Escapismo ilusório

Cristovão Tezza: "Até 'O filho eterno', escrevi todos os meus livros à mão, em folhas amarelas. Depois, passei a usar o computador"
Cristovão Tezza, autor de “A tirania do amor”
30/04/2019

Catarinense de Lages, Cristovão Tezza nasceu em 1952 e está radicado em Curitiba (PR) desde criança. Estreou na literatura com os contos de A cidade inventada, em 1980, e seguiu publicando contos e romances com regularidade. Com O filho eterno e O fotógrafo, ganhou os principais prêmios literários do Brasil, como o Jabuti e o São Paulo de Literatura. Em 2017, realizou uma incursão pelos versos com Eu, prosador, me confesso e, em 2018, publicou A tirania do amor.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Lá pelos 12, 13 anos, a leitura e a escrita começaram a ocupar a minha vida de uma forma especial. Dos 15 aos 16 a ideia de me tornar escritor passou, de fato, a dirigir a minha vida, num caminho sem volta.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Até O filho eterno, escrevi todos os meus livros à mão, em folhas amarelas. Depois, passei a usar o computador e me acostumei com ele. O que não mudou foi um certo senso de empreitada e disciplina. Quando começo um romance, reservo sempre três ou quatro horas diárias, de segunda a sexta, meses a fio. Quando jovem, eram as madrugadas. Depois, no meu tempo de professor, reservava as tardes livres. Hoje são as manhãs, o momento em que minha cabeça ainda parece nova. À tarde, eu leio (depois da sesta). De noite, vejo filmes. Uma boa rotina.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
A leitura para mim é imprescindível, qualquer uma. Tenho períodos de mergulho na ficção, outros de não ficção. Atualmente procuro controlar o tempo de internet, que é atraente e dispersiva demais. Às vezes perco horas dando cliques ao acaso e depois me sinto um completo idiota: o que estou fazendo aqui? A leitura da informação diária também tem de ser disciplinada ou a gente enlouquece.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
A ficção talvez fizesse bem a ele, para apurar algum senso de realidade. Poderia começar com Os irmãos Karamázov, do Dostoiévski.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Preciso estar bem calmo, tranquilo, sóbrio, sem nada urgente a resolver, e duas ou três horas com algum silêncio em torno (não é preciso muito, porque o silêncio é mercadoria que desapareceu do mundo; apenas os ruídos e rumorejos não muito invasivos da vida urbana). De acompanhante, um litro de café na garrafa térmica. Quando a escrita embala, crio um casulo mental que funciona.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Viagens de avião são absolutamente perfeitas para leitura. Nunca leio tanto e tão prolongadamente como durante as viagens — quanto mais compridas, melhor a leitura. À falta delas, tardes tranquilas em casa.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
De texto corrido, numa avaliação bruta, meia página A4, fonte tamanho 13, Times New Roman, espaçamento 1,5, parágrafo justificado, margens de 3 centímetros. Numa avaliação fina, duas ou três frases que abram uma clareira num momento difícil do livro. Se eu chego a uma página inteira, só continuo no outro dia. Tenho medo do embalo, porque cada momento precisa amadurecer. Não dá para tocar direto.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O envolvimento imaginário com vidas paralelas. A sensação de “habitar” o livro que estou escrevendo. A ilusão de escapar do descontrole permanente da realidade.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Vou falar por mim, daquilo de que me protejo (mas, como eu disse, cada escritor tem seus próprios fantasmas): a dispersão, a perda de foco, a preocupação com o que vão dizer, o fascínio da moda.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Faz muitos e muitos anos que não frequento o “meio literário”. Sou um animal caseiro. Mas tenho vários amigos escritores, e é sempre um prazer encontrá-los.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
O autor brasileiro, em geral, porque afinal a nossa literatura perdeu o seu leitor; e as escritoras brasileiras, em particular — há uma nova geração, forte, que me agrada muito e que tento acompanhar.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Nem um, nem outro.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Em geral, o descompasso entre a intenção e o resultado. Como escrever não é uma ciência exata, ninguém está livre deste tombo.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Tudo — mas rigorosamente tudo mesmo — dá literatura. O segredo é o jeito com que se agarra um tema.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Não sou um escritor especialmente inspirado. Tenho duas ou três ideias narrativas, magras, a cada dois ou três anos, e me ponho a trabalhar nelas como um operário até transformá-las em romances. É trabalho braçal.

• Quando a inspiração não vem…
Como prosador, como disse, não trabalho com inspiração. Mas como poeta — nas raríssimas vezes em que me meto a rabequista —, realmente a inspiração é fundamental. Para mim, um falso poeta, um poema precisa de um estalo de inspiração, a faísca de uma frase, uma imagem, um avesso qualquer. Nesse caso, se não tem inspiração, simplesmente não escrevo. Não dá para me trancar no escritório às oito da manhã e me determinar: agora vou escrever um poema. Mas é exatamente isso que faço quando decido escrever um romance.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Escritores são especialmente interessantes por escrito. Já como pessoas, o contato pode ser trágico. O fato de eu gostar de um livro não garante, por princípio, nenhum prazer pela companhia ao vivo do seu autor. Mas, por sorte, tenho muitos amigos que são igualmente ótimos escritores. Trocando o café por cerveja, minha preferência como pano de fundo de bate-papo, conversamos sobre futebol, política, os males do reumatismo, filhos, tipos de cachaças, filmes, um ou outro problema pessoal, e raramente sobre literatura. Falar sobre literatura, para mim, é uma atividade profissional, e ninguém gosta de se divertir falando do trabalho.

• O que é um bom leitor?
Alguém que tenha tempo e condições de ler, digamos, um livro por mês. No Brasil, seria o paraíso se essa fosse a média.

• O que te dá medo?
Ficar doente.

• O que te faz feliz?
Um jantar com os amigos, aqui em casa, eu de cozinheiro.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Não sei mais. Eu vou tocando o barco meio por instinto.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que meu livro vá além do que eu simplesmente tinha em mente quando comecei a escrever. O ato de escrever tem de revelar coisas novas para mim, e não apenas para o leitor.

• A literatura tem alguma obrigação?
Eu imagino que sim, porque não existe ato gratuito na vida, mas é um fantasma ao qual não podemos ter acesso. Se eu me sinto obrigado a dizer alguma coisa, escrever perde o sentido.

• Qual o limite da ficção?
A não ficção.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu diria, com empáfia: “Você está falando com ele”. Brincadeira à parte, nesse momento da minha vida não me ocorre mesmo mais ninguém.

• O que você espera da eternidade?
Nada.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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