Para retardar o desfalecimento

Estevão Azevedo "Tem a obrigação de ser literatura, ou seja, a de não ser apenas panfleto, receita, retrato, piada, depoimento, processo, bula, etc."
Estevão Azevedo, autor de “Nunca o nome do menino”
31/12/2016

Estevão Azevedo vive a literatura com intensidade. Há anos percorre o mercado editorial como editor. Após passar pela Biblioteca Azul (da editora Globo), agora está na FTD. Nascido em Natal (RN), tem mania por palíndromos e lê à noite até o sono vencer a batalha. Estreou na literatura em 2004 com os contos de O terceiro dia. Em 2009, com o primeiro romance, Nunca o nome do menino (relançado neste ano pela Record em edição revista pelo autor), foi finalista do Prêmio São Paulo, que acabou vencendo em 2015 com Tempo de espalhar pedras, traduzido na Itália. Tem contos publicados em revistas e na antologia de escritores brasileiros Popcorn unterm Zuckerhut — Junge brasilianische Literatur, lançada em 2013 na Alemanha. Vive em São Paulo (SP).

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
No começo da vida adulta me dei conta de que tinha, desde pequeno, gosto pela escrita e de que havia quem gostasse do que eu escrevia. Isso não significa, porém, querer ser escritor. Hoje percebo que só me autorizei a dizer que era escritor depois do segundo livro, e ainda assim com certo pudor.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Talvez só os palíndromos possam configurar mania ou obsessão literária para mim. Sempre achei uma macaquice fascinante, uma das mais sensacionais proezas sem sentido, escrever essas frases que se leem do mesmo modo da primeira à última letra e da última à primeira. Nunca tinha chegado nem perto de conseguir criar um quando, certo dia, meio de repente, a solução do mistério saltou no papel em branco. Desde que descobri a técnica venho me desafiando a criá-los, em especial se motivado pelo noticiário: uma palavra muito em voga, um personagem frequente nas manchetes.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
A de antes de dormir. Eu tento retardar ao máximo o desfalecimento, e a leitura é a melhor forma de fazê-lo, por não ter duração definida. Se o livro cai da mão, ou se chegar ao fim da página se torna mais sofrimento que prazer, aceito mais facilmente que é o momento de fechar os olhos e desaparecer.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
O marechal de costas, de José Luiz Passos, por relacionar a vida do vice Floriano Peixoto — que, como Temer, assumiu a presidência envolvido em traições políticas e autoritarismo — com as manifestações de junho de 2013 contra a política e os governos.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Um ambiente silencioso, fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha de 1,5, texto justificado e um prazo alheio brilhando no horizonte próximo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Qualquer circunstância é a ideal para a leitura, porque a leitura é a melhor forma de vencer as circunstâncias, em especial as adversas do cotidiano. No ônibus, em pé, na fila, no celular, no banheiro, na cama, durante as refeições, no intervalo entre o vermelho e o verde do semáforo, a leitura faz da passagem do tempo uma experiência menos angustiante.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Pensando especificamente no trabalho de escrita: duas páginas com grande chance de permanecerem quase intactas depois da passagem da tesoura, na próxima sentada.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Resolver o quebra cabeça que é uma frase, especialmente a longa, aquela em que, se você move um adjetivo ou um substantivo, desmorona uma oração subordinada. Multiplicar a oração que me parece exageradamente simples e lapidar a que tem muitas arestas, substituir uma palavra correta por uma correta e sonora e a busca que isso implica — em dicionários, romances, memórias.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A necessidade de ganhar dinheiro para sobreviver.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A obrigação de fazer divulgação de si próprio.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
São dois: Carlos de Brito e Melo e Micheliny Verunschk

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Crítica e verdade, de Roland Barthes, ao qual sempre retorno quando quero refletir sobre o que é exatamente a literatura ou apenas relembrar o quanto a prosa, inclusive a não ficcional, pode ser belíssima. Descartável, não sei dizer.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O excesso de lugares-comuns.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Comecei a listar alguns assuntos ou lugares que me entendiam ou aborrecem a ponto de desejar a combustão espontânea, mas notei que o que me mobiliza nesse grau tem sempre chance de render algo que preste literariamente. Então apaguei. O mais correto seria eleger algo a que eu seja absolutamente indiferente mas, por sê-lo, não me veio à mente. Então escapo para um universo que não compreendo, nem pretendo, e que, por incompetência em abordá-lo, eu evitaria a todo custo: o da contabilidade, dos tributos, das finanças, etc.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
O mais é difícil dizer, até porque não domino de onde a inspiração vem. Para não ficar sem resposta: Em Tempo de espalhar pedras, a batida de um copo na mesa do bar me levou a uma cena de guerra entre objetos: de um lado, as facas de todas as espécies, de corte, de manteiga, de furar buchos, etc. e suas duras e solitárias lâminas; de outro, as garrafas quebradas e suas pontas frágeis e múltiplas.

• Quando a inspiração não vem…
Eu permaneço sentado diante da página e, se algo novo não vem de maneira alguma, reviso o que produzi até então, pois é muito comum o texto surgir de dentro do próprio texto.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Eu adoraria ouvir o cego Borges sendo enciclopédico ou fingindo ser.

• O que é um bom leitor?
O que consegue ler e avaliar o texto ficcional também a partir das leis que o próprio texto cria.

• O que te dá medo?
Para tentar dar conta da carne e do espírito, respectivamente: por restrição interna ou externa, ser impedido de movimentar o corpo ou partes dele; por razão de que nem desconfio, me descobrir vil, abjeto ou indigno.

• O que te faz feliz?
Ver minha filha ceder ao sono tranquilo de quem se sente plenamente segura e confortável e ouvi-la gargalhar repetidas vezes da mesma micagem.

Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida sobre ser capaz de concluir o que me proponho a escrever.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Buscar produzir textos pelos quais eu possa me sentir plenamente responsável, no que se refere tanto às validades internas, criadas pela própria estrutura, quanto às externas, as que dão conta da relação do objeto autônomo que é a obra literária com o mundo.

• A literatura tem alguma obrigação?
Tem a obrigação de ser literatura, ou seja, a de não ser apenas panfleto, receita, retrato, piada, depoimento, processo, bula, etc.

• Qual o limite da ficção?
Não creio que haja um (tome-se o Marquês de Sade, por exemplo). Se houver, não pretendo ser capaz de enxergá-lo.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não acredito na existência de alguém que fique bem no papel de porta-voz da humanidade, mas se fosse obrigado, eu recomendaria ao ET procurar uma criança feliz de uns cinco ou seis anos de idade, quando talvez a confluência de imaginação sem freio e boa articulação esteja em seu máximo potencial.

• O que você espera da eternidade?
Não entendo esse conceito.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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