O pernambucano Wellington de Melo descobriu a literatura na adolescência, quando trabalhava no comércio de sua cidade e escapava da rotina diária para ler Dostoiévski e Gabriel García Márquez. Mas o start para ser escritor veio depois de ler um verso do poema Black Sabbath, da dupla Chico Espinhara e Jorge Lopes.
Essa história Melo, que também atua como editor e tradutor, conta neste Inquérito. Autor de romances e livros de poesia, ele também cita a “busca pelas frases de abertura e de fechamento de um livro” como uma obsessão em seu trabalho literário.
“Não fico satisfeito até encontrar o ritmo, encaixar as palavras de forma que sejam os dentes da chave que abre a obra e que a mantém aberta”, explica. “Passei quase dois anos para definir a abertura de meu último romance, mas a versão final só chegou já na correção das provas, na mesa do editor.”
O livro em questão é a distopia Emilio, lançada no final de 2023. Cláudia é uma professora autoexilada que precisa voltar ao seu país de origem, de forma contrariada, com a missão de cuidar do filho de uma amiga de infância. No entanto, esse retorno lhe possibilita a reparação de uma injustiça e a descoberta de segredos que ficaram no passado.
Lavoura arcaica, Pedro Páramo, Grande sertão: veredas, Vidas secas e O som e a fúria são obras da biblioteca básica de Wellington de Melo. Mas entre os contemporâneos, vê na literatura feita por mulheres latino-americanas “as experiências mais ousadas de linguagem” dos últimos 20 anos.
Autor ainda do romance Estrangeiro no labirinto e do livro de poemas O caçador de mariposas, Melo se deixa levar por uma convicção em seu trabalho como escritor: “Quero sempre escrever os livros que gostaria que alguém tivesse escrito para que eu pudesse ler”.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Na adolescência, trabalhei no comércio e, por um tempo, não pensei que sairia dali. Comecei como auxiliar de serviços gerais, depois auxiliar de escritório numa loja de cosméticos no centro do Recife. Lia livros que pegava na biblioteca do Sesc na hora do almoço sobre caixas de xampu. Eu intuía que os livros seriam uma saída daquela vida, e não somente de forma imaginária. Durante o expediente, negligenciava meus afazeres de lavar banheiros para terminar as leituras, escondido no estoque. Camus, Dostoiévski, García Márquez eu li nessa época. Eu tinha 18 anos quando, num sábado, depois do serviço, fui à saudosa Livro 7 — que chegou a ser a maior livraria da América Latina segundo o Guinness. Vi numa prateleira baixa um livreto e o folheei. O título era Dose dupla, escrito por dois poetas independentes dos anos 1980, Chico Espinhara e Jorge Lopes. Li os últimos versos do primeiro poema, Black Sabbath, do Espinhara: “O mundo seja um barril de dor/ a rolar incessantemente pela escada”. Essa imagem perseguiu o escritor que eu me tornaria. Me persegue até hoje. Foi o primeiro livro que comprei na vida com meu dinheiro e agora olho para ele, enquanto respondo. Faço isso de vez em quando para lembrar que ele foi a porta que eu abri e que nunca mais se fechou.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
A busca pelas frases de abertura e de fechamento de um livro. Não fico satisfeito até encontrar o ritmo, encaixar as palavras de forma que sejam os dentes da chave que abre a obra e que a mantém aberta, quando a leitura termina. Passei quase dois anos para definir a abertura de meu último romance, mas a versão final só chegou já na correção das provas, na mesa do editor.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Desconfio de escritores ou escritoras que não leem poesia. A grande poesia é uma espécie de elixir concentrado de toda a potência de uma língua. Lê-la pela manhã, logo depois de acordar, para mim é como um tônico para os músculos da criação.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Lula deveria ler meu novo romance, Emilio. Mas não é por cabotinismo: é um livro sobre o tempo, sobre como, mesmo quando tentam dizer que o passado não existe, que ele pode ser mudado, ele cobra sempre seu preço. É preciso não esquecer. A epígrafe de Alberto da Cunha Melo que escolhi dá a chave: “São as vergonhas do passado/ um campo de leões dormindo”.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Prefiro escrever pela manhã, cedinho, quando o sol ainda está morno, a luz azulada entrando pela varanda. Nesse pequeno intervalo de tempo, minha mente está mais aberta, sem as preocupações do dia, e meu corpo mais relaxado. Acho que é sempre um corpo o que escreve.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Lamento o fato de não caber numa vida o quanto tenho para ler. Por isso, não posso ter luxos. Leio em qualquer lugar, em qualquer circunstância. Sempre levo algum livro comigo, para o caso de ter alguma chance na correria diária. Quando passo o dia sem ler, tenho uma sensação de perda.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um dia em que, mesmo que não escreva uma linha, tenha pensado sobre os livros em que estou trabalhando e tenha vivido um pouco dentro dos universos que estou criando. Preciso conviver com as pessoas que invento, entendê-las. Considero essa visitação de mundos possíveis e essa convivência quase tão importantes quanto o ato de escrever.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Quando as soluções surgem a partir de um desejo quase alheio a mim, como se uma força operasse e as respostas viessem como em revelações. Aconteceu isso com a escolha da narradora de Emilio, Cláudia, que quase me sussurrou: “você está contando a história errada, deixa comigo que resolvo”.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A autocensura.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Que haja nele muita performance, marketing, sociologia, psicanálise, ativismo e egolatria — não necessariamente nesta ordem —, mas pouca literatura.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Autoras latino-americanas, de uma forma geral. Não é bom-mocismo, é uma constatação. Nos últimos 20 anos, as experiências mais ousadas de linguagem a que tive acesso vieram das mãos delas.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Cada um tem sua lista. Para mim, são vários. Aqueles aos quais sempre volto para aprender. Lavoura arcaica, Pedro Páramo, Grande sertão: veredas, Vidas secas, O som e a fúria, quase todo Drummond, toda Wisława Szymborska, Borges por todas as veredas que se bifurcam. Descartável? Qualquer um de autoajuda, inclusive os de autoajuda literária disfarçados de ficção ou poesia. Livros são, essencialmente, artefatos de autodestruição. Mas posso estar errado.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Quando em vez de escrever literatura, você decide dar uma palestra ficcionalizada sobre um tema qualquer. Mas o mercado gosta de livros assim, então devo estar errado de novo.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não há assuntos proibidos. Há formas erradas de abordá-los.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
De um enterro.
• Quando a inspiração não vem…
Continuo vivendo. Viver é a maior fonte de inspiração.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
A verdade é que os livros tendem a ser mais interessantes que as pessoas que os escreveram. Prefiro tomar café com eles. Mas, vá lá, para não fugir da resposta, Wisława Szymborska. Acho que seria uma tarde de muita risada e aprendizado.
• O que é um bom leitor?
O que busca extrair da experiência de leitura as perguntas, não as respostas.
• O que te dá medo?
Pessoas estúpidas ocupando lugares de poder.
• O que te faz feliz?
Cozinhar. Preparar comida para alguém é uma das maiores declarações de afeto. Mais do que escrever. O resultado da escrita normalmente é um presente de grego.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A certeza de que não vai dar tempo. A dúvida sobre que fazer com esse tempo.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Ouvi esta história, que espero ter lembrado bem, do poeta dominicano Rei Berroa: um jornalista perguntou a Rulfo, quando ele chegava de uma viagem no aeroporto, por que escreveu Pedro Páramo. Ele respondeu “Por que ninguém tinha escrito”. Quero sempre escrever os livros que gostaria que alguém tivesse escrito para que eu pudesse ler.
• A literatura tem alguma obrigação?
Ser honesta consigo mesma. Trair todas as expectativas.
• Qual o limite da ficção?
Não há limites para a ficção. O que há são as consequências de tê-la escrito.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu só diria: “Você perguntou à pessoa errada”.
• O que você espera da eternidade?
Não há eternidade. Enquanto viver nos que amo, há uma sobrevida. Depois, só o silêncio. E uma porta que se fecha.