Conversa com Marcelo Maluf
1.
Carola: Começo citando o inĂcio do seu livro, A imensidĂŁo Ăntima dos carneiros, que Ă© como te conheci.
O medo estava no princĂpio de tudo.
O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa famĂlia. NĂłs sempre estivemos sob o seu domĂnio. O medo estava em nossos ancestrais, os Gassanidas, em Huran, prĂłximo Ă s colinas de Golan. No ano 724 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristĂŁo. Sua mĂŁe, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, nĂŁo chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar atĂ© nĂłs.
Foi num evento. Lembro do impacto que foi, a gente tinha conversado um pouco no caminho, mas quando, na mesa, vocĂŞ leu o inĂcio do seu livro, aquilo me emocionou muito, fui pega de surpresa, jogada para uma outra esfera. Hoje, pensando, há em sua escrita um acesso a esse âmbito religioso, ou melhor, mĂstico da vida. Acho que foi isso, alĂ©m da beleza do texto, o que tanto me tocou. Sinto que a grande arte surge desse espaço que podemos chamar de mĂstico, ou de inconsciente, e que o caminho do escritor passa por conseguir acessar ou nĂŁo esse lugar.
Marcelo: Esse evento foi maravilhoso e me lembro bem da nossa conversa. Gosto de pensar que a arte surge desse mistĂ©rio, do desconhecido, do encontro com a sombra. Se há alguma luz na arte, ela vem da sombra. Os mĂsticos entraram em contato com ela. A iluminação de SĂŁo JoĂŁo da Cruz, de Santa Teresa Dávila, vem da sombra, da consciĂŞncia da sombra. SĂł quando está escuro Ă© que podemos ter consciĂŞncia da luz. Como no poema de Dylan Thomas: “A luz irrompe onde nenhum sol brilha”. A arte, portanto, em minha opiniĂŁo, nasce desse mergulho no inconsciente, esteja o artista com seu olhar voltado para o mundo externo ou interno, sĂł haverá um fazer autĂŞntico quando houver essa entrega, quando encarar esse encontro com a sua prĂłpria sombra.
Carola: VocĂŞ me fez lembrar do poema A noite escura da alma, de SĂŁo JoĂŁo da Cruz. É um poema que sempre me impressionou muito (nĂŁo por acaso escolhi a primeira estrofe dele como epĂgrafe do meu romance Com armas sonolentas) porque fala justamente dessa travessia, que pode ser lida sob as mais variadas perspectivas. A escuridĂŁo como uma travessia, o eu poĂ©tico sai de casa (sossegada) e viverá essa estranha aventura que Ă© a prĂłpria vida, que Ă© tambĂ©m uma busca pelo saber. VocĂŞ fala da escuridĂŁo como o inconsciente, e da arte como um mergulho. Eu concordo, para mim arte e experiĂŞncia mĂstica (de iluminação) sĂŁo lados de uma mesma fita (de Moebius). Deixo aqui o poema completo.
En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada
¡oh dichosa ventura!
salĂ sin ser notada,
estando ya mi casa sosegada.
A oscuras y segura,
por la secreta escala, disfrazada,
¡oh dichosa ventura!
a oscuras y en celada,
estando ya mi casa sosegada.
En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veĂa,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guĂa
sino la que en el corazĂłn ardĂa.
Aquesta me guiaba
más cierto que la luz del mediodĂa
a donde me esperaba
quien yo bien me sabĂa,
en parte donde nadie parecĂa.
¡Oh noche, que guiaste!
¡Oh noche amable más que la alborada!
¡Oh noche que juntaste
Amado con amada
amada en el Amado transformada!
En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba,
allĂ quedĂł dormido,
y yo le regalaba,
y el ventalle de cedros aire daba.
El aire de la almena,
cuando yo sus cabellos esparcĂa,
con su mano serena
en mi cuello herĂa,
y todos mis sentidos suspendĂa.
Quedé y olvidéme,
el rostro recliné sobre el Amado;
cesó todo, y dejéme,
dejando mi cuidado
entre las azucenas olvidado
2.
Carola: E eu queria falar do medo. O medo pode ser herdado. Na realidade, nĂŁo sĂł o medo, herdamos toda uma narrativa, dos pais, da famĂlia, da sociedade. Compreender isso me parece essencial para entender quem somos, destrinchar essas narrativas. O interessante nesse processo Ă© que aceitar essa “herança”, compreendĂŞ-la nos obriga tambĂ©m a ser mais modestos, porque nos mostra o quanto o “eu” Ă© uma ilusĂŁo. De certa forma, vocĂŞ faz esse trajeto, como foi (tem sido) para vocĂŞ?
Marcelo: Somos seres com marcas, carregamos a bagagem dos que vieram antes de nós e somamos a ela nossa própria bagagem. Mas é preciso compreender que ao longo da nossa jornada, devemos dispensar tudo o que já não nos serve. Carregar e guardar aquilo que não nos convém, só deixará a nossa trajetória mais pesarosa. Eu tenho consciência do que carrego dos meus antepassados. O medo, por exemplo, não me deixou. A diferença é que hoje eu posso reconhecê-lo e abrir passagem para que ele não fique por muito tempo ocupando a minha casa. Deixo as portas abertas e aceito que ele venha, não luto com ele, deixo-o livre, deste modo ele também me deixará em paz. Acredito que o nosso grande desafio é não negar as narrativas que nos foram dadas por herança. No entanto, seria um erro se não nos puséssemos a escrever nossas próprias narrativas.
Carola: Eu tendo a pensar que da herança não nos livramos nunca, que ela é parte de quem somos, e o que resta é aceitá-la, reescrevê-la, ressignificá-la. Gosto muito da forma como você narra esse “encontro” com o medo, permitir que ele venha. Às vezes temos tanto medo de sentir medo que acabamos paralisados antes mesmo que as coisas aconteçam. Penso que é necessário atravessar o medo, compreender (ler) o que ele nos diz, conversar com ele, e seguir em frente, apesar dele. Às vezes, ao seu lado. E me lembrei do poema do Drummond, que, me parece, resume muito bem os tempos que vivemos.
Congresso internacional do medo
Provisoriamente nĂŁo cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
nĂŁo cantaremos o Ăłdio porque esse nĂŁo existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mĂŁes, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos tĂşmulos nascerĂŁo flores amarelas e medrosas.
3.
Carola: Eu sei que vocĂŞ Ă© vegano e que essa Ă© uma questĂŁo muito importante para vocĂŞ. É de uma crueldade tĂŁo chocante a forma como tratamos os animais, uma crueldade que ninguĂ©m vĂŞ porque crescemos sem nos perguntar de onde vem aquela carne que compramos empacotada no supermercado. Assim como nĂŁo nos questionamos sobre tantas outras crueldades diárias, com todos os seres, humanos ou nĂŁo humanos. Que relações, vocĂŞ acha, Ă© possĂvel tecer entre veganismo e literatura?
Marcelo: Quem sabe um dia deixaremos de ser especistas e possamos considerar os animais nĂŁo-humanos como consideramos os animais humanos. Tudo o que pensamos em termos de direitos humanos deveria ser compreendido no que diz respeito aos direitos animais. Se somos capazes de nos indignar com o sofrimento humano, tambĂ©m somos capazes de nos indignar com o sofrimento dos animais. Ambos necessitam ter os seus direitos garantidos. NĂłs nĂŁo somos mais importantes que os animais e nem eles mais importantes que nĂłs, estamos juntos neste planeta. A luta Ă© a mesma. E sim, temos como viver muito bem sem explorá-los. Se um dia isso pareceu impossĂvel, já faz algum tempo que usá-los nĂŁo Ă© necessário para garantir a nossa sobrevivĂŞncia, ao menos no mundo urbano. Acho que a relação entre veganismo e literatura pode ser comparada Ă relação entre direitos e literatura. Quero dizer que o veganismo Ă© acima de tudo uma busca pela conquista dos direitos animais. Eu escrevi apenas um conto que considero engajado no que diz respeito aos direitos animais, que Ă© o SermĂŁo aos bezerros. Mas entendo que foi uma necessidade de momento. NĂŁo creio que como escritor eu tenha que levantar essa bandeira ou qualquer outra. Isso nĂŁo quer dizer que eu seja contra levantar bandeiras, apenas nĂŁo acredito que deva ser uma condição para os escritores esse engajamento no que diz respeito a sua produção literária. Como cidadĂŁo, como sujeito inserido no mundo, sempre defenderei a causa dos direitos animais, dos direitos humanos, enfim.
Carola: Sim, concordo totalmente, a literatura nunca Ă© um “levantar bandeiras”, devido a sua prĂłpria estrutura, que Ă© furada, ou seja, ao contrário de um panfleto ou de uma notĂcia de jornal, a literatura nĂŁo informa, mas funciona como um leque que se abre em inĂşmeras interpretações. A literatura nĂŁo dá respostas, mas faz perguntas. Eu vejo o veganismo, assim como vocĂŞ, como algo maior, que diz respeito Ă forma como tratamos o “outro”, e nossa tendĂŞncia a invisibilizá-lo (nada queremos saber sobre o outro), torná-lo objeto. Isso vale para animais, mas para humanos tambĂ©m, porque muitas vezes tratamos seres humanos com a mesma crueldade com a que tratamos os animais. Mas falando especificamente de seres nĂŁo-humanos, nas culturas indĂgenas do continente, que sĂŁo cosmovisões fora da cultura ocidental, há uma preocupação muito grande em honrar o outro, especialmente o animal que Ă© caçado, e tambĂ©m em manter um equilĂbrio de recebimento e restituição com a natureza. Tenho pensado muito na importância desse equilĂbrio, dessa restituição.
Marcelo: Sim, quando digo que hoje Ă© possĂvel vivermos sem explorar os animais, falo principalmente do nosso mundo urbano. As comunidades indĂgenas mais isoladas ou mesmo os ribeirinhos tĂŞm outra experiĂŞncia com a terra, com a natureza e os animais. Se vivĂŞssemos como eles, talvez, a histĂłria fosse outra. Mas a realidade deles nĂŁo Ă© a nossa. E nĂłs, infelizmente, somos para os animais um verdadeiro terror.
Carola: Sim, concordo totalmente!
4.
Carola: A gente conversou rapidamente, e você me disse que desde o ano passado vem passando por uma espécie de revolução no seu trabalho. Isso me interessa muito. Tem a ver com a pandemia? Como está sendo para você escrever em meio a tudo o que estamos vivendo?
Marcelo: Sim, acho que posso chamar de revolução. De alguma maneira a pandemia me levou a rever, repensar, me autoanalisar enquanto escritor. Um movimento que já vinha acontecendo antes dentro de mim, o de compreender qual era o meu lugar. Mas essa revolução foi buscar sua força e inspiração no meu passado como leitor e tambĂ©m como escritor. Antes de publicar A imensidĂŁo Ăntima dos carneiros, e talvez poucas pessoas saibam, eu tinha trĂŞs livros infantojuvenis publicados e um livro de contos. Ali, naqueles livros, há uma prosa em que a histĂłria, a intriga, ou seja, a narrativa como lugar da fabulação Ă© muito importante. No ImensidĂŁo tudo isso está lá, claro, as histĂłrias da tradição oral, o universo fantástico, afinal de contas um neto viaja para o passado e como um fantasma vai assombrar o avĂ´ que o assombrava, enfim, mas a questĂŁo da autoficção, do lirismo, da imigração, acabaram sobressaindo na maioria das leituras que fizeram do livro, o que de fato tambĂ©m está no texto. Diga-se de passagem, ao escrever ImensidĂŁo, sofri muita mais influĂŞncia da ficção fantástica do Neil Gaiman do que dos escritores do realismo fantástico latino-americano. Mas nessa minha reflexĂŁo, ao olhar para os livros que escrevi, de maneira conjunta, percebi que a relação entre eles se dava, na fronteira entre o que Ă© conhecido como ficção de gĂŞnero e ficção literária. Ou mesmo em nĂŁo dar importância para essa fronteira. E, por mais Ăłbvio que pudesse ser, eu ainda nĂŁo tinha me dado conta disso, de que a minha ficção era justamente aquilo que como leitor eu praticava desde sempre. Na verdade, nunca tive uma orientação de leitura. Nunca ninguĂ©m me disse: “Isso Ă© boa literatura, isso nĂŁo é”. O que, do meu ponto de vista, foi maravilhoso. Por isso, talvez, eu tenha me tornado um leitor eclĂ©tico e sem preconceitos. Lembro que aos 12 anos de idade, frequentava a biblioteca pĂşblica da minha cidade natal e escolhia os livros nas estantes pela leitura da orelha ou das primeiras páginas. Se aquilo me pegasse, eu levava para ler. EntĂŁo, li Malba Tahan, Drummond, antologias de contos fantásticos, As mil e uma noites, Conan Doyle, Roald Dahl, Fernando Sabino, Edgar Allan Poe, C. S. Lewis, Hermann Hesse, Marcos Rey, Simenon, H. G. Wells, Ray Bradbury, Albert Camus, Machado de Assis, Clarice Lispector, Murilo RubiĂŁo, Roberto Drummond, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Italo Calvino, enfim… Todas leituras feitas com grande prazer. Do mesmo modo como hoje, continuo a ser esse mesmo leitor eclĂ©tico. Acredito que foi esse leitor quem engendrou o escritor que eu sou. Portanto, a revolução que vivo hoje está naquilo que era Ăłbvio, mas que agora tenho plena consciĂŞncia, de quĂŞ, cada vez mais, quero diluir na minha escrita essa fronteira entre aquilo que denominamos ficção literária e ficção de entretenimento. Quanto a escrever no meio de tudo isso, no contexto da pandemia, tenho percebido que o meu pessimismo em relação ao futuro da humanidade tem se tornado cada vez mais real. A extinção da nossa civilização está cada dia mais prĂłxima. O fato de nĂŁo termos cuidado do planeta fez com que chegássemos ao caos em que estamos. E nĂŁo cuidar do planeta significa nĂŁo cuidar de nĂłs mesmos. No entanto, sigo adiante, sobrevivo perante o horror e o sofrimento, e sinto uma tristeza quase paralisante. Digo quase, pois narrar, fabular, fazer, Ă© o que me cabe como escritor. E esse desejo está cada vez mais forte em mim. Mas sei que tenho o privilĂ©gio de escolher e de poder meditar sobre tudo isso. Um luxo, na verdade.
Carola: VocĂŞ tocou em tantos assuntos interessantes. Primeiro, sobre a questĂŁo da “ficção literária” e da “ficção de entretenimento/ficção de gĂŞnero”, como vocĂŞ definiria essas duas vertentes? O Jabuti agora tem essa categoria “romance de entretenimento”. Eu, sinceramente, ainda nĂŁo tenho uma opiniĂŁo formada sobre isso. Mas penso em escritores que de forma sistemática desconstruĂram essas fronteiras, como por exemplo, Ricardo Piglia, que trabalhava com o romance policial, ou o Manuel Puig, que trazia para os seus romances o imaginário dos dramalhões. Sim, vejo isso o tempo todo, o privilĂ©gio de poder escrever (ter tempo e recursos), e de como isso tem nos salvado de afundar no horror, na loucura. Como diria o Caetano, “como Ă© bom poder tocar um instrumento”.
Marcelo: Acredito que qualquer livro deveria ser lido e analisado a partir daquilo que se propĂ´s a fazer. E nesse sentido nĂŁo há literatura menor. Há livros bons e livros ruins, os que atingiram e os que nĂŁo atingiram o seu objetivo. Afinal, quem Ă© que dita o parâmetro estĂ©tico? Em qual parâmetro vocĂŞ acredita? Pois aqui, trata-se de crença, nĂŁo podemos falar da literatura como ciĂŞncia. Por outro lado, as vanguardas do inĂcio do sĂ©culo 20, fizeram uma revolução no modo de escrever ficção. O que foi Ăłtimo e nos deu liberdade no que diz respeito Ă construção narrativa. Mas houve um preconceito nascido aĂ de que sĂł a experimentação com a linguagem ou o novo, a vanguarda, era o que valia. Isso distanciou os leitores comuns que apenas queriam ler boas histĂłrias, e já nĂŁo identificam ali o seu mundo conhecido. Contar histĂłrias, privilegiar o enredo, entreter o leitor foi entĂŁo considerado algo menor, ficou jogado lá nos sĂ©culos 18 e 19. Esse erro levou a literatura para dentro do mundo fechado dos especialistas. O leitor mĂ©dio ficou Ă deriva ou sentindo-se menos inteligente por gostar de ler uma boa histĂłria. É claro que os autores contadores de histĂłrias continuaram a produzir, muitos deles fazendo romances policiais, de ficção cientĂfica, de horror, ou apenas narrando suas histĂłrias sem ter como meta a experimentação com a estrutura ou a linguagem. EntĂŁo, essa linha divisĂłria quando afirma que isso Ă© bom e aquilo nĂŁo, que isso Ă© grande ficção e aquilo ficção menor, presta um desserviço Ă formação de leitores e Ă literatura de modo geral. É por isso que quanto ao Jabuti, vejo como saudável que essas categorias existam, desde que isso nĂŁo signifique que um Ă© melhor do que o outro. E mais, o parâmetro pelo qual as obras sĂŁo avaliadas em ficção literária nĂŁo deve ser o mesmo para a ficção de entretenimento. NĂŁo dá para dizer que o Stephen King seja pior ou melhor que o Marcel Proust, cada um tem um projeto, um modo de se relacionar com a literatura, nĂŁo partem desde o princĂpio do mesmo lugar, nem com o mesmo objetivo. SĂŁo modos e frequĂŞncias distintas. O problema Ă© dizer que tudo será avaliado por um mesmo cânone. É quase como se fĂ´ssemos julgar em mĂşsica quem sĂŁo os melhores e colocássemos todos no mesmo balaio: Mozart ou Rolling Stones? Eric Satie ou Kraftwerk? Cartola ou Tchaikovsky? Fica impossĂvel, nĂŁo Ă©? Mas nĂłs fazemos isso com a literatura. SĂł que nĂŁo reconhecemos a ficção de entretenimento. Mas e aqueles autores que se diluem entre essas fronteiras? Em qual categoria eles se encaixariam? Talvez para onde a balança pesasse mais. Como, por exemplo, vocĂŞ citou o Piglia e o Puig, mas tambĂ©m podemos pensar no Murakami, Ishiguro, Salman Rushdie, Chuck Palahniuk, Joyce Carol Oates, Umberto Eco e tantos outros que geralmente serĂŁo avaliados como ficção literária. Mas que flertaram em alguns dos seus livros com a literatura de gĂŞnero. Enfim, Ă© um assunto complexo, mas precisamos falar sobre ele, correndo o risco, se nĂŁo o fizermos, de perder leitores no meio do caminho. E, por fim, acho boba a ideia de que uma literatura sirva de “ponte” para a outra. Como se o leitor de ficção de gĂŞnero, para se tornar um leitor completo, precisasse depois ler DostoiĂ©vski, GuimarĂŁes Rosa, Nabokov, Saramago. NĂŁo. Ele nĂŁo precisa. Esse leitor pode manter o seu gosto pela ficção de gĂŞnero a vida toda e nĂŁo há nada de errado com isso. E isso tambĂ©m nĂŁo faz dele um leitor menor. Isso Ă© sĂł preconceito, Ă© excludente e obtuso. Ou seja, a cultura de massa e a popular nĂŁo sĂŁo uma ponte para se chegar Ă cultura erudita. SĂŁo propostas distintas.
Carola: Sim, com certeza, sĂŁo discussões importantĂssimas. E talvez elas nos levem para uma necessidade que me parece essencial, que Ă© a de se repensar o cânone, como vocĂŞ disse: “Afinal, quem Ă© que dita o parâmetro estĂ©tico?”.
5.
Carola: Queria saber sobre sua experiência dando oficinas literárias. O que você sabe sobre literatura que sem essa experiência não saberia? E baseado na sua experiência, quando, em que momento surge um escritor? Ou ele não surge?
Marcelo: Frequentei as oficinas literárias do Marcelino Freire, do Nelson de Oliveira e fiz um dia intensivo com o JoĂŁo SilvĂ©rio Trevisan, no Sesc Consolação. Foram vivĂŞncias muito importantes para minha formação como escritor. Há dez anos que ministro oficinas. Acredito que a minha experiĂŞncia como aluno me possibilitou o encontro com pessoas que tambĂ©m buscavam o que eu buscava: ser escritor. E claro, aprendi a ler o meu texto de maneira criteriosa, atenta. E isso fez de mim um leitor melhor. Como professor, minha experiĂŞncia me prova que nĂŁo existem fĂłrmulas para se escrever um bom texto, mas existem caminhos, dicas, proposições. Por isso, quando dou oficinas, entro com esse espĂrito, o de extrair do participante o melhor dele, dentro daquilo que ele se propõe a fazer. A partir daĂ, vou entendendo quais ferramentas eu tenho que posso tirar da caixa e entregar a ele. Como professor, talvez eu seja aquele sujeito que olha e diz: “Acho que aquela chave de fenda ali pode te ajudar a resolver o problema”. Acredito que o escritor/escritora surge quando ele/ela dá o melhor de si na hora de escrever. Quando escreve o que quer escrever e nĂŁo o que dizem que ele/ela deveria escrever e, acima de tudo, quando se reconhece como escritor/escritora. E se assume.
Carola: Acho interessante isso de “assumir-se” escritor. Quando foi que você se assumiu escritor? No meu caso, foi ao preencher a ficha de entrada num hotel, eu estava lá para participar de um evento literário e achei que havia chegado o momento de escrever “escritora” no lugar de profissão. Ao mesmo tempo aquilo me parecia meio estranho (risos). Por que será que precisamos nos “assumir”?
Marcelo: Não, realmente não precisamos nos assumir. Há quem não queira nada disso e tudo bem. Clarice se dizia sempre ser uma amadora, veja só. Mas mesmo assim ela se reconhecia por meio da escrita. E trabalhava com ela. Mas no meu caso, eu precisava compreender que ser escritor era uma profissão como outra qualquer. Não havia nada de especial naquilo. Temos a tendência de achar que artistas são seres iluminados. E eu acreditava nisso na minha adolescência, que os artistas eram esses seres inalcançáveis. O meu encontro com eles só se dava pelos livros. Criava-se então o mito. Quando publiquei meu primeiro livro, que foi um infantojuvenil, entendi ali que ou eu me assumia ou eu não seguiria em frente. Eu precisava me reconhecer. Quando eu digo se assumir tem a ver com isso.
6.
Carola: Em O mito do eterno retorno, Mircea Eliade aborda a distinção entre tempo mĂtico e tempo profano. Ele diz:
Naturalmente, a abolição do tempo profano e a projeção do indivĂduo para o tempo mĂtico sĂł acontecem nos perĂodos essenciais — isto Ă©, naqueles em que o indivĂduo de fato Ă© ele prĂłprio: por ocasiĂŁo de rituais ou atos importantes (alimentação, geração, cerimĂ´nias, caça, pesca, guerra, trabalho). O restante de sua vida Ă© passado em tempo profano, que carece de todo significado: na condição de “transformar-se”.
O que seria para vocĂŞ o tempo mĂtico e o profano, como eles se entrelaçam e como vocĂŞ vĂŞ isso na literatura?
Marcelo: Para mim, e nĂŁo sou nenhum especialista no assunto, o tempo mĂtico se dá quando estamos imersos numa atividade, seja capturados por um livro ou filme, dançando, fazendo sexo, sonhando, participando de um ritual ou escrevendo de portas fechadas. O tempo profano Ă© tudo aquilo que se faz desatento, sem paixĂŁo, sem entrega, sem verdade, sem desejo, sem amor. É possĂvel que todos os exemplos anteriores possam ser vivenciados como tempo profano. Portanto, o tempo mĂtico Ă© o tempo de estar presente no aqui/agora, em cada gesto, ação, experiĂŞncia. Na literatura, acho que esse tempo mĂtico Ă© o tempo da leitura. Ele se prolonga nas muitas leituras, Ă s vezes durante anos, sĂ©culos. Portanto, para mim a leitura tambĂ©m faz parte do tempo mĂtico.
Carola: Que bonito isso da leitura como tempo mĂtico. Sim, há um lugar que habitamos quando lemos um livro, e para onde voltamos a cada releitura. Mas como o tempo passa para a gente, a cada retorno encontramos algo diferente, algo que nĂŁo havĂamos percebido.