A literatura como “ofício” entrou na vida Cinthia Kriemler tardiamente. Ela começou a escrever e publicar ficção após os 50 anos de idade. E desde então não parou mais.
Cinthia é autora de romances, contos, crônicas e livros de poesia. A recepção crítica à sua produção tem sido muito boa: a coletânea de histórias curtas Na escuridão não existe cor-de-rosa, lançada em 2015, foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; já seu romance Todos os abismos convidam para um mergulho, de 2017, esteve entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.
“Depois que comecei a escrever ficção, nunca mais parei”, diz a escritora nascida no Rio de Janeiro e radicada em Brasília. “Não consigo imaginar minha vida sem a escrita (é um clichê que me agrada).”
Entre seus outros livros, estão o romance Tudo que morde pede socorro (2019), a coletânea de poemas Exercício de leitura de mulheres loucas (2018) e os contos de Sob os escombros. Sua mais recente publicação é Viúvas de sal, romance em que retrata “meninas silenciadas, expostas a traumas, ao abuso sexual, à exclusão social e à alienação religiosa”, conforme aponta a editora Taciana Oliveira. A obra também foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura.
Essa “escrita política” é reafirmada pela autora neste Inquérito. Seu objetivo, é “conseguir escrever de forma séria e consciente sobre as pessoas que não têm voz ou sobre as que sofrem abusos (de todo tipo), em especial mulheres e crianças”.
A escritora ainda revela alguns de seus autores preferidos, livros essenciais, rotina de trabalho e aquilo que mais detesta no meio literário.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Aos 50 anos. Antes, o trabalho (sempre muito) não me deixava tempo pra “querer ser” mais nada. Mas sou da área da Comunicação e trabalhei a vida toda escrevendo. Além disso, sempre fui uma leitora consistente. Depois que comecei a escrever ficção, nunca mais parei. Não consigo imaginar minha vida sem a escrita (é um clichê que me agrada).
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Nada fora do comum. Pesquisar, antes e durante o processo de escrita. Tudo o que for necessário à história que estiver escrevendo. Quase obsessivamente. Caso contrário não me sinto segura. As minhas manias principais são: 1) Escrever logo uma primeira página de abertura forte, que impressione a mim mesma, e que eu acredite que vá impactar o leitor. Sem isso, me sinto insegura; 2) Escrever trechos e capítulos fora de ordem. O último pode ser escrito antes dos demais, por exemplo. Além disso, se eu tiver uma ideia repentina para um personagem, paro o que estava escrevendo e começo essa outra ideia (enfim, sou desorganizada); 3) Escrever revisando. Se não fizer isso, eu travo; 4) Ler em voz alta alguns trechos para descobrir o que está sobrando ou está esquisito. 5) Acordar no meio da noite, ter uma ideia e escrever no bloco de notas para desenvolver no dia seguinte, ou então anotar uma frase que me veio à cabeça.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Notícias (nacionais e internacionais). Postagens de literatura nas redes sociais (de amigos escritores, de entidades, de jornais literários). Poesia (escrevo poucos poemas, mas a poesia me ajuda a deixar o dia mais “limpo”). Gosto de ler poemas de algumas/alguns poetas (nacionais ou não).
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Difícil isso de “um”. De autora nacional: Não fosse as sílabas do sábado, da Mariana Salomão Carrara. De autor nacional: O avesso da pele, do Jeferson Tenório. De autora internacional: A guerra não tem rosto de mulher, da Svetlana Aleksiévitch. De autor internacional: Eu sou um gato, do Natsume Soseki.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Sossego. Não o silêncio, mas o não ser incomodada (por pessoas). Fim de noite ou madrugada. Em qualquer lugar confortável. Ou bonito — uma praia deserta seria uma delícia.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
As mesmas da pergunta anterior.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Escrever um trecho ou capítulo. Conseguir encontrar o caminho certo para um trecho que estou achando ruim. Conseguir transpor uma dificuldade ou indecisão em relação à narrativa.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Criar uma personagem forte, impactante, que conduza de forma interessante a história.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A procrastinação.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Disputas de ego, sexismo, falta de incentivo/suporte a escritores que não estão nas grandes editoras.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Adriane Garcia (poeta).
• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Torto arado, do Itamar Vieira Junior (independentemente de modismos).
Descartável: qualquer livro de autoajuda.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Excesso de descrições/explicações. Como se o leitor não fosse capaz de pensar sozinho.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nenhum (não vou citar autoajuda porque não considero isso literatura). Qualquer assunto pode valer um livro. O que interessa é como é abordado.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
De uma notícia sobre um animal em extinção.
• Quando a inspiração não vem…
Não insisto. Vou fazer outra coisa. Se insistir, é pior.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Ah, vários. Clarice Lispector, Machado de Assis, Virginia Woolf. Maria Teresa Horta, Murakami, Kim Hyesoon. Haja café.
• O que é um bom leitor?
O que se permite a internalização do que lê. O que lê de forma crítica. O que diz gosto ou não gosto de forma embasada.
• O que te dá medo?
Desânimo. Desistência. Falta de ideias.
• O que te faz feliz?
Escrever. Ser lida. Incentivar o pensamento crítico no leitor. Vencer uma dificuldade. Realizar um bom projeto. E as coisas simples do cotidiano.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Dúvida: escolher um tema. Sempre quero que minha escrita incomode/desacomode. Certeza: preciso sempre falar do que está socialmente invisível/submerso.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Conseguir escrever de forma séria e consciente sobre as pessoas que não têm voz ou sobre as que sofrem abusos (de todo tipo), em especial mulheres e crianças.
• A literatura tem alguma obrigação?
Não. Mas aquilo sobre o que se escreve é uma questão de escolha. A minha é falar sobre questões sociais. Não é minha obrigação, é minha opção.
• Qual o limite da ficção?
Tem limite? Não creio. Quem pode (se) impor ou não limites é o leitor.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Detesto líderes. Isso me pareceu muito messiânico. Assustador. Talvez se ele me pedisse “leve-me às mulheres e aos homens do seu tempo que fazem diferença para a Humanidade”, aí, sim.
• O que você espera da eternidade?
Alegria. Beleza (não física). Que seja um espetáculo único.