O equilibrista

Sérgio Abranches: “Duvidar de si e das certezas é essencial para ter noção, sobretudo, da extensão do que não se sabe”
Sérgio Abranches, autor de “Os despossuídos”. Foto: Fernando Rebelo
01/07/2025

O mineiro Sérgio Abranches sempre se equilibrou entre o rigor do texto acadêmico e a liberdade da ficção. Autor de livros celebrados sobre a história política e social do Brasil, ele diz que durante algumas décadas a carreira acadêmica o “afastou da literatura”.

“Nessa fase, meu livro que mais vendeu foi Os despossuídos, sobre pobreza no Brasil, nos anos 1980”, relembra. “Jorge Zahar me pediu um livro que todos pudessem ler. Foi quando comecei a me indispor com o texto acadêmico e seus hermetismos.”

A escrita o perseguia desde criança e, aos 16 anos, já era repórter do Última Hora, o histórico diário fundado por Samuel Wainer nos anos 1950.

Fã de ficção científica, Abranches identifica na literatura brasileira contemporânea “certa tendência à padronização dos estilos”, o que, por si só, negaria o principal valor da literatura, que é a liberdade.

“Minha maior mania é a literatura que vai além da imaginação convencional e permite pensar o impensável”, diz o escritor que costuma “planejar” livros que nunca serão escritos — por conta da indisciplina e falta de tempo. Do conterrâneo Guimarães Rosa a Thomas Mann, de Hermann Hesse a Gabriel García Márquez, ele lista alguns de seus heróis literários, que fizeram da ficção o território máximo da liberdade.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Desde meus 12 anos eu já lia muito. Na escola o que me dava prazer eram as redações. Já adolescente, meu plano era escrever. Comecei aos 16 anos como repórter no jornal Última Hora. Achei que o jornalismo financiaria minha carreira de escritor. Publiquei contos no suplemento cultural do Correio Braziliense, nessa época. A carreira acadêmica me afastou da literatura de ficção por algumas décadas. Escrevi textos acadêmicos. Nessa fase, meu livro que mais vendeu foi Os despossuídos, sobre pobreza no Brasil, nos anos 1980. Jorge Zahar me pediu um livro que todos pudessem ler. Foi quando comecei a me indispor com o texto acadêmico e seus hermetismos.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Eu sou um leitor precoce e eclético. Li muita ficção científica e, por causa dela, conheci Carl Sagan, quando estudava nos Estados Unidos. Depois adicionei a ciberficção. Minha maior mania é a literatura que vai além da imaginação convencional e permite pensar o impensável. Outra mania é planejar livros que não serão escritos, porque não tenho a disciplina de seguir o plano feito. Ligo o computador e, de repente, um pensamento me atrai para a escrita. É dessa inexplicável aparição que surge o livro. Fixações literárias: Guimarães Rosa, Thomas Mann, Hermann Hesse e Gabriel García Márquez.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Jornais e ficção. Ensaios sobre temas que me inquietam no cotidiano da metamorfose global que vivemos.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Rei Lear, de William Shakespeare.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Prefiro o escritório na biblioteca ou a varanda cercada de verde.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Em um lugar cheio de livros. Leio pensando no que já li e na infinitude do que ainda tenho por ler.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
O dia em que escrevo quatro horas e leio perto de 100 páginas.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Aquele momento em que as personagens ganham vida. Se rebelam com o rumo que dei à narrativa e eu tenho que buscar o caminho que lhes seja mais confortável. Enfim, quando me dou conta de que a estória engatou. Nos ensaios, a invenção conceitual.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Apaixonar-se por sua narrativa a ponto de ser incapaz de mudá-la, cortar, seguir por outro caminho. Já sofri deste mal e sei o quanto ele custa.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Uma certa tendência à padronização dos estilos. Como se a literatura contemporânea só pudesse ter um estilo de discurso. Cria um constrangimento que nega o principal valor da literatura que é a liberdade.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Andressa Marques, autora de A construção. Ale Santos e sua literatura afrofuturista.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Tenho dificuldade de considerar livro descartável. Por isso minha biblioteca cresce. Não me desapego de livro. Mas diria que livros de autoajuda são descartáveis, ajudam mais a quem os escreve do que aos que os leem.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O descuido com as palavras, as frases, a banalidade da escrita.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não acredito em assunto tabu, sou a favor da liberdade de escrever. O fundamental é como tratá-lo. O autor deve ter consciência do impacto que sua narrativa tem nos leitores. É imprevisível, por isso é preciso certa delicadeza principalmente ao tratar de temas sensíveis. Não me esqueço de uma leitora me dizendo que ela tinha câncer — o mesmo que minha personagem Clarice, de Que mistério tem Clarice? — e que eu havia tratado da doença com tal delicadeza que ela o usava em rodas de leituras de mulheres com câncer. Uma outra, me escreveu dizendo que relia meu livro para aprender a morrer. Não acho meu melhor livro. Hoje, eu o reescreveria. Mas foi importante para mim, porque ele me trouxe a consciência da responsabilidade do autor para com seus leitores desconhecidos, anônimos e humanos.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
A primeira resposta que me veio à cabeça foi um velório. Narrado em meu romance O pelo negro do medo. Mas aí me lembrei de A causa secreta e A missa do galo, de Machado de Assis, e não me pareceu tão inusitado assim. Talvez no meio de um lamaçal, em um jipe que deslizava em direção a um barranco. Quando consegui controlar a derrapagem, pensei nas várias vezes em que quase sofri um grave acidente e escapei. Virou uma cena. A adrenalina do perigo e o alívio de se safar dele se tornaram tema de meu mais recente trabalho.

• Quando a inspiração não vem…
Só posso falar por mim. Quando a inspiração não vem e o cursor pisca nervoso na tela, manter a disciplina e escrever, mesmo que depois seja tudo descartado. Sempre sobra um eco, um pequeno cisco de ideia que pode, depois, se transformar em narrativa ou ensaio. Tenho um conto publicado na Revista Brasileira, da ABL, chamado O cursor, sobre bloqueio. O conto foi resultado da superação penosa de um travamento, com disciplina de escrever quatro horas por dia. No primeiro dia, escrevi uma frase só, no dia seguinte, outras mais e assim foi.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Hermann Hesse. Desde que li a correspondência entre ele e Thomas Mann e o prefácio que Mann escreveu para a edição americana de Demian. Nele diz que Hesse era o escritor que expressava mais perfeitamente o espírito de sua época. Eu gostaria de pedir a Hesse que comparasse nosso tempo ao da derrocada da República de Weimar. Como seria O lobo da estepe hoje?

• O que é um bom leitor?
Aquele que lê com paixão e garimpa na leitura motivação para ler mais.

• O que te dá medo?
Não poder ler, nem escrever.

• O que te faz feliz?
Livros e pessoas que amam os livros.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Eu considero a dúvida o fundamento da ciência e da poética. Duvidar de si e das certezas é essencial para ter noção, sobretudo, da extensão do que não se sabe.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não escrevo com alguma preocupação em particular. Mas sempre procuro que minha ficção considere alguma questão que me inquieta e aos outros.

• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma. A literatura é o território da liberdade.

• Qual o limite da ficção?
A ficção não pode ter limites. Para ser verdadeira, ela precisa ser livre.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Mujica ou Mandela. Como não estão mais entre nós, eu diria ao ET que é melhor não ter líderes que ser liderado por gente má, como Trump, Bolsonaro, Putin, Netanyahu e tantos outros.

• O que você espera da eternidade?
Eu não penso na eternidade. Eu me lembro de um amigo causando aflito estresse em seu filho de dez anos tentando lhe explicar o que é o infinito. Foi demais para o menino. Penso em vastidões concretas como o cosmos, o espaço sideral e suas distâncias. O mistério de vermos como reais corpos celestes como eram a milhares de anos-luz. Muitos podem estar mortos. Olhamos para a Via Láctea e vemos o passado remoto. Seremos reais? A eternidade é vasta demais para o humano. O nada absoluto ou o todo absoluto? No fundo são equivalentes, igualmente inalcançáveis pelo ser humano.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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