O escritor e diplomata carioca Mauricio Lyrio fez sua primeira incursão pelo romance aos 17 anos de idade, influenciado por livros como A náusea (1938), de Sartre, A peste (1947), de Camus, e Angústia (1936), de Graciliano Ramos. A tentativa de criar uma narrativa social, ambientada em uma região pobre do Brasil, foi frustrada mas útil. Lyrio entendeu que seria melhor ler e viver mais antes de se aventurar pela ficção novamente. Sua estreia literária aconteceu com Memória de pedra, em 2013, e sua publicação mais recente é O imortal (2018), finalista dos prêmios Oceanos e São Paulo de Literatura. Antes disso, em uma obra mais voltada para sua outra ocupação, publicou o ensaio histórico A ascensão da China como potência (2011). Como embaixador do Brasil no México, promove a literatura nacional e busca alavancar nossos autores — clássicos e contemporâneos.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
No final da adolescência. Fiquei muito impressionado com a leitura de alguns romances existencialistas franceses, como A náusea, do Sartre, e A peste, de Camus, e me deu vontade de fazer algo parecido. Angústia, do Graciliano, também me marcou muito. E com 17 anos comecei a escrever um romance social, que se passava numa região pobre do Brasil. Péssima literatura, um sub-Graciliano. Mas foi um fracasso útil, que deixou claro para mim que eu queria escrever, e que era melhor ler e viver um pouco antes de novas tentativas.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Como leitor e como escritor, uma obsessão literária é o interesse pela forma do romance, tão aberto em suas possibilidades. Mania que tenho é da administração da rotina. Como trabalho com outra profissão, a de diplomata, não me sobra muito tempo para escrever. Tento reservar uma ou duas horas por dia, mas com a agenda pesada de trabalho e a outra mania, a de ter filhos (são quatro), garimpar um tempo aqui e ali não é trivial.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Além das leituras de trabalho, um pouco de poesia e um pouco de ficção.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Um diplomata seria pouco diplomático se recomendasse um livro a um Chefe de Estado ou de Governo de qualquer país, especialmente do seu.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
A cabeça fresca das primeiras horas do dia, o silêncio, um computador (de preferência sem internet), um dicionário analógico, café, a não-interrupção. As circunstâncias são ideais porque não são frequentes.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Mais do que as circunstâncias, o envolvimento com o livro é o essencial. As piores circunstâncias não afetam se a leitura envolve. De qualquer modo, uma boa poltrona, uma boa inclinação do pescoço, iluminação decente, livro-papel e lápis (para dizer ao autor o que é marcante ou que destoa) sempre ajudam.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando o que escrevo passa no teste da releitura no dia seguinte.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Não me reconhecer como autor de uma passagem ou texto, no bom sentido.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
Imagino que cada escritor tenha seus bons e seus maus inimigos. No meu caso, os maus inimigos são banais, os limites da imaginação ou da sensibilidade (num sentido artístico), as múltiplas obrigações não-literárias, eventual desconcentração. Os bons inimigos são os bons autores. Aqueles que me desafiam a escrever e dão a ilusão de que é possível fazer algo que comoverá da mesma maneira que me comovi.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Convivo com o meio literário mais como diplomata do que como escritor. Como embaixador no México, me cabe promover a literatura brasileira, e tenho o prazer de juntar trabalho e arte apoiando a publicação de obras clássicas nossas, a participação de autores em eventos como a Feira de Guadalajara ou em leituras no Centro Cultural Brasil-México. Por ter outra profissão e não depender materialmente da literatura e de suas atividades (prêmios, bolsas, vendas), meu olhar talvez seja um pouco benigno em relação ao meio. Mas a verdade é que tenho mais prazer em conviver com o meio literário do que com muitos outros.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
José Luiz Passos.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Ilíada, de Homero. ABC da literatura, de Ezra Pound.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Em livros de ficção, didatismo.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
A ideia de que a literatura trate de “assuntos” não me parece boa. Idealmente, não deveria ser “sobre” alguma coisa, mas alguma coisa em si.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
É difícil saber como os elementos conscientes e inconscientes se combinam e dão origem a um texto, mas os cantos mais inusitados são os mais obscuros, que nunca sabemos onde estão, nem mesmo se são cantos ou espaços abertos.
• Quando a inspiração não vem…
Há que ter paciência e disciplina. Talento e sensibilidade são imponderáveis, mas, no ato em si de escrever, tudo é sujeito a condicionamento, até o hábito de imaginar, de pensar e escrever ficcionalmente. Às vezes o jogo de imagens e palavras virá de forma aparentemente natural; outras vezes, terá de ser resultado de uma pequena rebelião ou mesmo de certo ilusionismo contra a inércia, que é sempre muito forte.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Para um café, Nelson Rodrigues. Mas preferiria ser um garçom atento num jantar entre Shakespeare, Cervantes, Machado e Borges.
• O que é um bom leitor?
Aquele que se envolve de forma emotiva e intelectual, tem interpretações próprias e sabe que toda interpretação é própria.
• O que te dá medo?
O nada.
• O que te faz feliz?
Saúde.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida da relevância. A certeza do prazer e da necessidade de escrever.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Criar algo que não pareça artificialmente, ou futilmente, concebido, que tenha uma aparência de necessidade, ou ao menos de naturalidade.
• A literatura tem alguma obrigação?
No sentido estrito, de uma função social ou política, de denúncia ou mobilização, não me parece que tenha. Mas, para mim, a literatura será tanto mais atraente quanto maior a capacidade de fazer sentir e pensar algo antes nunca sentido ou pensado.
• Qual o limite da ficção?
Do ponto de vista artístico, a graça da ficção é justamente transgredir limites, ou mostrar que não há limites. Do ponto de vista social, político e ético, é difícil dizer que não há limites. Na medida do possível, melhor seria não impor restrições de espécie alguma, especialmente as mais artificiais, como as políticas, ou de costumes, ou mesmo a discussão recente sobre o lugar de fala. É difícil saber se a ficção pode alimentar ou, ao contrário, permitir a sublimação de narrativas de ódio, preconceitos e outros discursos que podem constituir crimes fora da ficção. Na dúvida, deveria prevalecer o imperativo estético de que a arte é um espaço de liberdade que não se tolhe.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Provavelmente a ele mesmo. Entre os humanos, em especial entre os brasileiros, pediria que me levasse a Machado de Assis e buscássemos antes o Pelé. Feliz do país cujos dois maiores gênios enfrentaram e superaram a pobreza, o preconceito racial (e no caso do Machado, também a gagueira e a epilepsia) para se tornarem dois artistas maiores do mundo, um da literatura, outro do esporte.
• O que você espera da eternidade?
Que não deixe de ser.