Entre o silêncio da mata em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, e a escuta atenta das palavras, Roseana Murray continua a afirmar a poesia como um modo de existir no mundo. Autora de vasta obra para crianças, jovens e adultos, ela escreve desde cedo, mas foi apenas ao reencontrar a própria voz, aos 27 anos, que descobriu na poesia um potente espaço para a existência. Hoje, após sobreviver a um feroz ataque de três pitbulls, em abril de 2024, que a marcou profundamente, transforma também a dor em matéria de criação, fiel à ideia de que qualquer experiência, mesmo a mais extrema, pode converter-se em imagem, ritmo, palavra.
Reclusa por escolha, um tanto distante dos circuitos literários, Roseana cultiva uma relação essencial com a escrita: não espera a inspiração, não cobra produtividade, não negocia com modismos. Escreve “o suficiente”, como diz, movida pela necessidade de nomear o mundo — um mundo que lhe desperta encantamento, mas também medo: das violências, da destruição do planeta, do apagamento do humano.
Neste Inquérito, a poeta fala de suas leituras, sua ética da criação e da permanência da poesia como um “canal aberto”, sempre disponível para quem ousa escutá-la.
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Escrevia quando criança e quando adolescente. Ao ter um filho aos 18 anos, fiquei quase dez anos sem escrever. Voltei a escrever aos 27 anos. Pequenos contos e crônicas. Mas não sabia o que seria da minha vida ainda. Estava perdida de mim. Então comecei a escrever poemas.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Acho que não tenho. A não ser ler vários livros ao mesmo tempo. Abandono muitos, me apaixono por outros. Escrevo poemas a qualquer hora. Para crianças e jovens, gosto de desenvolver um tema.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Notícias em geral, artigos maravilhosos que me chegam pelas redes, alguns poemas, um pouco dos livros que estou lendo.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
A vida pela frente, de Émile Ajar [pseudônimo do francês Romain Gary]. Tem tudo. Infância e velhice, pobreza, memória, desejos, decrepitude, a sombra do nazismo, imigrantes africanos e árabes, muito humor e amor. E uma Paris da exclusão. É um livro que amo demais.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Silêncio. Tenho de sobra. Moro dentro da mata, em Visconde de Mauá, na Serra da Mantiqueira, no Rio de Janeiro.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Também silêncio.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Embora considere escrever um ofício, não sou romancista, não escrevo ficção, sou poeta. Não penso nesses termos “dias produtivos”. Escrevo o suficiente.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
As imagens em palavras.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
Não sei dizer, no meu caso.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não frequento o meio literário. Vivo quieta por aqui, a não ser quando vou a uma feira literária. Nessas feiras me incomoda a distância e a segregação entre autores de literatura infantojuvenil e de literatura adulta. Este ano foi a primeira vez na vida que dividi uma mesa sobre poesia na tenda principal em Cachoeira, na Bahia.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Não sei.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Para mim, Grande sertão: veredas, inesgotável. Imprescindível. Mas são tantos os imprescindíveis. Descartáveis: todos os livros em que a escrita não seja impactante.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
As chantagens emocionais, entre tantas outras coisas.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Temas datados não entram na minha poesia.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Tudo serve para se escrever um poema. Escrevi meu livro infantil (na minha cabeça), quando recuperei a consciência depois de perder o braço [Roseana foi atacada por três pitbulls, em abril de 2024]. Soube que havia sido amputada, mergulhei num pântano e, quando retornei, resolvi contar para as crianças o que passei. Para mim, o hospital — a UTI — é um lugar inusitado.
• Quando a inspiração não vem…
A poesia é um canal aberto para mim. Não espero que caia um raio de inspiração na minha cabeça. Posso partir de um sentimento, um fato, uma imagem, uma palavra. Posso também ter uma inspiração súbita. Mas é a necessidade de escrever que me move.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Amós Oz.
• O que é um bom leitor?
Vou repetir Amós Oz: Um bom leitor não acha que Dostoievski era um assassino em potencial que gostava de matar velhinhas.
• O que te dá medo?
A extinção de espécies, a destruição do planeta, os negacionistas, os fanáticos, as matanças, a IA, a perda do que há de humano em nós, as fake news, a extrema direita no mundo, o fascismo, o nazismo, etc. Tenho medo de me perder num aeroporto ou numa cidade desconhecida.
• O que te faz feliz?
Encontrar pessoas maravilhosas. O amor como energia.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Tenho muito retorno dos leitores. Gente de todas as idades ama a minha poesia. Isso é que me diz que a minha poesia toca. Se é boa ou não, não sei.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não me preocupo. Escrevo ou não escrevo.
• A literatura tem alguma obrigação?
Sim. Não ser usada para a destruição do outro.
• Qual o limite da ficção?
Bem, a autoficção está na moda. Mas se a memória é ficção também, não há limite para a ficção.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ailton Krenak.
• O que você espera da eternidade?
Nada. Existir vida depois da morte é uma questão de crença e fé. A eternidade é muito vasta, como o cosmos, a minha mente não alcança. Enquanto alguém se lembrar da gente, estaremos vivos dentro deste alguém.