Nascida em 15 de março de 1958 em Porto Alegre (RS), Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora, jornalista e assessora de imprensa. O reino das cebolas, sua primeira obra individual, foi publicado em 1996. Em seguida, vieram o romance Por que sou gorda, mamãe? e dois trabalhos vencedores do Prêmio Açorianos de Literatura: a novela Duas iguais — Manual de amores e equívocos assemelhados e o livro de contos Anotações durante o incêndio, que reúne onze textos de temáticas diversas, com destaque ao judaísmo e à condição feminina. Nesta breve conversa, Cíntia relata suas manias e obsessões — e não são poucas — em busca da paz necessária à escrita para, quem sabe, achar a transcendência em algum lugar.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Desde pequena, menina ainda, tinha essa atração. Não sabia que queria ser escritora, mesmo. Aliás, eu nem imaginava que alguém podia decidir ser escritor. De certeza, eu só tinha que queria escrever.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Manias? Poxa, um zilhão delas. Para ler ou escrever, tem de estar tudo em silêncio, não tolero nem o caminhar dos gatos. A página do Word deve estar formatada como eu gosto, com texto justificado, fonte Arial, 12, com todos os caracteres não imprimíveis aparentes. Não posso ter horário para acabar a sessão de escrita. Não consigo escrever com gente por perto (é como ir ao banheiro, a gente sempre fecha a porta). Desde que parei de fumar, tenho que ter à mão café, chá ou chimarrão. Ou tudo junto. E jamais escrevo se tiver bebido uma gota de álcool. Nas horas mais difíceis, quando a coisa não vai, confesso que meu expediente é pegar um par de óculos do pai para me dar segurança e imaginação. Ajuda muito.
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
Jornal. E revistas de decoração.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Acho que falei um pouco acima, na questão sobre as obsessões. Mas a melhor coisa do mundo para escrever é mesmo a paz e o silêncio. De preferência com pouca roupa, temperatura agradável. No inverno, tenho que ter um tapete. E todos os meus bichos em volta de mim. A paz da qual eu falo é a paz interior mesmo, aquela coisa zen, que nada tem a ver com metafísicas. Tem a ver com concentração e dedicação ao que se está fazendo. Só consigo escrever muito concentrada no próprio texto. E meu estado anímico tem de ser de envolvimento total. Escrever é muito sério para ser feito com leviandade, no joelho.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
São semelhantes às de escritura. Mas posso ler em qualquer lugar. Avião é excelente. Praia é maravilhoso.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Faz tempo, muito tempo que não tenho um dia assim, de sentir que o dia rendeu. Muito por causa de uma creche que se mudou para o lado de minha casa e, enquanto as crianças e professores berram nove horas por dia e se discute na Justiça a solução para um problema que um pouco de bom senso resolveria, escrevo quando dá, na madrugada, depois do horário em que a creche funciona. Mas um dia de trabalho produtivo era, em suma, aquele que, à hora da janta, eu tinha pelo menos encaminhado o texto, sintonizado linguagem com idéia. E tinha, antes de tudo, conseguido ler e ter dado uma volta entre minhas plantas, que era quando eu podia pensar.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Três momentos de ouro: quando sinto que vou chegar perto do que eu queria escrever, que vai dar, que o caminho é assim ou assado, que é por ali. Isso não significa que vai dar certo, que o texto vai ser bom. Apenas significa que há uma espécie de coerência interna do texto, à qual a gente chegou sabe Deus como, fugindo de clichês e soluções óbvias. Dali por diante escrever é prazer, sim. O segundo momento é depois do ponto final, quando começa o trabalho de reescritura, a parte braçal, que eu adoro. E quando o texto finalmente é publicado. Vezes houve em que me pareceu um milagre conseguir ter escrito.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
Perigos demais. O maior inimigo, sem sombra de dúvida, é o mundo e esse chamado perpétuo ao hedonismo. Um escritor é um profissional que cumpre regulamentos internos e singulares e que gosta, muito, dos prazeres mundanos, como o não fazer nada, por exemplo. O ócio, e cito Domenico de Masi sem ter lido, é o céu e o inferno: a criação só se dá naquele estado de leveza interior e descompromissada. Mas esse mesmo estado de “desobrigação” pode levar a dispersões, que nada têm a ver com a literatura. Outro perigo que ronda o escritor é a presunção e o excesso de autoconfiança. Melhor ser inseguro e neurótico do que ser um prepotente plácido e idiota. Sempre que eu tive convicções daquelas de pedra me dei mal. Aprendi a baixar a cabeça, a regular o facho e a ser humilde, no sentido de valorizar a opinião alheia e aumentar a autocrítica.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Os excessos. Excesso de gente pedindo opiniãozinha e colocando na mão da gente originais de mil páginas. Excesso de citação de célebres e famosos. Excesso de convites para falar para gente desinteressada no que a gente tem a dizer. Entre meus pares, odeio o cara que, sem ser perguntado, começa a falar o que está escrevendo: é uma intimidade que não quero com alguns autores e é uma resposta que precisa de uma pergunta. Não gosto de falar de minha literatura e nem de dizer o que estou escrevendo. Sobre isso, só consigo falar com quatro pessoas no mundo. Com escritores amigos, gosto de falar de jardinagem, tomar cerveja, dar risada e falar de literatura e de outros autores. O que mais gosto é poder ficar em silêncio.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Monique Revillion. Uma jóia. Publicou uma pérola chamada Teresa, que esperava as uvas. É gaúcha.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Laços de família, da Clarice, é imprescindível. Descartáveis? Já perdi a conta.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A pretensão.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não consigo encontrar um assunto sobre o qual não escreveria. Talvez sobre violência sexual. Mas por que não sobre violência sexual?
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
De uma gôndola de supermercado, na parte das verduras. Uma empregada doméstica que escolhia alface. Tive a idéia na hora.
• Quando a inspiração não vem…
Leio. Mexo na terra. Ando de bicicleta. Leio de novo. Leio, leio, leio.
• O que é um bom leitor?
É o sujeito que consegue ler inclusive a entrelinha e o subentendido. E que é capaz de me dizer por que, dentro do texto, gostou ou não do que leu.
• O que te dá medo?
Morrer sem ter escrito tudo o que eu quero escrever e sem ter paz na minha casa.
• O que te faz feliz?
Sério? Um dia de trabalho e, de noite, ver tevê com o marido e os bichos em volta. A vida vira um troço transcendente nessas horas. Churrasco em casa me faz feliz. E silêncio e passarinho cantando. Tenho algumas manias naturebas.
• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
Certeza? Nenhuma, a não ser a de que bom resultado só se consegue mediante aquilo que o Sergio Faraco chama de “horas-bunda”. Tem uma dúvida eterna: a quem vai interessar isso que estou escrevendo? E a quem quero interessar?
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Precisão e sentimento. Meu texto tem de ser preciso mas não pode ser insosso e protocolar.
• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma. Credo. A obrigação da literatura é ser boa.
• Qual o limite da ficção?
Não há limites. E isso é uma espécie de terror.
• O que lhe dá forças para escrever?
Não sei. Mas acho que escrevo porque é a coisa que sei fazer melhor no mundo. Me dá forças saber que faço alguma coisa razoavelmente bem e que isso toca as pessoas de alguma forma. Também me dá forças o fato de achar que vivemos num final de mundo e que tenho de buscar a transcendência em algum lugar. Preciso. Só mesmo escrevendo.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não sei, não levaria o ET para ninguém. Coisa mais chata. Por que todo alienígena quer falar com o líder?
• O que você espera da eternidade?
A eternidade é muito grande para eu pensar nela. Mas eu queria que meus livros permanecessem. E que houvesse vida depois da morte, para eu encontrar com meu pai, meus avós e tios que se foram. E que no lugar em que todo mundo se encontrasse eu tivesse minha casa, meu marido e meus bichos e pudesse, finalmente, ler e escrever em paz. E tomar cerveja sem engordar.