Vencido pela própria criação

José Luiz Passos: "Não sentir essa vontade de escrever outro romance e outro, e mais outro, já seria um grande alívio."
José Luiz Passos, autor de “Nosso grão mais fino”
06/01/2014

José Luiz Passos pode ter ganhado o Prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2013 com O sonâmbulo amador (Alfaguara), mas um de seus grandes prazeres está mesmo em ser vencido pelo próprio texto, que passa então a “me fazer uma companhia diferente daquela em que eu o tomava como simples extensão de mim”. Nascido em Catende (PE), em 1971, Passos estreou na ficção em 2009 com Nosso grão mais fino (Alfaguara), e em março publica Romance com pessoas: A imaginação em Machado de Assis, versão reescrita e ampliada de um ensaio sobre a influência de Shakespeare na composição moral dos narradores e personagens de Machado, pela mesma editora.

Atualmente residindo em Los Angeles, onde é professor de literaturas brasileira e portuguesa na Universidade da Califórnia, o pernambucano conta que terminou O sonâmbulo amador — romance sobre as existências sonâmbulas de um funcionário da indústria têxtil pernambucana pós-surto psicótico — numa cabana na ponta do deserto Mojave: “É o mais perto do sertão que consigo chegar num fim de semana, indo de carro, a partir de Los Angeles…”. Outros detalhes sobre seu processo de escrita, manias e leituras correntes ele revela neste Inquérito.

Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando nasci, um anjo fofo, desses que se parecem com Vanessa Barbara, disse, Vai, Zé!, ser escritor pernambucano na vida. A vontade de inventar piorou na escola, quando lia tirinhas de Flash Gordon, e então me peguei tentando fazer igual.

 Quais são suas manias e obsessões literárias?
Escrevo falando sozinho, leio em voz alta, andando pela casa. Meus filhos riem; minha esposa balança a cabeça e sai fechando as portas. Só começo um texto quando tenho um título pronto.

Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
Sou praticante da página casual. Passo a vista nas estantes, abro um livro no meio e leio a partir dali. Costumo fazer isso com meus poetas e romancistas favoritos. Quando não consigo escrever, busco alguma coisa nova, ou volto aos de sempre. Na cabeceira, agora, por exemplo, aproveitando as férias, estão as Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero, que reúne as narrativas de Álvaro Mutis sobre o marinheiro Maqroll, e uma deliciosa antologia de Julio Mendonça, chamada Poesia (im)popular brasileira, com poemas de Edgard Braga, Gregório de Matos, Max Martins, Omar Khouri, Pagu, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Torquato Neto… e por aí vai. Uma maravilha.

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
Essa é fácil. Os relatórios que Graciliano Ramos publicou no Diário Oficial, quando era prefeito de Palmeira dos Índios, seguido do folheto de cordel A peleja de Zé Prequeté contra o Prefeito Sabichão.

Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Em circunstâncias ideais, não precisaria escrever. Isso dito, acabei O sonâmbulo amador numa cabana na ponta do deserto Mojave, no parque nacional de Joshua Tree. É o mais perto do sertão que consigo chegar num fim de semana, indo de carro, a partir de Los Angeles…

Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
O silêncio ajuda. Mas também gosto de ler com meus filhos no colo, o que é o oposto do silêncio. Em certo momento, eles sempre começam a corrigir ou ampliar a história, e a leitura vira a imaginação de outra coisa. Meu filho, que tem quatro anos, tem um amigo imaginário, Bado — pronunciado por ele “bei-dou” —, que invariavelmente já passou por toda e qualquer experiência contada nos livrinhos. A irmã, que tem sete, não resiste e acaba sempre debatendo a improbabilidade disso. Então, qualquer leitura vira uma verdadeira epopéia.

O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando, depois de dormir bastante, acordo cedo e começo a escrever; mesmo que seja algo ruim, que depois será cortado. Qualquer coisa vale. O mais difícil é abrir no espaço de 24 horas um tempo para cultivar o hábito de ficar metido dentro da mesma história durante dois, três, quatro anos. A mera idéia para o nome de uma personagem ou para o fecho de um capítulo, mesmo antes de ser registrada na caderneta, já salva o dia.

O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O estranhamento. Isso acontece quando deixo de me reconhecer no livro; deixo de perceber meus próprios truques ou lembrar de como escrevi aquilo, e de repente o texto me vence, na sua objetividade, e passa a me fazer uma companhia diferente daquela em que eu o tomava como simples extensão de mim.

Qual o maior inimigo de um escritor?
Não tenho como evitar essa. Vou repetir aqui o que muitos já disseram. É a vaidade. O que me consola é que ela não é propriedade exclusiva dos escritores… Mas, às vezes, me parece que somos um pouquinho mais apegados a esse pó do que a maioria dos mortais.

O que mais lhe incomoda no meio literário?
Muita gente dá opinião sobre livros que não leu. Muito livro ganha destaque apenas pelo pedigree social do autor, pelas opiniões políticas que ele possa ter ou pelo simples pezão de uma editora nos empurrando o livro garganta abaixo, em periódicos e vitrines de livraria. Sei que é assim, todo mundo sabe que é assim; mas isso ainda me dá dó.

Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Morto ou vivo? Bom, atualíssimo: Osman Lins.

Um livro imprescindível e um descartável.
Coivara da memória, de Francisco J. C. Dantas, me fez querer escrever romances. A lista dos descartáveis é longa; não quero cometer nenhuma injustiça, deixando alguém de fora. Aliás, nesta categoria o empate técnico é muito comum.

Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Subestimar o leitor: por exemplo, quando uma narrativa de ficção ex-pli-ca as coi-sas bem di-rei-ti-nho, talvez por medo de “perder” o leitor. Esse livro já perdeu o leitor e não sabe.

Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Flash Gordon. Comecei por aí. Não quero me repetir.

Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Perambulando pela praia em Salvador, uma vez esbarrei numa bonequinha branca, de pano, fruto de algum trabalho de candomblé. Ela era linda, então levei para casa; sei que isso não se faz, mas levei… Dela saiu minha personagem Minie, e uma cena em que ela própria também encontra uma bonequinha na praia.

Quando a inspiração não vem…
Antes tinha o charuto, o uísque. Agora, corro sete quilômetros em volta de uma praça, perto de casa. Quando a coisa aperta, vou à praia, ver se encontro alguma bonequinha.

Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Os mortos são, em geral, mais ocupados. Portanto, não iria querer desperdiçar essa oportunidade. Henry James.

O que é um bom leitor?
Aquele que lê até o fim.

O que te dá medo?
Um monte de coisas. (Lembrando: sou professor de letras, imigrante, tenho dois filhos pequenos…) Tenho medo de quem diz: não leia, não vale a pena.

O que te faz feliz?
Feliz? Hmm. Fico contente quando adormeço com as crianças cochilando por cima da minha barriga. Também quando acabo um livro e ele está prestes a sair. É como se eu estivesse diante de um país que aguarda a chegada de mais gente, para uma primeira visita. Sinceramente, descontado o terror, a sensação é extraordinária.

Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A dúvida de que se possa escrever um livro impecável. E a certeza de que, quando a literatura funciona, ela nos faz ver relações e nomear sentimentos que, de outra maneira, nunca sairiam do grande poço que é a opacidade do real, daquilo que está dado e nos parece natural ou familiar demais. A literatura chacoalha isso.

Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Tento imaginar situações que não sejam as minhas, opiniões com as quais não necessariamente concordo, e mostrar isso ao leitor sem dar a ele nenhuma lição ou explicação dessas coisas.

A literatura tem alguma obrigação?
Obrigação, não. Mas acho que pode ter um alvo; digamos, oferecer ao leitor uma experiência que ele ache que vale a pena compartilhar.

Qual o limite da ficção?
Obviamente, a não-ficção.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Olha, sei que a resposta correta é Lula, ou Bob Dylan. Também não vou repetir o nome de Osman Lins; iria parecer bairrismo meu… Então, fico com Fred, por conta daquele gol contra a Espanha. Chutar do chão, quando as chances parecem nulas, é ao mesmo tempo oportunismo justificado e maravilha literária.

O que você espera da eternidade?
Não sentir essa vontade de escrever outro romance e outro, e mais outro, já seria um grande alívio.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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