tinha acabado ali. Até descobrir o golpe da mensalidade. Porra, Anderson, eu sabia que tinha sido você! Todo esse tempo eu te cacei. Namorei, dei pra uns filhos da puta que não mereciam nem ter tomado uma cerveja comigo. Quando estava ali, na cama, olhando pro teto e esperando que o infeliz da vez acabasse logo, eu só pensava nisso. Você deveria ter sido meu primeiro. Primeiro e último.

Anderson deitou a garrafa de cerveja boca adentro, e não tinha mais nada. Ele não teve coragem de levantar e pegar outra.

— Doze anos depois, eu te acho. Deu trabalho, mas achei. Aí chego aqui, achando que você era algum barão da soja, mas não. Uma casa mais ou menos, de dois andares, um carro merda, e cinza. Você odiava carro cinza, dizia que era carro de locadora.

— Tenho que voar abaixo do radar.

— Entendo, entendo. Mas me espanta, né? Lembro de você falando naquele sofá que queria um dia ter uma picape, uma Pajero, não é esse o nome? Então. Chego aqui e você tem um… Um Sandero! 1.0!

Os dois riram, e Sabrina foi pegar as cervejas. As garrafas já se acumulavam na mesa.

Dessa vez, ela voltou sem a água. Mas com um bombom.

— Depois de dias de viagem, eu te encontro.

A moça entregou a cerveja, eles abriram e brindaram.

— E te encontro solteiro.

Olhava fixamente para Anderson, enquanto bebia a cerveja. Ela abriu o bombom, e comeu, em duas mordidas.

Entraram na casa quase se engolindo. Anderson mal conseguia respirar, a língua de Sabrina passeava por sua boca, suas bochechas, seu pescoço. Ela nem tinha tirado a mochila das costas, suas mãos apertavam os ombros dele, as unhas se encravando na pele.

Anderson recebia todo aquele carinho com o amor guardado, interrompido pela tragédia. Mais de uma década ele a esperou. Não havia um dia que não acordava e pensava em voltar a Niterói para buscá-la, apesar do medo de ser preso. Investiu a maior parte do dinheiro, tinha bastante coisa guardada, no banco e em casa, mas não tinha aquele beijo. Aquelas mãos.

Subiram para o quarto.

— Vai se preparando, preciso mijar antes. Liga o som, quero ouvir música. E alto, pra ninguém ouvir mais nada. — Ela disse, com um sorriso lascivo, e entrou no banheiro.

Anderson tirou a roupa, ficando apenas de cueca. Ligou o som, colocou em uma rádio local. Era um bairro residencial e proletário, seus vizinhos deviam estar trabalhando, mas ele aumentou o som assim mesmo. Tirou a cueca, achou que era demais, colocou a cueca de novo. Sabrina demorava, e ele se sentou. Olhou pela janela e sorriu. Ao longe, os caminhões passavam na rodovia, quase no horizonte.

Tinha demorado, mas finalmente tudo daria certo. Doze anos naquela cidade, uma vida discreta, apenas uma preparação para este momento, e ele veio.

Sabrina saiu do banheiro vestida, ainda. E com uma arma na mão.

— Cadê o dinheiro?

Anderson ia se levantando, ela atirou em seu joelho. Ele caiu no chão, gritando e tentando segurar o ferimento.

— Cadê a porra do dinheiro, Bugalu?

— Sabrina… Eu achei que-

— Achou o quê? Que eu te amava? Que eu ia pesquisar, colocar detetive, viajar esse tempo todo, só pra dar pra você?

Anderson se contorcia de dor.

— Depois que a mídia perdeu interesse nos desabrigados do Morro do Bumba, eu fui demitida, Buga. Trabalhei como manicure, como depiladora, trabalhei em casa de família. O tempo todo sabendo que você estava rico em algum lugar, e eu sem um puto no banco. Você tem ideia do que é isso?

— Mas você disse… Disse que queria que eu tivesse sido seu, seu primeiro homem…

Sabrina sorriu.

— Você deveria ter sido o meu primeiro. Não foi, e agora com certeza não será meu último. Onde você guarda a grana?

Anderson começou a se levantar, e Sabrina o empurrou com a sola do pé.

— Diz onde tá o dinheiro, e eu te deixo viver. Você ainda tem seus investimentos, pode continuar aqui nesse fim de mundo, e rico. Eu só quero dinheiro.

Anderson apontou para o armário, para a parte de cima. Sabrina foi até lá, e viu várias caixas de bombons, amarelas. Bombons da Garoto. Ela abriu a primeira caixa, e estava até a tampa de dinheiro.

Devia ter umas doze caixas ali. “Uma para cada ano”, ela pensou.

Andou até Anderson, que gemia.

— Bina… Leva tudo. Você está. Está certa.

Sabrina riu.

— Eu sempre estou. O problema é que, de vez em quando, eu dou uma pirada.

O tiro atravessou o tórax de Anderson, que imediatamente parou de respirar, com os olhos arregalados.

Rodrigo Santos

Tem 46 anos. É um escritor de São Gonçalo (RJ). Pai, marido, flamenguista, escritor, professor, roteirista e corredor de rua assintomático. Autor de Macumba, Carcará e Fogo nas encruzilhadas, entre outros. Já jogou bola com Zico e já viu um peixe-lua.

Rascunho