🔓 2023: o ano do esperançar

Os muitos desafios para fortalecer a frágil estrutura em torno das políticas para o livro e leitura no Brasil
Ilustração: Conde Baltazar
01/01/2023

Há um ano, o título de minha coluna expressava o sentimento de boa parte daqueles que não suportavam mais viver sob o agora ex-mandatário e, ao mesmo tempo, resistiam a ele e sua insistência em submeter a nossa jovem democracia aos lances fascistas de seu desgoverno. Intitulada 2022: o esperançar das tristezas, a coluna procurou saudar o novo ano que chegava ainda prenhe de sofrimento cívico e pessoal. Estavam em pleno desenvolvimento, e pareciam não ter fim, os horrores que ainda nos atormentam: ataques à democracia, desrespeito aos direitos humanos, impunidade dos corruptores dos cofres públicos e dos usurpadores da cidadania, tudo isso com o incentivo das mais altas autoridades do país. Pior, vislumbrava-se a possibilidade desse horror se perpetuar por mais quatro anos nas eleições que viriam em outubro.

Naquele início de ano, onde tínhamos muitas tristezas acumuladas e poucas perspectivas em superá-las, foi preciso tirar delas a esperança ativa e, consequentemente, a força para se opor ao projeto do tirano. Era preciso também procurar saídas que nos resgatassem as perdas reais, morais e de cidadania que seguíamos sofrendo desde o golpe antidemocrático que destituiu uma presidente eleita e sem culpa de qualquer crime que a levasse ao impedimento de suas funções constitucionais.

Sintetizei no artigo de janeiro de 2022 o que havíamos perdido: “perdemos como coletividade, como nação, valores simples, daqueles que se esperam entre conhecidos e amigos, entre vizinhos de um mesmo território, algo como a confiança de que podemos falar livremente sem riscos de sermos agredidos. Perdemos a compaixão com os menos favorecidos pela sociedade desigual, a empatia com atingidos pelas enfermidades e pelo desemprego, a solidariedade pelos injustiçados, o respeito aos direitos humanos”.

Se esses vaticínios de ano novo infelizmente ocorreram em 2022, igualmente se confirmou a força e a presença daqueles movimentos sociais que resistiram e souberam construir saídas no meio do caos fascista. E essa construção não poderia ter melhor desfecho do que a derrota do presidente inominável em outubro, com o triunfo da maioria dos votos populares elegendo o candidato da democracia e dos direitos humanos para a presidência. Escrevi assim há um ano: “A resiliência pulsa, recordemos, e 2022 é a hora de dar consequência a ela expulsando o que nos entristece e recomeçando a reconstruir o que nos foi tirado da política pública”.

O balanço de 2022, apesar de todos os sofrimentos, angústias e percalços, é positivo quando constatamos que soubemos, democraticamente, expulsar o que nos entristece e recomeçar o Brasil pleno de liberdades, de direitos e de deveres pautados pela Constituição, pelas leis e pela busca da harmonia nos territórios coletivos que toda sociedade minimante organizada conquista.

Portanto, que comece 2023, ano do esperançar freiriano, que necessitará ainda e tanto da resiliência dos ativistas pelos direitos, pela civilidade e pela liberdades democráticas. Não nos iludamos que será fácil a reconquista de um estágio civilizatório que começávamos a consolidar após 30 anos do final da ditadura de 1964. A divisão do país é mais que evidente, e a parcela da sociedade que está sob as ordens ou sob a manipulação subversiva da extrema direita mostra suas garras violentas com atos terroristas que agridem e assassinam brasileiros, interrompem o direito de ir e vir, queimam propriedades e bens públicos, atacam a justiça e a liberdade de expressão e de vinculação a partidos ou às causas emancipatórias.

Aos ativistas que formam leitores e leitoras em todos os cantos do Brasil caberá uma atividade diuturna e imprescindível: além de não esmorecer na luta pelo direito à leitura para todos e continuar a formar mais e mais leitores e leitoras, é preciso também auxiliar o novo governo Lula a cumprir sua promessa de campanha — mais livros e menos armas. Na coluna de dezembro, já tratei dos caminhos a seguir com a reprodução dos dez pontos que ativistas do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas endereçaram em Carta aberta ao presidente e a todos os democratas brasileiros.

Não é necessário repetir o que já foi dito, mas é importante lembrar que se já nos expressamos enquanto ativistas sobre os caminhos, é fundamental que auxiliemos o novo governo sendo vigilantes, participantes e atuantes em todos os aspectos e desdobramentos da regulamentação da lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, e da construção do novo Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL decenal. Empossado o novo presidente e seus ministros/as da Cultura e da Educação, é importante dar consequência às intenções de inclusão de todos e todas à cultura e à educação e criar meios, mesmo sob dificuldades notórias pelas quais o país passa, de reerguer os programas e ações que formam leitores no país.

Não podemos e não devemos deixar somente aos governos a recordação de que é preciso agir pela leitura e pelo livro, por mais confiança que tenhamos nas lideranças. Caberá sempre à sociedade civil organizada e aos ativistas da cultura e da educação o dever de recordar/reivindicar/cobrar/participar do processo de reconstrução do novo arcabouço do Estado brasileiro e de suas políticas de formar leitores sob os quatro eixos do PNLL, hoje perpetuados na PNLE: democratização do acesso ao livro e à leitura em todos os seus suportes; incentivo e formação de mediadores e mediadoras de leituras; zelo e incremento ao valor simbólico do livro, das leituras, das literaturas e das bibliotecas; apoio e incentivo ao desenvolvimento da economia do livro.

Se nos últimos anos o ativismo foi de total resistência aos ataques fascistas contra o livro e a leitura, evidenciados pela destruição das políticas públicas federais do setor, o próximo quadriênio será do esperançar que não renuncia a se fazer ouvir, de exigir planos, programas, ações e investimentos do Estado para a formação de leitores em todos os quadrantes do Brasil.

Lembro aos amigos e amigas escritores, editores, livreiros, distribuidores, bibliotecários e trabalhadores em bibliotecas, contadores de histórias, mediadores de leitura, e a todas as associações representativas do setor, que somos excessivamente silenciosos e pouco nos fazemos ouvir pelos governos e pela sociedade, salvo raras e episódicas exceções. É o momento, na retomada democrática representada pela eleição do presidente Lula e por seu ministério plural que representa a sociedade brasileira, que gritemos mais alto as nossas reivindicações e que esses gritos sejam sempre acompanhados da mensagem inequívoca que um Brasil de leitoras e leitores plenos é o mais eficaz instrumento para a emancipação civilizatória de seu povo. E, antes de tudo, é um direito humano.

Se a leitura por si só não transforma o ser humano em um democrata antifascista, é certo que um leitor ou leitora terá instrumentos mais aguçados, na era da super informação e do conhecimento múltiplo, para compreender e rechaçar as investidas das mentiras cotidianas, da violência social, do autoritarismo opressor e do lugar dos direitos e deveres em uma sociedade organizada.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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