Odisseia humana

Nélida Piñon: "O maior inimigo do escritor é a soberba que obscurece sua visão crítica e exalta o próprio talento como se ele fora Zeus"
Nélida Piñon, autora de “Um dia chegarei a Sagres”
02/09/2020

Antes de dar o “salto mortal da criação” para explorar o “subsolo do verbo”, a carioca Nélida Piñon compreendeu que precisava se atentar ao que a cercava na realidade — tanto por meio de vivências quanto da memória. Em 1961, estreou na ficção com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo. Hoje, após quase 60 anos dedicados à literatura, acumula prêmios nacionais e internacionais, vários títulos de doutora honoris causa e outros feitos significativos — como o de ter sido a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, em 1996, na ocasião do centenário da instituição. Além de narrativas de maior fôlego, já publicou os contos de A camisa do marido (2014), as crônicas de Até amanhã, outra vez (1999) e os ensaios de Filhos da América (2016), entre outras obras. Seus últimos trabalhos são o livro de memórias Uma furtiva lágrima (2019) e o recém-finalizado Um dia chegarei a Sagres, ainda inédito. Aos marinheiros de primeira viagem, Nélida deixa uma dica: “O espírito açodado é um veneno”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Parece ter sido ontem que renovei os votos de vir a ser uma escritora brasileira. A partir da época em que descobri ser melhor a vida vinda de fora das paredes do lar. Quando convinha cruzar a porta a fim de participar das agruras do céu e do inferno, da odisseia humana. Sempre com o propósito de viver segundo os livros que o pai Lino me trazia. Com eles eu ria, chorava, motivada pelos personagens voluntariosos mas heroicos, como Nayoka e Winnetou, o chefe apache. Na ocasião, pensava que os livros nasciam de confissões, das vivências pessoais dos escritores. Até perceber que o epicentro deles dependia da inventiva e da imaginação, dos motores enfim da narrativa. Portanto de ditames a meu alcance desde que eu acumulasse essa matéria-prima. Uma aptidão posta à prova por meio do trabalho árduo e de um mistério enlaçado com a vida. Mas conquanto no início carecesse de condições, encorajou-me ver o que tinha em torno. A genealogia familiar galega, o avô imigrante que com 14 anos cruzou o Atlântico sem bens e, como carpinteiro, perdeu um dedo na máquina e não se importou, e tudo para ofertar-me um dia a majestade da língua lusa. E contava ainda com memórias arcaicas e recentes, a fabulação fomentada pela música, o teatro, a leitura intensa, as viagens a São Lourenço e a Espanha, pelos escombros civilizatórios. Um manancial propício a aventurar-me pelas fendas secretas da narrativa, e cumprir à risca o ritual capaz de desvelar o que jazia no subsolo do verbo. A cobrar da existência o que se resguardava no casulo da arte.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Convém, sobretudo na maturidade, desmitificar o prestígio que ronda a escrita, reduzir seus efeitos. Antes, prestes a encenar o advento da criação, vestia-me como se fosse receber uma visita, de fato a visita do verbo. Quem sabe harmonizando a estética da arte com a do meu corpo. E com a ajuda dos pais refugiava-me em alguma pensão do interior para escrever. Também fazia anotações à noite, convicta de que os fantasmas à solta me beneficiassem. Hoje, porém, cumpro solitária e singela a cerimônia da criação. Sou mero anacoreta despojada de haveres.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
São imprescindíveis as leituras que derivam do prazer estético. De tudo que me apurou sem concessões. A literatura que iluminou os tempos, a história de todos os séculos, sobretudo dos gregos, dos teólogos. Persisto ainda agora em sondar a arqueologia do passado, sem a qual perco balizas. Igualmente as notícias do mundo, os saberes que nos asfixiam.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Nenhum. Cada qual descobre o que está ao seu alcance.

Tenho medos como qualquer mortal. Como não estar suficientemente preparada para sofrer com dignidade e morrer com as mesmas regras com que vivi.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Ideal é ter o pão assegurado e um catre para dormir como se fora um cisterciense. E se possível alguns confortos que herdamos do esforço coletivo. Hoje liberei-me de entraves, escrevo onde seja. Mas celebro meu escritório, ali abrigo-me com o sentimento de estar enveredando pelos labirintos humanos com a ajuda de Ariadne, com cujo fio chego ao extremo do texto que me aponta a desmedida dos seres e dos sortilégios inventivos. Fundamental, porém, é ouvir música. O tempo todo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Serenidade, tempo, solidão. E um texto que, além de emocionar, desperte aquelas chamas amorosas que guardo intactas para a literatura. Contudo, mesmo quando me defronto com uma página insípida, não desisto. Prossigo em busca de súbita revelação. Não desisto do talento humano.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um dia produtivo é quando sorrio saudando meu ofício. Após haver dado o bom combate paulino com a palavra. A coragem de criar apesar das adversidades. A literatura sempre me sussurrou que valia qualquer sacrifício por ela. Pela magnitude de Homero, meu pai.

“O que compromete um livro é quando seu autor precipita-se em publicá-lo ainda estando ele praticamente inconcluso.”


• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O maior gozo que encontro na escrita é sucumbir perante o desvario da criação que, ao surgir do caos, afina-se com minhas intenções fundacionais, que são muitas. A partir mesmo dos erros cometidos desde a primeira frase do livro que se inicia. De tudo que urge alterar, acrescentar, identificar, compor, agrupar, deslocar. A luta por cobrir as lacunas existentes, o que ficou fora em vez de estar dentro. E de ter o valor de ampliar a narrativa que clama por atenção, adverte-me que lhe faltam partes essenciais. O maior prazer, talvez, após terminar um romance, é estar ciente de haver ultrapassado meus próprios limites e sentir-me rendida, alquebrada.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O maior inimigo do escritor é a soberba que obscurece sua visão crítica e exalta o próprio talento como se ele fora Zeus. E deixa de olhar em torno, arrastado pela auto suficiência. Que ameaça é a desenfreada caça à gloria literária.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Recrimino no meio literário a falta de generosidade com parceiros, não lhes reconhecendo seus méritos literários. Detecto às vezes traços de inveja que dificultam sobremaneira a avaliação estética de determinada época, e priva quem padece de seus efeitos de ocupar um lugar justo na história brasileira. Também observo o provincianismo reinante que reparte injustiças ao privilegiar quem pertence a sua esfera de interesses. Igualmente lamento a indiferença com que os autores mais velhos, ainda vivos, são tratados pelos mais jovens, como que os soterrassem do lado de fora do panteão pátrio.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Sempre e sempre Machado de Assis, meu passaporte brasileiro.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindíveis são os clássicos que alimentam a tradição literária. Eternos mestres como Homero, Dante, Boccaccio, Shakespeare, Cervantes, Camões, e tantos mais até os nossos dias. Impedem a barbárie, são pilares da civilização.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O que compromete um livro é quando seu autor precipita-se em publicá-lo ainda estando ele praticamente inconcluso. E nega a verdade profunda do texto, o que há no seu bojo exigindo aflorar à superfície. Não respeita os seus estatutos estéticos requeridos para ele existir. O espírito açodado é um veneno.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Muitos. No entanto, posso ser surpreendida por algum tema que jamais antes cogitei e abraçá-lo com inovadora paixão.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Retiro inspiração de qualquer aspecto da realidade. Suscetível como sou, o que me dói ou exalta-me injeta em mim imediata reação. A inspiração, afinal, é o contrário da apatia que mortifica. Ela é parte essencial da poética da arte e eu agradeço. Pois sei que emerge das sementes do mundo.

• Quando a inspiração não vem…
Mas quando a inspiração teima em não vir, vou ao seu encalço nos grotões brasileiros e universais. E ela obedece. Se tardou em surgir foi porque estaria agrilhoada, e eu a liberto. Dou-lhe razão de existir.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Há anos digo que gostaria de convidar Homero para comer uma feijoada em minha casa. Explicar-lhe as delícias sensuais da gastronomia. Sobretudo o sincretismo desse prato que conta a história do Brasil.

• O que é um bom leitor?
Corro o risco de dizer que o bom leitor é aquele propício a nos querer bem. Mas não serve. Respeitável leitor é quem se empenha em auscultar a beleza da linguagem, do enredo, dos enigmas da criação, da complexidade de cada sentença. Das minudências enigmáticas que amparam o livro que ele lê. E que, antes de louvar esta leitura, ame a literatura, sua envergadura estética e moral.

• O que te dá medo?
Tenho medos como qualquer mortal. Como não estar suficientemente preparada para sofrer com dignidade e morrer com as mesmas regras com que vivi. Não ter tempo de me despedir dos amigos que deram sentido à minha existência. E não derramar as minhas modestas benesses.

• O que te faz feliz?
Traduzo a felicidade por meio de discretos e deliciosos sobressaltos amorosos que me acometem de repente. Como descobrir um amigo novo e não temer aceitá-lo com nossas mútuas serventias. Ou como estar com quem há muito gosto. E amar em estado de graça, as minhas cachorrinhas Suzy Piñon e Pilara Cuiñas Piñon. Reivindicar a glória da memória. Preparar a mesa para meus comensais. Abençoar a família que tive, a língua que falo, o país que tenho a despeito de tantas iniquidades. Reverenciar o Deus que forjo a cada amanhecer. Assim são as minhas labaredas felizes.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
As dúvidas permeiam o trabalho literário até seu término. Mas se dissolvem à medida que labuto com extremada radicalidade, e reduzo a zero minhas hesitações. Um corte de navalha sem piedade na carne do texto. De tudo, porém, derivando pequenas aleluias devidas a uma única frase que, ao surgir, atingiu o âmago da sua natureza poética. Assim logro acercar-me do mito da criação.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Temo não obter a febre que a linguagem requer para dar credibilidade ao romance. Não respeitar o mistério que advém dos personagens que esboço no afã de torná-los o arquétipo que devem encarnar. Não conseguir multiplicar o efeito que as frases devem produzir no transcurso narrativo. E, claro, não atentar às artimanhas da técnica.

• A literatura tem alguma obrigação?
Todas as obrigações que a humanidade proclamou ao longo dos séculos. Só tenho a dizer que a narrativa é certidão de nascimento e de óbito dos viventes.

• Qual o limite da ficção?
Perguntemos a Shakespeare e a Cervantes. Ao próprio Deus, quando concebeu o paraíso ocupado pelos personagens Adão e Eva.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Pobre do ET que sonhou com líderes confiáveis, merecedores de sua admiração. Eu o dissuadiria propondo-lhe conhecer em troca, isto sim, o povo brasileiro, mil vezes mais reais e soberanos que seus lastimáveis líderes.

• O que você espera da eternidade?
O que pedir à eternidade senão que seja amável e gentil comigo. E reserve-me em seu castelo com ponte levadiça um recanto onde me instale sem ser incomodada e desfrute de meus hábitos e de refeições quentes. Pelo tempo que a eternidade julgue correto.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

Rascunho