Giovanna é uma adolescente prestes a completar treze anos e mora na parte alta e mais abastada da cidade de Nápoles, no sul da Itália. Filha de dois professores de classe média, desde a infância, tem acesso aos livros, à boa educação, a discussões sobre sociedade e marxismo. Cercada de afeto, em meio a esse ambiente cultural efervescente, a vida da garota até então havia sido tão estimulante quanto segura. O que ela não sabe é que a realidade que conhece está prestes a ser rompida, assim como a adolescência é, por si mesma, um momento de ruptura e transformações importantes em nossos corpos e histórias de vida.
Essa é a premissa do romance A vida mentirosa dos adultos, de Elena Ferrante, lançado no Brasil pela Intrínseca, com tradução de Marcello Lino, que acaba de ganhar uma adaptação para a Netflix, uma minissérie italiana de seis episódios. Lançada há um mês, a minissérie, assim como o romance, foi aguardada com muita expectativa. Esse foi o primeiro livro publicado pela autora desde a celebrada Tetralogia napolitana — composta pelos volumes A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida —, fenômeno de recepção mundial.
Tanto na tetralogia quanto nos romances anteriores, as narradoras de Ferrante são mulheres que, com esforço, constroem um caminho de ascensão social. Essa é a primeira vez que, nesse aspecto, temos uma protagonista que se distingue das demais. Ainda assim, a obra guarda semelhanças importantes com as demais, como a voz que narra, sempre em primeira pessoa, e os principais eixos temáticos explorados pela autora. A cidade de Nápoles é onipresente, muitas vezes se tornando mais do que um cenário, quase alçada ao posto de personagem.
Esses elementos reforçariam a coesão do projeto literário de Ferrante, que encontra em cada enredo novas formas de elaborar tensões principais que a mobilizam. Mas, nesse último romance publicado, também encontramos elementos novos, ou que ressurgem sob uma nova luz e com novos contornos, como o tratamento dado aos temas da sexualidade e da religião.
A vida mentirosa dos adultos se concentra em narrar as experiências vividas entre os doze e os dezesseis anos de Giovanna, o que poderia ser um indicativo de que se trata de um romance de formação, como muitas obras às quais Ferrante faz referência, direta ou indiretamente. Acompanhamos a jornada de Giovanna rumo à vida adulta, acompanhando os desafios específicos desse período de “aprendizado”.
Mas ao contrário de romances de formação tradicionais — como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, considerado a pedra angular do gênero —, o percurso da protagonista não se dá em torno de uma jornada de ascensão de classe. É na descida que Giovanna tenta compreender melhor a família, os pais, a si mesma e o mundo em que vive: “Eu só tinha uma certeza: para ir até eles, era necessário descer, descer, descer cada vez mais, até a mais funda das profundezas de Nápoles, e a viagem era tão longa que eu achava, naquelas ocasiões, que nós e os parentes do meu pai morávamos em duas cidades diferentes”.
O processo tem início quando ela passa por dificuldades na escola e escuta uma conversa dos pais, Andrea e Nella, em que ele, sempre amoroso e bem disposto com a filha, compara a menina com a tia Vittoria, irmã com quem rompeu há anos. De temperamento turbulento, Vittoria vive em um bairro localizado na Zona Industrial de Nápoles. Não se casou, não tem filhos e, na versão do irmão, surge como uma figura quase mítica de tão odiosa.
“Foi assim que, aos doze anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de mantê-la baixa, que eu estava ficando igual à sua irmã, uma mulher na qual — eu o ouvira dizer desde sempre — feiura e maldade coincidiam perfeitamente”. O pai escapou do bairro e da vida pobre através da educação, enquanto a tia não apenas permaneceu lá, como passou a personificar o lugar.
Magoadíssima com a conversa entreouvida, Giovanna se torna obcecada por Vittoria e pelo temor de se parecer com ela. Começa revirando fotografias antigas, termina frequentando sua casa. Os pais aceitam, ainda que a contragosto, o contato da menina com a tia. Os encontros rendem relatos cativantes e exagerados para suas melhores amigas, as irmãs Angela e Ida. Acostumadas a uma vida protegida e abonada, elas ficam fascinadas com a figura sombria, pobre e rancorosa de Vittoria, que também é tão poderosa e surge nos relatos da menina como uma espécie de bruxa.
Vittoria também compartilha características emblemáticas com outras personagens de Ferrante. Enquanto os pais da narradora e os pais de suas amigas são retratados como pessoas “civilizadas”, Vittoria é bruta nas palavras e nos gestos, vai se impondo e estrilando por onde passa. Além disso, tem uma relação passional não apenas com as pessoas, mas também com seus valores e crenças, como a religião (católica). Mas, conforme a sobrinha a observa de perto, também encontra uma mulher com fragilidades e contradições. Instigada pela visão da tia a respeito do irmão, Giovanna passa a observar também os pais sob uma nova lente, mais complexa e ambivalente.
O título do romance, A vida mentirosa dos adultos, é provocativo como os demais títulos de Ferrante, pois se é verdade que os adultos mentem, também a menina, em sua adolescência, passa a encadear uma série de mentiras. O aprendizado de Giovanna parece ser também uma iniciação no rito da mentira, talvez até mesmo da ficção, da narrativa. O que nos levaria ao livro mais recente da autora publicado no Brasil: As margens e o ditado, também com tradução de Marcello Lino, também pela Intrínseca. Nessa obra tão curta quanto densa, classificada como de não ficção, estão reunidos quatro textos de natureza híbrida: são ora narrativos, ora ensaísticos (mistura bastante presente em algumas passagens da Tetralogia napolitana, por exemplo), em que Ferrante trata de sua própria história de formação como leitora e como escritora, iluminada e instigada por outros textos e autores, discorrendo sobre os prazeres da leitura e os dilemas da escrita.
Entre diversas citações de outras obras de diferentes autores, os textos de As margens e o ditado também tematizam, tanto quanto ecoam, trechos de obras anteriores da própria autora, como esse que está logo na primeira página de A vida mentirosa dos adultos: “na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção”. Um romance de formação em que esse processo jamais ocorre por completo. Ao contrário.
Se tiver fôlego, a leitura da obra completa de Ferrante (quase integralmente disponível no Brasil — com exceção de L’invenzione occasionale, antologia que reúne suas colunas publicadas no The Guardian) é uma experiência muito rica não apenas pelo seu valor literário, mas também pelas questões complexas que suscita sobre o próprio ato de ler, de narrar e de escrever no mundo contemporâneo.