“Se tens um jardim e uma biblioteca, nada lhe faltará.” Com essa citação do advogado e filósofo romano Cícero (106-43 a.C.), Renata Belmonte dá o tom sobre o que espera da eternidade: Um lugar com muitos livros.
Nascida em Salvador e radicada em São Paulo, a advogada e escritora descobriu os livros muito cedo, quando seus pais se atrasaram para pegá-la na escola e o remédio que encontrou para a “angústia violenta” que sentiu foi uma história de ficção.
“De repente, imersa no mundo daquelas páginas, todo o meu sofrimento infantil desapareceu. Maravilhada, lembro de ter pensado que o ofício da escrita era como fazer mágica”, relembra a autora da coletânea de contos Femininamente, vencedora do Prêmio Braskem Arte e Cultura em 2003.
Fã da ensaísta Susan Sontag, Renata diz que “certa vez, em sonho”, a americana a telefonou, convidando-a para um café. Autora dos livros de contos O que não pode ser e Vestígios da senhorita B, ela se diz que durante o processo criativo, fica “abduzida” pelos seus personagens, “resto tragada pelo universo ficcional e me habitar acaba parecendo um exercício muito difícil”.
Depois de lançar três livros de contos, em 2020 ela estreou no romance com Mundos de uma noite só. A obra chamou a atenção de autores importantes, como mineiro Luiz Ruffato, que assina texto de orelha, e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Certo dia, meus pais se atrasaram para me buscar numa aula. Fiquei sozinha com a professora e fui tomada por uma angústia violenta, algo entre o medo de restar para sempre esquecida e a vergonha de me descobrir esquecível. Percebendo o meu nervosismo, ela, então, me emprestou um livro. E, de repente, imersa no mundo daquelas páginas, todo o meu sofrimento infantil desapareceu. Maravilhada, lembro de ter pensado que o ofício da escrita era como fazer mágica. Eu tinha entre sete e oito anos quando me tornei uma leitora. Aos doze, fabular pessoas com palavras passou a ser o meu principal objetivo.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Releio e reescrevo em demasia tudo o que escrevo até ser publicado. Por um bom tempo, eu conheço meus textos em cada vírgula. Enquanto estou em processo criativo, fico abduzida pelos meus personagens, resto tragada pelo universo ficcional e me habitar acaba parecendo um exercício muito difícil.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Tenho encantamentos diversos, minhas leituras diárias dependem do momento que atravesso.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
A sociedade como veredito, de Didier Eribon. Nesse livro, o autor revisa sua origem proletária com um olhar lúcido e bonito. Em certo momento, ele conclui que “a política inovadora é necessariamente uma política de si sobre si”. Apesar de reconhecer a força das estruturas e a importância de uma ação transformadora sobre elas, quero dizer que eu também aposto muito na capacidade subjetiva de reinvenção humana.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Eu jamais as encontrei.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Dias sem outros compromissos. Perder-me lendo é um dos grandes prazeres da minha vida.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Uma boa página escrita.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Descobrir, no meu texto, algo que nem eu mesma sabia.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A necessidade absoluta de aprovação alheia. É preciso deixar o livro se revelar e ser o que ele pede.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Aplausos efusivos para obviedades. Platitudes, em certas circunstâncias, cumprem um papel. Mas penso que escritores e seus trabalhos precisam de respeito, não de condescendências festivas.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Duas autoras: Helena Machado e Marília Arnaud. Ambas publicaram, nos últimos anos, romances profundos, intimistas e sem concessões.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Qualquer livro que transforme alguém ou ilumine algo me parece imprescindível. Qualquer um que não o faça é descartável.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Falta de honestidade intrínseca.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Somente o que não sou capaz de alcançar.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
No banho.
• Quando a inspiração não vem…
Acendo uma vela perfumada e insisto. Este é um ofício que pede reza e entrega.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Susan Sontag. Inclusive, certa vez, em sonho, ela me telefonou convidando.
• O que é um bom leitor?
Aquele que compreende o livro como um organismo vivo e que sabe que bons personagens caminham sozinhos e nos arrastam consigo.
• O que te dá medo?
O mundo. Por isso, escrevo-o.
• O que te faz feliz?
A experiência de encontrar pessoas e coisas em sua plenitude. Gosto de conhecer a verdade íntima alheia.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Perguntas sempre guiam a minha escrita. Certezas rígidas costumam ser equívocos.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Sentir que estou escutando direito o meu livro.
• A literatura tem alguma obrigação?
Ser fiel a si.
• Qual o limite da ficção?
O que não pode ser.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Meu desejo e sua linguagem me governam.
• O que você espera da eternidade?
“Se tens um jardim e uma biblioteca, nada lhe faltará.” (Cícero 106-43 a.C.).