O gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil teme perder a capacidade fabuladora mais do que a própria vida. Com obras situadas em sua maioria no pampa, Assis é hábil ao se debruçar sobre os hiatos da história do Brasil. Nascido em Porto Alegre em 1945, o escritor é formado em Direito e já foi músico violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e professor universitário na área de Letras. Comanda há 28 anos a mais antiga oficina de criação literária do país, na PUCRS, por onde passaram nomes que hoje despontam na cena literária, como Paulo Scott, Daniel Galera e Cíntia Moscovich. Já exerceu diversos cargos na administração pública na área de cultura, e desde 2011 é Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.
Estreou na literatura em 1976, com o romance Um quarto de légua em quadro. Em 2001, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional pelo romance O pintor de retratos, que mescla ficção e realidade para contar a história de um retratista italiano que emigra para o Brasil de D. Pedro II, mesmo cenário do romance A margem imóvel do rio, vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2004. Nesta breve conversa, Assis Brasil revela sua preocupação — com ares de obsessão — pela concisão do texto e relembra o início da vocação que o levaria à literatura.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando ganhei um prêmio literário estadual, na escola primária, comemorativo ao cinqüentenário da aviação. Mas fui infiel a essa vocação infanto-juvenil porque, depois disso, me dediquei a outros interesses, como a música. Tornei-me músico profissional, de orquestra sinfônica. Lentamente, porém, a literatura voltou a ter protagonismo e, desde então, tento cumprir aquela decisão do guri que ganhou um prêmio.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Elaborar a frase até que nada mais tenha a ser tirado dela, sequer uma vírgula. Posso dizer que é uma obsessão, sim, que me leva a demorar um tempo enorme em cada parágrafo. Já fui relapso quanto a isso.
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
La chanson de Roland e a Bíblia, ambos pelo intenso sentido de economia verbal. Toda criação do mundo é narrada, no Gênese, em um único parágrafo. E o primeiro capítulo da Chanson de Roland, com doze linhas, é talvez a maior síntese já escrita numa língua ocidental: situa o leitor, de imediato, na situação dramática que levará o sobrinho de Carlos Magno a uma terrível batalha contra os mouros. Um capítulo suficiente, tenso, brilhante.
• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
Ela é uma grande leitora. Qualquer recomendação me parece supérflua. Em todo caso, poderia sugerir os romances e contos de Arthur Schnitzler. Fuga para a escuridão, A senhora Beate e seu filho, Breve romance de sonho são magníficos para entender a condição humana. Por que uma presidenta deveria ler apenas tratados de administração ou economia, esses assuntos que ela entende perfeitamente e sabe pôr na prática?
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Mesa limpa e ordenada, um bom editor de texto e certo rumor doméstico. E ter, pela frente, um dia inteiro disponível. Meu querido amigo Moacyr Scliar, entretanto, podia escrever em qualquer lugar. Em encontros de aeroporto, via-o escrever em meio à algaravia das salas de embarque. Admirava-o por isso, se não houvesse outras razões, muito mais importantes do que essa.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Ausência de graves preocupações, preparo quanto à obra que se está lendo e silêncio. E, principalmente, abertura às mudanças que o bom livro pode provocar. Nunca “devorar” um livro. Pois tudo que é devorado não é retido pelo estômago.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando escrevo uma frase que me possa satisfazer. E quando nessa frase eu consegui pôr a summa do que eventualmente já atingi em conhecimento do mundo e da escrita.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Cortar, cortar, cortar. Cortar até que reste o essencial.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A tendência ao amadorismo, isto é, tornar-se escritor de fim de semana. Esse é o pior inimigo. Mas há outros, como a vaidade e o falar de si mesmo. Aos outros não interessa em nada a nossa vida.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A busca do sucesso instantâneo, pois isso nada tem a ver com a literatura.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção?
Hans-Ulrich Treichel, autor de O perdido.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Memorial de Aires, de Machado de Assis, é imprescindível. Um espantoso exemplo de romance psicológico. Descartável? Qualquer livro de quem escreva pior do que nós.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A falta de unidade. O leitor, mais do que a clássica linearidade do início-meio-e-fim, busca um sentido orgânico no livro, vale dizer, que cada parte se harmonize com o todo. Um livro com unidade orgânica permite que o leiamos a partir do fim, do meio ou do começo. Tudo fará sentido.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Sexo explícito, não por tolo moralismo, mas porque nada mais há para inovar nessa área.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Penso que “canto”, aqui, seja um lugar de esquina, desdenhado pelo centro. Neste caso, meu canto não é tão inusitado, pois é meu lugar de existência e vivência, é o Sul. É um canto que assomou ares de centro.
• Quando a inspiração não vem…
Vou a sua busca. Nunca está muito distante. Basta que se tenha disposição para reconhecê-la ao lado de nós. Pode ser uma palavra ouvida ao acaso, um gesto de quem amamos. Enfim…, nada muito complicado.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Pascal Quignard. Será muito difícil que ele aceite, pois saudavelmente preferiu retirar-se à vida privada.
• O que é um bom leitor?
O que lê muito len-ta-men-te, buscando a fruição do texto, valorizando cada palavra, cada parágrafo. Um romance que exigiu seis anos de escrita, dúvidas, alegrias e pesares, não pode ser lido numa tarde. O pior é, ainda, dizer isso ao escritor, achando que vai elogiá-lo. E o pior dos piores é dizer que “devorou” o livro.
• O que te dá medo?
Perder a capacidade fabuladora, mais do que perder a vida.
• O que te faz feliz?
Os momentos iniciais da escrita de um romance. Nada se compara a esses passos vestibulares nessa senda que leva à obra.
• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A dúvida é se chegarei ao fim do que me propus. A certeza é de dominar o assunto do meu romance, pois não começo a escrevê-lo sem que o conheça por completo.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Escrever um capítulo inútil. Quando sei que o leitor vai pular aquele capítulo, eu não o escrevo; se já o escrevi, eu o apago.
• A literatura tem alguma obrigação?
Sim, tem obrigação com a literariedade, isto é, com a necessária literatura que deve estar em seu texto.
• Qual o limite da ficção?
A intransitividade. Um livro é para ser entendido.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Já que estamos no domínio da fantasia, eu o levaria a Eça de Queirós.
• O que você espera da eternidade?
Nada, pois não estarei aqui. Sendo menos dramático: espero que as pessoas cheguem à conclusão de que deixei algum legado que as faça viver melhor. Que eu tenha sido útil a minha geração. O resto será o esquecimento e as trevas.