Conhecido pela verve sarcástica de sua poesia, presente em livros como O pau do Brasil, Wilson Alves-Bezerra já encontrou inspiração em lugares tão inóspitos quando os “lábios sempre violentamente contraídos e cerrados do ex-presidente Jair Bolsonaro” — trata-se do poema O sétimo selo, do livro Necromancia tropical (Douda Correria, 2021).
Aliás, a inspiração, para ele, está em todo lugar, basta ir ao encontro dela: ler e reler os livros fundamentais, ver filmes, conversar… “Sair, enfim, do centro do universo e ir para as bordas, onde tudo é mais interessante e menos autorreferente”, diz o autor, que lançou recentemente A máquina de moer os dias, segundo livro de uma trilogia romanesca iniciada com Vapor barato.
Também tradutor, Alves-Bezerra verteu para o português obras de autores latino-americanos como uruguaio Horacio Quiroga e os argentinos Luis Gusmán e Alfonsina Storni. “Eu queria poder passar uma tarde com a Alfonsina no Café Tortoni, em Buenos Aires, onde ela dizia seus poemas num subsolo que não existe mais”, revela.
Professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Wilson Alves-Bezerra também é autor da coletânea de contos Histórias zoófilas e outras atrocidades (2013) e do livro de poemas Vertigens (2015), obra que conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Poesia — Escolha do Leitor. Além do Brasil, suas obras foram publicadas ainda em Portugal e no Chile.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando, aos 14 anos, li os nomes de autoras e autores nas lombadas dos livros da minha pequena e primeira biblioteca e me dei conta de que desejava ter meu nome impresso nas lombadas também. Que para além de escrever nos meus cadernos, eu poderia ter aquilo tudo impresso num livro próprio, ao lado de outros livros e nomes que eu lia e admirava.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Meu pensamento obsessivo é me torturar pensando se haverá estantes, paredes, cômodos para minha biblioteca pessoal, que cresce como as cabeças de uma Hidra. O que fazer com minha biblioteca quando estiver para morrer, se hoje em dia nem as bibliotecas públicas conseguem processar mais as doações? Se vale a pena comprar tantos livros, se eu já não tenho mais livros do que tempo de vida para lê-los.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Aquela cujos prazos me pressionam: o livro a traduzir, o livro a resenhar, o livro a editar, o livro a comentar com estudantes. Aquelas cujo desejo de as ler me pressiona: o poema que li em determinada ocasião, o conto que me fez pensar em algo, o romance que um dia me definiu, a frase perfeita de algum ensaio. Que grifos ou comentários à margem deixei lá? Tem algum papelzinho que ficou dentro do livro? Será que o livro ainda está aqui ou já desapareceu na bruma? O reencontro com aquele objeto mágico e significativo, enfim.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Ao Lula eu não recomendaria nenhum livro, mas pediria uma política ousada para o livro e a leitura no Brasil; e que desse um puxão de orelha no ministro Haddad, por aquela patacoada de dizer que não conhece a Shopee, mas que compra todo dia um livro na Amazon, justamente na época histórica em que a Amazon preda e destrói todo o mercado editorial brasileiro.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
As circunstâncias dadas.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Aquela em que a gente desliga os celulares e se esconde onde não pode ser localizado por ninguém, nem por a gente mesmo.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando o alívio é maior que o estresse. Quando a satisfação é maior que a culpa. Quando é possível dormir sem sonhos obsessivos. Quando a literatura ganha a partida e não o produtivismo.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Poder ler um texto próprio em voz alta e finalmente sentir que soa bem.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A obsessão pelo sucesso de público, pela vendagem, num país em que não há tradição de leitura.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O que é o meio literário?
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Aquele cujo livro se está lendo no momento.
• Um livro imprescindível e um descartável.
O imprescindível é o que interroga. O descartável é o que responde.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Uma diagramação muito pequena, a ausência de margens amplas, uma cola muito fraca, a ausência de costura. E o mau conteúdo, claro.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Qualquer assunto pode, quer e deve entrar, mas nunca ao mesmo tempo. Tudo o que circula na linguagem pode circular na literatura. Mas não é bagunça: cada coisa em seu lugar e a seu tempo.
• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Dos lábios sempre violentamente contraídos e cerrados do ex-presidente Jair Bolsonaro. Desse lugar inóspito escrevi o poema O sétimo selo, do livro Necromancia tropical.
• Quando a inspiração não vem…
Pode-se ir ao encontro dela: ler e reler os livros fundamentais, ver filmes, conversar. Passear pela cidade. Caminhar a esmo. Ouvir as pessoas na rua, observá-las. Sair, enfim, do centro do universo e ir para as bordas, onde tudo é mais interessante e menos autorreferente.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Eu queria poder passar uma tarde com a Alfonsina Storni no Café Tortoni, em Buenos Aires, onde ela dizia seus poemas num subsolo que não existe mais. Seria uma tarde, porque seria antes da performance dela. Ia gostar de falar com Alfonsina sobre seus poemas em prosa.
• O que é um bom leitor?
O que se entrega ao livro primeiro para depois interrogá-lo. O que coloca o livro para circular no mundo. O que é generoso com outros potenciais leitores e leitoras. O que indica leituras sem falar a palavra “eu”.
• O que te dá medo?
A mediocridade.
• O que te faz feliz?
Férias na praia.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Se faz sentido publicar tal manuscrito. Se ele interessa a alguém ou apenas a mim mesmo. Se ainda preciso escrever ou se já está tudo dito da forma que eu poderia.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que não sobrem palavras.
• A literatura tem alguma obrigação?
Idealmente cada obra deveria ter a obrigação de recusar alguma pretensão à genialidade, à ideia de se achar a origem de todo dizer. Cada obra deveria saber-se parte de um conjunto de outras obras, em diversos idiomas, com as quais ela dialoga, com um universo de acontecimentos no qual ele se imiscui. Enfim, a obrigação da literatura seria, a meu entender, a de não ser muito tolinha e vaidosa.
• Qual o limite da ficção?
O ponto final do capítulo final.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
A um consultório de psicanálise, para ver se o ET se livra desse lugar-comum de conversar com lideranças e não com as pessoas em geral.
• O que você espera da eternidade?
Que seja breve.