Uma atividade insensata

João Paulo Cuenca: "Tudo é altamente prescindível no meu dia a dia, com a exceção, claro, de vícios e funções corporais às quais infelizmente ainda não posso renunciar."
João Paulo Cuenca, autor de “Qualquer lugar menos agora: crônicas de viagem para tempos de quarentena” Foto: Renato Parada
01/01/2022

Passar o dia lendo e escrevendo pode parecer o cenário ideal para muita gente que tem alguma relação com as letras. Para o carioca João Paulo Cuenca, no entanto, o trabalho do escritor não passa de uma atividade insensata. “É uma condição que não tenho outro remédio a não ser suportar”, afirma o autor de Qualquer lugar menos agora: crônicas de viagens para tempos de quarentena (2021). Escolhido pela Granta como um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros em 2012, J. P. — como assina suas obras — também lançou os romances Descobri que estava morto (2015), O único final feliz para uma história de amor é um acidente (2010) e Corpo presente (2003), entre outros.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Nunca aconteceu. Escrever sempre me pareceu uma atividade cujas motivações e propósitos ultrapassam qualquer intenção. E, cá entre nós, isso de querer ser escritor é um motivo muito fútil para começar a escrever — talvez o menos importante deles. O fato de ser escritor está além de uma decisão consciente, que poderia ter sido tomada sob alguma circunstância que a explicasse. Talvez por isso eu não lembre exatamente quando nasceu a necessidade de exercer essa atividade tão insensata, que me obriga a permanecer dias e noites frente a um teclado ou diante das letras impressas dos livros. E isso, que para muitos poderia parecer louvável e até motivo de elogio, é para mim uma condição que não tenho outro remédio a não ser suportar. Até porque não escrever é bastante pior.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
A culpa, o desejo, o ódio — e a verdade, o perdão, o amor. Muitas vezes direcionados à própria ideia de literatura.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Tudo é altamente prescindível no meu dia a dia, com a exceção, claro, de vícios e funções corporais às quais infelizmente ainda não posso renunciar.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
O estranho pensamento de um vigário de província: As memórias de Jean Meslier (1762).

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Numa cidade bombardeada. Ou no leito de morte, no exílio, na prisão.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
As mesmas. Eu só acrescentaria uma rede.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Uma frase. Basta uma frase.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Desescrever o que antes havia escrito, reescrevendo e encontrando novos caminhos.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A fotografia na orelha do livro. A mobília. A entrevista. A “consagração”. A lei da gravidade. A fome.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O bom-mocismo cada vez mais em voga e insosso, assim como qualquer ideia de produtividade, superioridade ou mesmo utilidade.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Mario Bellatin.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Ambos livros escritos por vários autores. O imprescindível: a Odisseia. O descartável: o Antigo Testamento.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O tempo. Que pode, a depender do caso, também ajudar a revelar qualidades e forjar clássicos.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
São muitos: rodeios, revólveres, motocicletas, montanhas-russas, futebol.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Curitiba.

• Quando a inspiração não vem…
É sempre bom apagar ou acender as luzes. E lembrar que inspiração não existe. Acredito mais em estar acordado. Profundamente acordado.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Só mortos, e cito apenas alguns: Lima Barreto, Georges Perec, Alejandra Pizarnik, Roberto Arlt, Clarice Lispector, Sérgio Sant’Anna.

• O que é um bom leitor?
O que tem a generosidade de, na sua leitura, escrever o livro junto com o autor. E que revisita o livro de tempos em tempos para ver se ainda está lá.

• O que te dá medo?
Calendários, bicicletas, portas giratórias e luzes fluorescentes.

• O que te faz feliz?
Boas surpresas, mudanças de luz. Quando algo de súbito vira outra coisa, e olhamos ao redor e aquele já é um lugar diferente, e nós também, outros: novos.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Certa vez o argentino César Aira disse que quando pedem a um escritor que fale em público, que responda perguntas como essas, que exponha suas ideias, na verdade o que se pede é que fale de suas intenções. De suas reais intenções. Mas a verdade é que não há intenções, e se algum dia as tivemos, elas acabam sempre traídas no processo. A literatura é o que sobra. Ela acaba “sendo a exterioridade de toda a intenção, e está além de todo o propósito”.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Acho que nunca saberei. Há um mistério que acompanha a minha vida, e talvez ele esteja no ponto de origem da minha escrita. Talvez eu escreva justamente com essa preocupação: entender por que escrevo. Entender por que me empenhei nessa atividade tão radical e contrária à lógica da sociedade, tão pouco gestual e lúdica, tão absurda.

• A literatura tem alguma obrigação?
Como qualquer forma de arte, não deveria ter nenhuma. Caso precise, talvez seja a demolição, o deslocamento, a erupção.

• Qual o limite da ficção?
A linguagem, sempre. É o nosso precipício, na beira de onde tentamos bailar — grotescamente e com alguma graça.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
À mulher mais próxima.

• O que você espera da eternidade?
Chope grátis.

 

Qualquer lugar menos agora: crônicas de viagem para tempos de quarentena
J. P. Cuenca
Record
240 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

Rascunho