No ritmo da luta

Mel Duarte: "Se eu fosse esperar as circunstâncias ideias para escrever, nunca teria produzido e/ou publicado nada"
Mel Duarte, autora de “Fragmentos dispersos” Foto: Gustavo Moraes
01/05/2023

Referência do slam brasileiro, a paulistana Mel Duarte publicou seu primeiro livro, Fragmentos dispersos, em 2013. Mas sua relação com as palavras vem de longe. Começou a escrever ainda na infância e a partir de 2006 passou a frequentar os saraus de São Paulo. “Não planejei me tornar escritora, nem achava que isso era possível”, diz. “Quando conheci a poesia, aos 8 anos, entendi que a palavra era algo que me encantava, fazia sentido aquele universo.”

Com 15 anos de carreira, Mel diz que continua “lutando pela sobrevivência o tempo todo”. “Sou uma mulher preta, que escreve e cria em meio ao caos.”

E em meio às dificuldades, segue conquistando seu espaço. Ela foi a primeira mulher a vencer o Rio Poetry Slam (campeonato internacional de poesia) que integra a programação da Flup (Festa Literária das Periferias) no Rio de Janeiro. “Tenho a certeza de que o que eu faço é bom, necessário pra construção de uma sociedade mais igualitária e de que minha voz importa e precisa ser ouvida”, diz. A seguir, ela fala mais sobre suas influências, rotina e ideais políticos.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Não planejei me tornar escritora, nem achava que isso era possível. Quando conheci a poesia, aos 8 anos, entendi que a palavra era algo que me encantava, fazia sentido aquele universo. Então, cresci sabendo que precisava trabalhar com a comunicação e quando me dei conta eu já era escritora, mas nem sabia… Precisei encontrar outras pessoas, principalmente outras mulheres, pra me reconhecer nesse lugar.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Nunca pensei muito sobre isso, eu gosto de marcar os livros que leio, dobrar páginas, colar post-it, essas coisas, mas não tenho nenhuma obsessão (risos), sou bem tranquila.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Gosto de ler poemas enquanto tomo café da manhã, então escolho livros da minha estante, às vezes quero reler alguém em especial, em outras ocasiões pego um título aleatório.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
O Querem nos calar, que organizei pela editora Planeta, com poetas do Brasil todo, da cena do slam. Seria um jeito de ele ter uma visão das nossas vozes ecoando e da polifonia que é a palavra falada contemporânea no Brasil. É um livro muito forte. Seria ótimo que nosso presidente pudesse entrar num contato maior com isso.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Sou uma mulher preta, que escreve e cria em meio ao caos. Fiz um livro celebrando os 10 anos de carreira, o Colmeia, com a reunião das minhas poesias, durante a pandemia, que era o pior contexto para criar e escrever. A nossa escrita vem daí. Se eu fosse esperar as circunstâncias ideias para escrever, nunca teria produzido e/ou publicado nada. A gente tá lutando pela sobrevivência o tempo todo. Não dá para contar com circunstâncias ideais. Acho que nunca tive isso.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Também não acho que exista uma ideal, na minha rotina eu leio quando dá e nos meus momentos de descanso tento achar um encaixe pra isso também.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um dia que eu não preciso sofrer pensando em como vou fazer para estar em dia com as contas. Um dia em que posso me dedicar, exclusivamente, à criação, à parte criativa, sem a pressão do capitalismo no meu pescoço. São dias cujo meu trabalho é respeitado, cujo cachê que mereço é pago de forma espontânea. São raros, raríssimos esses dias.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Encontrar as palavras certas, que caibam na minha boca, pro que quero transmitir.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Autocrítica. Deixamos de fazer muita coisa quando nosso próprio pensamento nos barra.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A falta de acesso a esse meio. Nos tratam de forma exótica, como se fôssemos algo muito diferente e dissonante, mas, ao mesmo tempo, não nos leem e consomem com interesse genuíno. É sempre num lugar do exotismo. Quase nunca somos celebradas como gostaríamos. Existe muita panela, muita valorização de produções outras e quando se trata da nossa, parece que estão nos fazendo um favor.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Tom Grito e Lívia Natália.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Um livro indispensável é Memórias da plantação, da Grada Kilomba. Mas falar sobre um livro descartável acho que seria muita pretensão, acredito que existam livros para todo o tipo de público.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Uma impressão de má qualidade que atrapalhe a leitura.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Racismo reverso.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
De sonhos.

• Quando a inspiração não vem…
Se eu fosse depender só da inspiração pra escrever, não seria escritora (risos). Quando ela não vem, é preciso respeitá-la e encontrar aparatos para atrair as palavras. No fim é muito mais sobre o exercício e a constância de escrever do que esperar por ela.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Carolina Maria de Jesus e Chimamanda Ngozi Adichie.

• O que é um bom leitor?
O que lê nossa obra de olhos e coração abertos para o que depositamos ali.

• O que te dá medo?
De estar há 15 anos construindo uma carreira sólida, buscando por reconhecimento e estabilidade financeira, e mesmo assim, não ser o suficiente e precisar deixá-la em segundo plano para gerar renda e me manter viva.

• O que te faz feliz?
Quando pessoas aleatórias na rua me reconhecem e me contam alguma história de como meu trabalho chegou nelas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A principal certeza é a de que o que eu faço é bom, necessário pra construção de uma sociedade mais igualitária e de que minha voz importa e precisa ser ouvida. A dúvida é: ela está sendo ouvida por quem tem acesso para fazer com que ela chegue mais longe?

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que a mensagem e a estética dos meus poemas caminhem juntas. Eu tenho tentado explorar novas formas, como o meu disco de spoken, o Mormaço, em que meus poemas ganham outra força ao serem musicados. Eu tenho essa preocupação com novos formatos, gosto de me desafiar pensando em como fazer minha arte chegar a mais pessoas e despertá-las para sensações adormecidas.

• A literatura tem alguma obrigação?
A meu ver, como formato, nenhuma. Mas como um direito, a obrigação de ser acessível.

• Qual o limite da ficção?
Não sei se existe limite para a ficção. Sendo ficção, não poderia tudo?

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
A um slam acontecendo em praça pública!

• O que você espera da eternidade?
Que minha voz siga ecoando.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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