A escritora, poeta e tradutora Prisca Agustoni nasceu na Suíça, em 1975, e está radicada no Brasil desde 2003. Tanto na prosa quanto na poesia, sua obra transita pelos idiomas italiano, francês, espanhol e português. Essa pluralidade linguística, aliás, fruto das vivências da autora em diferentes regiões de seu país de origem, é algo que ela luta para preservar. “Minha obsessão é escrever cada dia com mais vigor nas três línguas que sou eu”, diz a autora de, entre outros, Casa dos ossos (2017), Hora zero (2016) e A neve ilícita (2006). Além de também ter publicado livros infantis, Prisca é professora de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Quando perdi minha avó. Ela sempre dizia “você é poeta!”, mas eu achava que era uma forma carinhosa de se aproximar de mim. Foi a única pessoa da minha família que lia com orgulho meus escritos. Vinha de um vale de montanha, foi uma presença marcante, fundamental em minha vida. Um reservatório de afeto e doçura. Hoje sinto que, de alguma forma, devo isso a ela.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Não tenho manias. Minha obsessão é escrever cada dia com mais vigor nas três línguas que sou eu, e impedir que seja silenciada dentro de mim uma das que me atravessam como uma lâmina — o francês, posto que no meu cotidiano aqui no Brasil praticamente sumiu do meu dia a dia. O italiano segue firme no uso familiar, com os filhos e na sala de aula; o português é obviamente preponderante.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Ler a realidade ao meu redor, ler o que acontece dentro de mim.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
A divina comédia, de Dante. Mais especificamente, o primeiro cântico — o Inferno.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Certa urgência e fome de vida, talvez, aliada à capacidade (ou maturidade) de se escutar, de enxergar as próprias zonas de sombra. Para se reconhecer na dos outros. E poder se livrar de muitas coisas desnecessárias — objetos, compromissos, falas, prioridades. Chegar ao essencial da vida, ao básico, seria para mim o ideal para escrever.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
O rapto. Há livros que nos raptam, em momentos em que estamos abertos a essa experiência.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele no qual não perco de vista o sentido do que faço ou desfaço. Aquele que persegue a veia pulsante, o olho vivo, a aderência com a vida. Minha escrita nasce da possibilidade de me manter fiel a certa autenticidade do viver, ou pelo menos de não abrir mão excessivamente dessa raiz profunda do sentir a vida enquanto ela atravessa meu ser.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A possibilidade de me livrar de qualquer amarra, para experimentar aquela forma de liberdade ou estado de suspensão que é única.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A pressa. A inveja. Uma vida cheia de compromissos.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Basicamente aquilo que me incomoda na sociedade comum, sempre que tem algum poder envolvido: o cinismo, o arrivismo, o coleguismo descarado, a “broderagem”, os elogios superlativos e interesseiros, às vezes a falta de senso crítico. Enfim, a mediocridade moral e intelectual. Não estou dizendo que seja sempre assim, nem que isso seja o clima literário no Brasil. Estou falando em termos gerais, pelo que tenho lido e ouvido de relatos de amigas e amigos escritores tanto no Brasil quanto na Itália, na Suíça e na França (que são os contextos que conheço melhor). E tem outra coisa que acho muito problemática e que afeta qualquer pessoa que escreve hoje no mundo: a danada da sede pela “novidade”, como se a qualidade literária se medisse pela rapidez com que uma obra é lida, resenhada, “validada” pela crítica (com textos em geral muito básicos) e logo descartada. Literatura-objeto de consumo rápido: ceder a esse diktat do mercado me parece bastante grave, pois nos tornamos, nós escritores, elos de uma máquina de produção que nos afasta da reflexão e da crítica sobre nosso trabalho e sobre a possibilidade da literatura ser — ainda — um espaço de sobrevivência daquilo que na sociedade se encontra atrofiado.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Um autor brasileiro a ser (re)descoberto: o imenso poeta mineiro Eustáquio Gorgone de Oliveira (1949-2012). Dos vivos, a obra poética da autora suíça de etnia rom Mariella Mehr.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Muitos livros são imprescindíveis. Não consigo ficar num só. Não consegui lembrar de nenhum descartável.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Talvez a distância excessiva entre forma e conteúdo. Um livro muito bem escrito, com estilo inovador mas que retrata personagens de forma conservadora, preconceituosa, naturalista em excesso, para mim se torna um livro mal acabado. Ou um livro que tem um olhar ousado sobre a realidade, mas cuja forma está frágil, também não funciona. Nem a boa intenção nem o gênio sozinho fazem de um livro um bom livro.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nunca digo nunca pra nada.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Não é inusitado, mas é horripilante: um canteiro de obras no meio da mata.
• Quando a inspiração não vem…
Me ocupo em viver.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Meu convite seria mais para um jantar gostoso, com vinho e muitas coisas deliciosas pra comer, noite adentro. Nesse caso, sendo um jantar, haveria lugar para vários convidados ao redor da mesa: Franz Kafka, Wisława Szymborska e Alejandra Pizarnik, à minha direita na mesa (eu na cabeceira); Seamus Heaney, Marguerite Duras e Clarice Lispector à minha esquerda. E na outra ponta da cabeceira, em frente a mim, me olhando de forma inquietante, Charles Baudelaire. Não puderam comparecer Montale, Drummond, Paul Celan e Juan Rulfo, mas mandaram lembranças.
• O que é um bom leitor?
Aquele que tem fome de leitura.
• O que te dá medo?
A cegueira (social, religiosa). A falta de utopia. A naturalização da injustiça e da exclusão.
• O que te faz feliz?
Muitas pequenas coisas: estar com meu clã (companheiro e filhos), ver os olhos dos meus filhos brilharem de alegria; um café da manhã delicioso; a conversa com uma pessoa sensível e que tem humor; dançar a noite toda; cantar; estar perto das plantas; um dia de céu azul e sem umidade; ficar um tempão sozinha em minha casa: adoro a solidão, nela muitas vezes experimento o mais puro estado de felicidade.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Duvido muito diante de toda e qualquer certeza, então não saberia dizer ao certo.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não ser banal, não ser redundante, não dizer ou explicar tudo. Manter certa coerência entre o que escrevo e o que sou e faço.
• A literatura tem alguma obrigação?
Acho que não. Mas tem talvez alguma proibição: não enjaular o pensamento.
• Qual o limite da ficção?
A morte.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não gosto de líderes. Gosto de gente comum. Gosto de pessoas com suas contradições, e líderes costumam chegar a nós sem contradições. Acho que levaria esse ET para uma escola onde há uma professora. Gosto de pessoas que se realizam desdobrando-se nos outros ou através de uma paixão que agrega outras felicidades ao seu redor. Mães. Pessoas que fazem a vida ser possível em regiões de guerra. Pessoas que não abaixam a cabeça. Mulheres pensadoras. A maioria das pessoas que mais me inspiram e me comovem são mulheres, com nossa capacidade de aguentarmos viver num mundo como esse que teima em nos aniquilar todo dia de mil maneiras.
• O que você espera da eternidade?
Ver Lucy no céu com os diamantes.