Conversa com Marcelo Maluf
1.
Carola: Começo citando o início do seu livro, A imensidão íntima dos carneiros, que é como te conheci.
O medo estava no princípio de tudo.
O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, próximo às colinas de Golan. No ano 724 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, não chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.
Foi num evento. Lembro do impacto que foi, a gente tinha conversado um pouco no caminho, mas quando, na mesa, você leu o início do seu livro, aquilo me emocionou muito, fui pega de surpresa, jogada para uma outra esfera. Hoje, pensando, há em sua escrita um acesso a esse âmbito religioso, ou melhor, místico da vida. Acho que foi isso, além da beleza do texto, o que tanto me tocou. Sinto que a grande arte surge desse espaço que podemos chamar de místico, ou de inconsciente, e que o caminho do escritor passa por conseguir acessar ou não esse lugar.
Marcelo: Esse evento foi maravilhoso e me lembro bem da nossa conversa. Gosto de pensar que a arte surge desse mistério, do desconhecido, do encontro com a sombra. Se há alguma luz na arte, ela vem da sombra. Os místicos entraram em contato com ela. A iluminação de São João da Cruz, de Santa Teresa Dávila, vem da sombra, da consciência da sombra. Só quando está escuro é que podemos ter consciência da luz. Como no poema de Dylan Thomas: “A luz irrompe onde nenhum sol brilha”. A arte, portanto, em minha opinião, nasce desse mergulho no inconsciente, esteja o artista com seu olhar voltado para o mundo externo ou interno, só haverá um fazer autêntico quando houver essa entrega, quando encarar esse encontro com a sua própria sombra.
Carola: Você me fez lembrar do poema A noite escura da alma, de São João da Cruz. É um poema que sempre me impressionou muito (não por acaso escolhi a primeira estrofe dele como epígrafe do meu romance Com armas sonolentas) porque fala justamente dessa travessia, que pode ser lida sob as mais variadas perspectivas. A escuridão como uma travessia, o eu poético sai de casa (sossegada) e viverá essa estranha aventura que é a própria vida, que é também uma busca pelo saber. Você fala da escuridão como o inconsciente, e da arte como um mergulho. Eu concordo, para mim arte e experiência mística (de iluminação) são lados de uma mesma fita (de Moebius). Deixo aqui o poema completo.
En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada
¡oh dichosa ventura!
salí sin ser notada,
estando ya mi casa sosegada.
A oscuras y segura,
por la secreta escala, disfrazada,
¡oh dichosa ventura!
a oscuras y en celada,
estando ya mi casa sosegada.
En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guía
sino la que en el corazón ardía.
Aquesta me guiaba
más cierto que la luz del mediodía
a donde me esperaba
quien yo bien me sabía,
en parte donde nadie parecía.
¡Oh noche, que guiaste!
¡Oh noche amable más que la alborada!
¡Oh noche que juntaste
Amado con amada
amada en el Amado transformada!
En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba,
allí quedó dormido,
y yo le regalaba,
y el ventalle de cedros aire daba.
El aire de la almena,
cuando yo sus cabellos esparcía,
con su mano serena
en mi cuello hería,
y todos mis sentidos suspendía.
Quedé y olvidéme,
el rostro recliné sobre el Amado;
cesó todo, y dejéme,
dejando mi cuidado
entre las azucenas olvidado
2.
Carola: E eu queria falar do medo. O medo pode ser herdado. Na realidade, não só o medo, herdamos toda uma narrativa, dos pais, da família, da sociedade. Compreender isso me parece essencial para entender quem somos, destrinchar essas narrativas. O interessante nesse processo é que aceitar essa “herança”, compreendê-la nos obriga também a ser mais modestos, porque nos mostra o quanto o “eu” é uma ilusão. De certa forma, você faz esse trajeto, como foi (tem sido) para você?
Marcelo: Somos seres com marcas, carregamos a bagagem dos que vieram antes de nós e somamos a ela nossa própria bagagem. Mas é preciso compreender que ao longo da nossa jornada, devemos dispensar tudo o que já não nos serve. Carregar e guardar aquilo que não nos convém, só deixará a nossa trajetória mais pesarosa. Eu tenho consciência do que carrego dos meus antepassados. O medo, por exemplo, não me deixou. A diferença é que hoje eu posso reconhecê-lo e abrir passagem para que ele não fique por muito tempo ocupando a minha casa. Deixo as portas abertas e aceito que ele venha, não luto com ele, deixo-o livre, deste modo ele também me deixará em paz. Acredito que o nosso grande desafio é não negar as narrativas que nos foram dadas por herança. No entanto, seria um erro se não nos puséssemos a escrever nossas próprias narrativas.
Carola: Eu tendo a pensar que da herança não nos livramos nunca, que ela é parte de quem somos, e o que resta é aceitá-la, reescrevê-la, ressignificá-la. Gosto muito da forma como você narra esse “encontro” com o medo, permitir que ele venha. Às vezes temos tanto medo de sentir medo que acabamos paralisados antes mesmo que as coisas aconteçam. Penso que é necessário atravessar o medo, compreender (ler) o que ele nos diz, conversar com ele, e seguir em frente, apesar dele. Às vezes, ao seu lado. E me lembrei do poema do Drummond, que, me parece, resume muito bem os tempos que vivemos.
Congresso internacional do medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
3.
Carola: Eu sei que você é vegano e que essa é uma questão muito importante para você. É de uma crueldade tão chocante a forma como tratamos os animais, uma crueldade que ninguém vê porque crescemos sem nos perguntar de onde vem aquela carne que compramos empacotada no supermercado. Assim como não nos questionamos sobre tantas outras crueldades diárias, com todos os seres, humanos ou não humanos. Que relações, você acha, é possível tecer entre veganismo e literatura?
Marcelo: Quem sabe um dia deixaremos de ser especistas e possamos considerar os animais não-humanos como consideramos os animais humanos. Tudo o que pensamos em termos de direitos humanos deveria ser compreendido no que diz respeito aos direitos animais. Se somos capazes de nos indignar com o sofrimento humano, também somos capazes de nos indignar com o sofrimento dos animais. Ambos necessitam ter os seus direitos garantidos. Nós não somos mais importantes que os animais e nem eles mais importantes que nós, estamos juntos neste planeta. A luta é a mesma. E sim, temos como viver muito bem sem explorá-los. Se um dia isso pareceu impossível, já faz algum tempo que usá-los não é necessário para garantir a nossa sobrevivência, ao menos no mundo urbano. Acho que a relação entre veganismo e literatura pode ser comparada à relação entre direitos e literatura. Quero dizer que o veganismo é acima de tudo uma busca pela conquista dos direitos animais. Eu escrevi apenas um conto que considero engajado no que diz respeito aos direitos animais, que é o Sermão aos bezerros. Mas entendo que foi uma necessidade de momento. Não creio que como escritor eu tenha que levantar essa bandeira ou qualquer outra. Isso não quer dizer que eu seja contra levantar bandeiras, apenas não acredito que deva ser uma condição para os escritores esse engajamento no que diz respeito a sua produção literária. Como cidadão, como sujeito inserido no mundo, sempre defenderei a causa dos direitos animais, dos direitos humanos, enfim.
Carola: Sim, concordo totalmente, a literatura nunca é um “levantar bandeiras”, devido a sua própria estrutura, que é furada, ou seja, ao contrário de um panfleto ou de uma notícia de jornal, a literatura não informa, mas funciona como um leque que se abre em inúmeras interpretações. A literatura não dá respostas, mas faz perguntas. Eu vejo o veganismo, assim como você, como algo maior, que diz respeito à forma como tratamos o “outro”, e nossa tendência a invisibilizá-lo (nada queremos saber sobre o outro), torná-lo objeto. Isso vale para animais, mas para humanos também, porque muitas vezes tratamos seres humanos com a mesma crueldade com a que tratamos os animais. Mas falando especificamente de seres não-humanos, nas culturas indígenas do continente, que são cosmovisões fora da cultura ocidental, há uma preocupação muito grande em honrar o outro, especialmente o animal que é caçado, e também em manter um equilíbrio de recebimento e restituição com a natureza. Tenho pensado muito na importância desse equilíbrio, dessa restituição.
Marcelo: Sim, quando digo que hoje é possível vivermos sem explorar os animais, falo principalmente do nosso mundo urbano. As comunidades indígenas mais isoladas ou mesmo os ribeirinhos têm outra experiência com a terra, com a natureza e os animais. Se vivêssemos como eles, talvez, a história fosse outra. Mas a realidade deles não é a nossa. E nós, infelizmente, somos para os animais um verdadeiro terror.
Carola: Sim, concordo totalmente!
4.
Carola: A gente conversou rapidamente, e você me disse que desde o ano passado vem passando por uma espécie de revolução no seu trabalho. Isso me interessa muito. Tem a ver com a pandemia? Como está sendo para você escrever em meio a tudo o que estamos vivendo?
Marcelo: Sim, acho que posso chamar de revolução. De alguma maneira a pandemia me levou a rever, repensar, me autoanalisar enquanto escritor. Um movimento que já vinha acontecendo antes dentro de mim, o de compreender qual era o meu lugar. Mas essa revolução foi buscar sua força e inspiração no meu passado como leitor e também como escritor. Antes de publicar A imensidão íntima dos carneiros, e talvez poucas pessoas saibam, eu tinha três livros infantojuvenis publicados e um livro de contos. Ali, naqueles livros, há uma prosa em que a história, a intriga, ou seja, a narrativa como lugar da fabulação é muito importante. No Imensidão tudo isso está lá, claro, as histórias da tradição oral, o universo fantástico, afinal de contas um neto viaja para o passado e como um fantasma vai assombrar o avô que o assombrava, enfim, mas a questão da autoficção, do lirismo, da imigração, acabaram sobressaindo na maioria das leituras que fizeram do livro, o que de fato também está no texto. Diga-se de passagem, ao escrever Imensidão, sofri muita mais influência da ficção fantástica do Neil Gaiman do que dos escritores do realismo fantástico latino-americano. Mas nessa minha reflexão, ao olhar para os livros que escrevi, de maneira conjunta, percebi que a relação entre eles se dava, na fronteira entre o que é conhecido como ficção de gênero e ficção literária. Ou mesmo em não dar importância para essa fronteira. E, por mais óbvio que pudesse ser, eu ainda não tinha me dado conta disso, de que a minha ficção era justamente aquilo que como leitor eu praticava desde sempre. Na verdade, nunca tive uma orientação de leitura. Nunca ninguém me disse: “Isso é boa literatura, isso não é”. O que, do meu ponto de vista, foi maravilhoso. Por isso, talvez, eu tenha me tornado um leitor eclético e sem preconceitos. Lembro que aos 12 anos de idade, frequentava a biblioteca pública da minha cidade natal e escolhia os livros nas estantes pela leitura da orelha ou das primeiras páginas. Se aquilo me pegasse, eu levava para ler. Então, li Malba Tahan, Drummond, antologias de contos fantásticos, As mil e uma noites, Conan Doyle, Roald Dahl, Fernando Sabino, Edgar Allan Poe, C. S. Lewis, Hermann Hesse, Marcos Rey, Simenon, H. G. Wells, Ray Bradbury, Albert Camus, Machado de Assis, Clarice Lispector, Murilo Rubião, Roberto Drummond, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Italo Calvino, enfim… Todas leituras feitas com grande prazer. Do mesmo modo como hoje, continuo a ser esse mesmo leitor eclético. Acredito que foi esse leitor quem engendrou o escritor que eu sou. Portanto, a revolução que vivo hoje está naquilo que era óbvio, mas que agora tenho plena consciência, de quê, cada vez mais, quero diluir na minha escrita essa fronteira entre aquilo que denominamos ficção literária e ficção de entretenimento. Quanto a escrever no meio de tudo isso, no contexto da pandemia, tenho percebido que o meu pessimismo em relação ao futuro da humanidade tem se tornado cada vez mais real. A extinção da nossa civilização está cada dia mais próxima. O fato de não termos cuidado do planeta fez com que chegássemos ao caos em que estamos. E não cuidar do planeta significa não cuidar de nós mesmos. No entanto, sigo adiante, sobrevivo perante o horror e o sofrimento, e sinto uma tristeza quase paralisante. Digo quase, pois narrar, fabular, fazer, é o que me cabe como escritor. E esse desejo está cada vez mais forte em mim. Mas sei que tenho o privilégio de escolher e de poder meditar sobre tudo isso. Um luxo, na verdade.
Carola: Você tocou em tantos assuntos interessantes. Primeiro, sobre a questão da “ficção literária” e da “ficção de entretenimento/ficção de gênero”, como você definiria essas duas vertentes? O Jabuti agora tem essa categoria “romance de entretenimento”. Eu, sinceramente, ainda não tenho uma opinião formada sobre isso. Mas penso em escritores que de forma sistemática desconstruíram essas fronteiras, como por exemplo, Ricardo Piglia, que trabalhava com o romance policial, ou o Manuel Puig, que trazia para os seus romances o imaginário dos dramalhões. Sim, vejo isso o tempo todo, o privilégio de poder escrever (ter tempo e recursos), e de como isso tem nos salvado de afundar no horror, na loucura. Como diria o Caetano, “como é bom poder tocar um instrumento”.
Marcelo: Acredito que qualquer livro deveria ser lido e analisado a partir daquilo que se propôs a fazer. E nesse sentido não há literatura menor. Há livros bons e livros ruins, os que atingiram e os que não atingiram o seu objetivo. Afinal, quem é que dita o parâmetro estético? Em qual parâmetro você acredita? Pois aqui, trata-se de crença, não podemos falar da literatura como ciência. Por outro lado, as vanguardas do início do século 20, fizeram uma revolução no modo de escrever ficção. O que foi ótimo e nos deu liberdade no que diz respeito à construção narrativa. Mas houve um preconceito nascido aí de que só a experimentação com a linguagem ou o novo, a vanguarda, era o que valia. Isso distanciou os leitores comuns que apenas queriam ler boas histórias, e já não identificam ali o seu mundo conhecido. Contar histórias, privilegiar o enredo, entreter o leitor foi então considerado algo menor, ficou jogado lá nos séculos 18 e 19. Esse erro levou a literatura para dentro do mundo fechado dos especialistas. O leitor médio ficou à deriva ou sentindo-se menos inteligente por gostar de ler uma boa história. É claro que os autores contadores de histórias continuaram a produzir, muitos deles fazendo romances policiais, de ficção científica, de horror, ou apenas narrando suas histórias sem ter como meta a experimentação com a estrutura ou a linguagem. Então, essa linha divisória quando afirma que isso é bom e aquilo não, que isso é grande ficção e aquilo ficção menor, presta um desserviço à formação de leitores e à literatura de modo geral. É por isso que quanto ao Jabuti, vejo como saudável que essas categorias existam, desde que isso não signifique que um é melhor do que o outro. E mais, o parâmetro pelo qual as obras são avaliadas em ficção literária não deve ser o mesmo para a ficção de entretenimento. Não dá para dizer que o Stephen King seja pior ou melhor que o Marcel Proust, cada um tem um projeto, um modo de se relacionar com a literatura, não partem desde o princípio do mesmo lugar, nem com o mesmo objetivo. São modos e frequências distintas. O problema é dizer que tudo será avaliado por um mesmo cânone. É quase como se fôssemos julgar em música quem são os melhores e colocássemos todos no mesmo balaio: Mozart ou Rolling Stones? Eric Satie ou Kraftwerk? Cartola ou Tchaikovsky? Fica impossível, não é? Mas nós fazemos isso com a literatura. Só que não reconhecemos a ficção de entretenimento. Mas e aqueles autores que se diluem entre essas fronteiras? Em qual categoria eles se encaixariam? Talvez para onde a balança pesasse mais. Como, por exemplo, você citou o Piglia e o Puig, mas também podemos pensar no Murakami, Ishiguro, Salman Rushdie, Chuck Palahniuk, Joyce Carol Oates, Umberto Eco e tantos outros que geralmente serão avaliados como ficção literária. Mas que flertaram em alguns dos seus livros com a literatura de gênero. Enfim, é um assunto complexo, mas precisamos falar sobre ele, correndo o risco, se não o fizermos, de perder leitores no meio do caminho. E, por fim, acho boba a ideia de que uma literatura sirva de “ponte” para a outra. Como se o leitor de ficção de gênero, para se tornar um leitor completo, precisasse depois ler Dostoiévski, Guimarães Rosa, Nabokov, Saramago. Não. Ele não precisa. Esse leitor pode manter o seu gosto pela ficção de gênero a vida toda e não há nada de errado com isso. E isso também não faz dele um leitor menor. Isso é só preconceito, é excludente e obtuso. Ou seja, a cultura de massa e a popular não são uma ponte para se chegar à cultura erudita. São propostas distintas.
Carola: Sim, com certeza, são discussões importantíssimas. E talvez elas nos levem para uma necessidade que me parece essencial, que é a de se repensar o cânone, como você disse: “Afinal, quem é que dita o parâmetro estético?”.
5.
Carola: Queria saber sobre sua experiência dando oficinas literárias. O que você sabe sobre literatura que sem essa experiência não saberia? E baseado na sua experiência, quando, em que momento surge um escritor? Ou ele não surge?
Marcelo: Frequentei as oficinas literárias do Marcelino Freire, do Nelson de Oliveira e fiz um dia intensivo com o João Silvério Trevisan, no Sesc Consolação. Foram vivências muito importantes para minha formação como escritor. Há dez anos que ministro oficinas. Acredito que a minha experiência como aluno me possibilitou o encontro com pessoas que também buscavam o que eu buscava: ser escritor. E claro, aprendi a ler o meu texto de maneira criteriosa, atenta. E isso fez de mim um leitor melhor. Como professor, minha experiência me prova que não existem fórmulas para se escrever um bom texto, mas existem caminhos, dicas, proposições. Por isso, quando dou oficinas, entro com esse espírito, o de extrair do participante o melhor dele, dentro daquilo que ele se propõe a fazer. A partir daí, vou entendendo quais ferramentas eu tenho que posso tirar da caixa e entregar a ele. Como professor, talvez eu seja aquele sujeito que olha e diz: “Acho que aquela chave de fenda ali pode te ajudar a resolver o problema”. Acredito que o escritor/escritora surge quando ele/ela dá o melhor de si na hora de escrever. Quando escreve o que quer escrever e não o que dizem que ele/ela deveria escrever e, acima de tudo, quando se reconhece como escritor/escritora. E se assume.
Carola: Acho interessante isso de “assumir-se” escritor. Quando foi que você se assumiu escritor? No meu caso, foi ao preencher a ficha de entrada num hotel, eu estava lá para participar de um evento literário e achei que havia chegado o momento de escrever “escritora” no lugar de profissão. Ao mesmo tempo aquilo me parecia meio estranho (risos). Por que será que precisamos nos “assumir”?
Marcelo: Não, realmente não precisamos nos assumir. Há quem não queira nada disso e tudo bem. Clarice se dizia sempre ser uma amadora, veja só. Mas mesmo assim ela se reconhecia por meio da escrita. E trabalhava com ela. Mas no meu caso, eu precisava compreender que ser escritor era uma profissão como outra qualquer. Não havia nada de especial naquilo. Temos a tendência de achar que artistas são seres iluminados. E eu acreditava nisso na minha adolescência, que os artistas eram esses seres inalcançáveis. O meu encontro com eles só se dava pelos livros. Criava-se então o mito. Quando publiquei meu primeiro livro, que foi um infantojuvenil, entendi ali que ou eu me assumia ou eu não seguiria em frente. Eu precisava me reconhecer. Quando eu digo se assumir tem a ver com isso.
6.
Carola: Em O mito do eterno retorno, Mircea Eliade aborda a distinção entre tempo mítico e tempo profano. Ele diz:
Naturalmente, a abolição do tempo profano e a projeção do indivíduo para o tempo mítico só acontecem nos períodos essenciais — isto é, naqueles em que o indivíduo de fato é ele próprio: por ocasião de rituais ou atos importantes (alimentação, geração, cerimônias, caça, pesca, guerra, trabalho). O restante de sua vida é passado em tempo profano, que carece de todo significado: na condição de “transformar-se”.
O que seria para você o tempo mítico e o profano, como eles se entrelaçam e como você vê isso na literatura?
Marcelo: Para mim, e não sou nenhum especialista no assunto, o tempo mítico se dá quando estamos imersos numa atividade, seja capturados por um livro ou filme, dançando, fazendo sexo, sonhando, participando de um ritual ou escrevendo de portas fechadas. O tempo profano é tudo aquilo que se faz desatento, sem paixão, sem entrega, sem verdade, sem desejo, sem amor. É possível que todos os exemplos anteriores possam ser vivenciados como tempo profano. Portanto, o tempo mítico é o tempo de estar presente no aqui/agora, em cada gesto, ação, experiência. Na literatura, acho que esse tempo mítico é o tempo da leitura. Ele se prolonga nas muitas leituras, às vezes durante anos, séculos. Portanto, para mim a leitura também faz parte do tempo mítico.
Carola: Que bonito isso da leitura como tempo mítico. Sim, há um lugar que habitamos quando lemos um livro, e para onde voltamos a cada releitura. Mas como o tempo passa para a gente, a cada retorno encontramos algo diferente, algo que não havíamos percebido.