🔓 Werther

“Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, ditou moda entre jovens e foi um estrondoso sucesso no século 18
Ilustração: Tereza Yamashita
01/11/2022

1.
À época do surgimento de Os sofrimentos do jovem Werther, a Europa começava a apresentar novidades culturais que rompiam com a lucidez do Iluminismo, tais como algumas sinfonias de Haydn, de Mozart, e no plano literário, com o chamado “romance sensível”, que relatavam amores proibidos entre pessoas de classes diferentes e com desfecho trágico. Não era uma entrega total ao Romantismo, mas já traziam alguns de seus indícios. A forma preferencial para desenvolvimento do enredo era a troca de cartas. Assim, foi, por exemplo, A nova Heloísa, um gigantesco livro de Rousseau, que causou certo tremor de terra entre os meios letrados; afinal, não era frequente, na literatura, que uma mocinha se apaixonasse por seu professor, e que esse professor chegasse à conclusão que o melhor era se separarem temporariamente.

2.
Novidade a valer foi o Werther, aparecido em Leipzig no ano de 1774, uma novela de poucas páginas e imenso coeficiente sulfuroso. Goethe, na altura, com 25 anos, era um brilhante intelectual, bonito, alegre, esportista, cercado por pessoas que o adoravam. Vinha de uma família rica de Frankfurt, e, desse modo, nada lhe faltava. Apaixonava-se com facilidade, hábito que manteve inclusive na alta idade. O homem certo para escrever uma novela de amor. E escreveu-a, e publicou-a. E foi um estrondoso sucesso e um escândalo. Digamos assim: fosse hoje, nós estaríamos na fila para pegar seu autógrafo e acompanharíamos com interesse tudo o que ele viesse a dizer ou fazer.

3.
O enredo é tão conhecido que já não se fala em spoiler: um jovem apaixona-se, não é correspondido e se suicida. Uma história que é contada pelo próprio jovem, Werther, dirigida a seu amigo Wilhelm, através de uma sucessão de cartas. Como não podia contar a própria morte, esta é contada por outros, que o encontraram sem vida e com a pistola na mão. Vestia uma indumentária colorida em tons fortes — isso causou uma moda entre jovens alemães, que não apenas copiaram seu modelo de casaco e calças, como imitaram seu trágico fim, numa onda de suicídios que ainda está por ser estudada em pormenor.

4.
Afirmei que o Werther foi uma novidade, mas por que foi uma novidade? Em primeiro lugar, porque havia um ambiente cultural e social propício para o florescer de celebridades, que já permitia paixões coletivas dirigidas à obra, mas, também, ao seu autor. Era portanto normal que as pessoas, especialmente jovens, não tivessem problemas de andar com o livro de Goethe debaixo do braço: eram logo considerados à la mode. Sob olhares mais conservadores, poderiam ser vistos como uma ameaça às famílias, excelente propaganda da obra, mas, ao mesmo tempo, poderiam agradar aos mais audazes, esses que já abandonavam as perucas rococós sobre o crânio e se atreviam a usar seus cabelos naturais.

5.
Em segundo lugar, o Werther era uma novidade porque se tratava de uma voz que escrevia em primeira pessoa; isso não era inédito, claro; a personagem era alguém contemporâneo, um burguês habitual, com emprego público na Justiça, que poderia ser encontrado num restaurante, ou discutindo num armazém ou bebendo numa cervejaria. Não era um poeta, a rigor, nem um homem de letras, mas um ser como nós, que, de repente, poderia apaixonar-se de maneira avassaladora e chegar a uma ação fatal. Isso ninguém tinha lido, e acrescente-se da personagem, era um homem, e, digo tautologicamente, não era uma mulher, a quem se autorizava tais fraquezas e capaz de escrever: “Vou vê-la!, exclamo pela manhã quando desperto e olho com serenidade em direção ao sol nascente! Vou vê-la! E já não tenho outro desejo para todo aquele dia. Tudo, tudo, se afoga nessa perspectiva”. Essa exasperação masculina, inegável, era ousada, quase pecaminosa.

6.
Em terceiro lugar, a personagem, pela idade, pelas circunstâncias sociais e experiências humanas, com facilidade poderia ser confundida com o próprio autor, o que acrescentava um delicioso picante de voyeur ao prestígio da obra. O Werther, assim, guardadas as imensas diferenças semânticas, talvez tenha sido um precursor do que viríamos a chamar, pelo tempo que durou, de autoficção. Os sofrimentos do jovem Werther é o livro que mais vejo colado à pessoa de seu autor. Fala-se em Hamlet, D. Quixote, Madame Bovary, O morro dos ventos uivantes; mas, ao declinarmos o título de que nos ocupa, é sempre: “O Werther, de Goethe”. Sabemos o quanto a heroína, Charlotte, tinha o mesmo nome de uma amada de Goethe, mulher casada com um complacente Kestner. Leia-se: “Como eu me deleitava na contemplação de seus olhos negros durante esta conversa! Como seus lábios vermelhos e suas faces frescas e vivas cativavam minha alma inteira! Como, mergulhado no som esplendoroso de sua fala, às vezes nem sequer ouvia as palavras que ela proferia”. Convenhamos, uma joia de encantamento, que poderia ter sido o mesmo fascínio de Goethe perante sua própria e “real” Charlotte.

7.
A trabalho, numa visita a Weimar, aproveitei um momento de folga e estive no casarão de Goethe, situado na praça central. Caminhei por suas imensas, mal distribuídas e silenciosas salas. Tudo ali respira solenidade e paz. Já era o Goethe velho, consagrado e cheio de medalhas e títulos. Sim, o ancião caminhava por ali, apoiado em sua bengala, e quando ia à janela para olhar a praça, decerto lembrava de Werther e seus amores, mas não com nostalgia. Decerto, e com malícia, lembrava das palavras de Cícero: “Incapazes que somos de resistir a todas as tentações, temos que ceder, aqui e ali, ao prazer”. Saí sorrindo, e mais ainda quando entraram três ruidosos turistas brasileiros que, ao lerem no capacho da porta principal a palavra “Salve!” admiravam-se de que Goethe sabia português. Não tive o descaramento de explicar a eles que se trata de uma palavra latina.

8.
A importância do Werther foi tão avassaladora — e transformadora — que autoriza evocar a metáfora do surgimento da explosão seminal do universo, ocorrido há mais de 13 bilhões de anos: apesar do tempo e da distância, suas ondas cósmicas chegam até nós. Foi lido por sucessivas gerações. Não sei se posso falar em sua atualidade; é possível que esta não possa ser encontrada no plano das indagações sociológicas ou teórico-literárias; mas sua ideia persiste, e sempre nova. Hoje, o amor foi relegado à irrelevância num mundo cada vez mais cínico e brutal, mas sempre que lemos essa obra acreditamos nele, tanto para lembrarmos a extrema juventude, quanto para reconhecê-lo, latente, dentro de nós. Vai para a mochila.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho