Há um ano, o tĂtulo de minha coluna expressava o sentimento de boa parte daqueles que nĂŁo suportavam mais viver sob o agora ex-mandatário e, ao mesmo tempo, resistiam a ele e sua insistĂŞncia em submeter a nossa jovem democracia aos lances fascistas de seu desgoverno. Intitulada 2022: o esperançar das tristezas, a coluna procurou saudar o novo ano que chegava ainda prenhe de sofrimento cĂvico e pessoal. Estavam em pleno desenvolvimento, e pareciam nĂŁo ter fim, os horrores que ainda nos atormentam: ataques Ă democracia, desrespeito aos direitos humanos, impunidade dos corruptores dos cofres pĂşblicos e dos usurpadores da cidadania, tudo isso com o incentivo das mais altas autoridades do paĂs. Pior, vislumbrava-se a possibilidade desse horror se perpetuar por mais quatro anos nas eleições que viriam em outubro.
Naquele inĂcio de ano, onde tĂnhamos muitas tristezas acumuladas e poucas perspectivas em superá-las, foi preciso tirar delas a esperança ativa e, consequentemente, a força para se opor ao projeto do tirano. Era preciso tambĂ©m procurar saĂdas que nos resgatassem as perdas reais, morais e de cidadania que seguĂamos sofrendo desde o golpe antidemocrático que destituiu uma presidente eleita e sem culpa de qualquer crime que a levasse ao impedimento de suas funções constitucionais.
Sintetizei no artigo de janeiro de 2022 o que havĂamos perdido: “perdemos como coletividade, como nação, valores simples, daqueles que se esperam entre conhecidos e amigos, entre vizinhos de um mesmo territĂłrio, algo como a confiança de que podemos falar livremente sem riscos de sermos agredidos. Perdemos a compaixĂŁo com os menos favorecidos pela sociedade desigual, a empatia com atingidos pelas enfermidades e pelo desemprego, a solidariedade pelos injustiçados, o respeito aos direitos humanos”.
Se esses vaticĂnios de ano novo infelizmente ocorreram em 2022, igualmente se confirmou a força e a presença daqueles movimentos sociais que resistiram e souberam construir saĂdas no meio do caos fascista. E essa construção nĂŁo poderia ter melhor desfecho do que a derrota do presidente inominável em outubro, com o triunfo da maioria dos votos populares elegendo o candidato da democracia e dos direitos humanos para a presidĂŞncia. Escrevi assim há um ano: “A resiliĂŞncia pulsa, recordemos, e 2022 Ă© a hora de dar consequĂŞncia a ela expulsando o que nos entristece e recomeçando a reconstruir o que nos foi tirado da polĂtica pĂşblica”.
O balanço de 2022, apesar de todos os sofrimentos, angústias e percalços, é positivo quando constatamos que soubemos, democraticamente, expulsar o que nos entristece e recomeçar o Brasil pleno de liberdades, de direitos e de deveres pautados pela Constituição, pelas leis e pela busca da harmonia nos territórios coletivos que toda sociedade minimante organizada conquista.
Portanto, que comece 2023, ano do esperançar freiriano, que necessitará ainda e tanto da resiliĂŞncia dos ativistas pelos direitos, pela civilidade e pela liberdades democráticas. NĂŁo nos iludamos que será fácil a reconquista de um estágio civilizatĂłrio que começávamos a consolidar apĂłs 30 anos do final da ditadura de 1964. A divisĂŁo do paĂs Ă© mais que evidente, e a parcela da sociedade que está sob as ordens ou sob a manipulação subversiva da extrema direita mostra suas garras violentas com atos terroristas que agridem e assassinam brasileiros, interrompem o direito de ir e vir, queimam propriedades e bens pĂşblicos, atacam a justiça e a liberdade de expressĂŁo e de vinculação a partidos ou Ă s causas emancipatĂłrias.
Aos ativistas que formam leitores e leitoras em todos os cantos do Brasil caberá uma atividade diuturna e imprescindĂvel: alĂ©m de nĂŁo esmorecer na luta pelo direito Ă leitura para todos e continuar a formar mais e mais leitores e leitoras, Ă© preciso tambĂ©m auxiliar o novo governo Lula a cumprir sua promessa de campanha — mais livros e menos armas. Na coluna de dezembro, já tratei dos caminhos a seguir com a reprodução dos dez pontos que ativistas do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas endereçaram em Carta aberta ao presidente e a todos os democratas brasileiros.
NĂŁo Ă© necessário repetir o que já foi dito, mas Ă© importante lembrar que se já nos expressamos enquanto ativistas sobre os caminhos, Ă© fundamental que auxiliemos o novo governo sendo vigilantes, participantes e atuantes em todos os aspectos e desdobramentos da regulamentação da lei 13.696/2018, da PolĂtica Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, e da construção do novo Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL decenal. Empossado o novo presidente e seus ministros/as da Cultura e da Educação, Ă© importante dar consequĂŞncia Ă s intenções de inclusĂŁo de todos e todas Ă cultura e Ă educação e criar meios, mesmo sob dificuldades notĂłrias pelas quais o paĂs passa, de reerguer os programas e ações que formam leitores no paĂs.
NĂŁo podemos e nĂŁo devemos deixar somente aos governos a recordação de que Ă© preciso agir pela leitura e pelo livro, por mais confiança que tenhamos nas lideranças. Caberá sempre Ă sociedade civil organizada e aos ativistas da cultura e da educação o dever de recordar/reivindicar/cobrar/participar do processo de reconstrução do novo arcabouço do Estado brasileiro e de suas polĂticas de formar leitores sob os quatro eixos do PNLL, hoje perpetuados na PNLE: democratização do acesso ao livro e Ă leitura em todos os seus suportes; incentivo e formação de mediadores e mediadoras de leituras; zelo e incremento ao valor simbĂłlico do livro, das leituras, das literaturas e das bibliotecas; apoio e incentivo ao desenvolvimento da economia do livro.
Se nos Ăşltimos anos o ativismo foi de total resistĂŞncia aos ataques fascistas contra o livro e a leitura, evidenciados pela destruição das polĂticas pĂşblicas federais do setor, o prĂłximo quadriĂŞnio será do esperançar que nĂŁo renuncia a se fazer ouvir, de exigir planos, programas, ações e investimentos do Estado para a formação de leitores em todos os quadrantes do Brasil.
Lembro aos amigos e amigas escritores, editores, livreiros, distribuidores, bibliotecários e trabalhadores em bibliotecas, contadores de histĂłrias, mediadores de leitura, e a todas as associações representativas do setor, que somos excessivamente silenciosos e pouco nos fazemos ouvir pelos governos e pela sociedade, salvo raras e episĂłdicas exceções. É o momento, na retomada democrática representada pela eleição do presidente Lula e por seu ministĂ©rio plural que representa a sociedade brasileira, que gritemos mais alto as nossas reivindicações e que esses gritos sejam sempre acompanhados da mensagem inequĂvoca que um Brasil de leitoras e leitores plenos Ă© o mais eficaz instrumento para a emancipação civilizatĂłria de seu povo. E, antes de tudo, Ă© um direito humano.
Se a leitura por si só não transforma o ser humano em um democrata antifascista, é certo que um leitor ou leitora terá instrumentos mais aguçados, na era da super informação e do conhecimento múltiplo, para compreender e rechaçar as investidas das mentiras cotidianas, da violência social, do autoritarismo opressor e do lugar dos direitos e deveres em uma sociedade organizada.