De olhos bem fechados

Carla Madeira: "Penso que a literatura não escapa de uma visão de mundo e da potência de afetá-lo".
Carla Madeira, autora de “Véspera”
01/12/2021

A mineira Carla Madeira estreou na literatura em 2014, com Tudo é rio (relançado no início de 2021 pela Record), e desde então vem chamando a atenção de público e crítica. A relação da autora com as letras brotou de sua paixão pela música popular brasileira e a carreira de ficcionista surgiu bem depois, quando ela foi “pega pelo processo criativo”. “Foi uma experiência arrebatadora, visceral, lúdica, complexa. É atrás de horas assim que ando”, diz sobre o processo de criação de seu primeiro livro. Nos anos seguintes, aproveitando sempre os momentos iniciais da manhã para fabular de olhos fechados, lançou A natureza da mordida (2018) e Véspera (2021).

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Me apaixonei pela palavra na voz da música popular brasileira: Caetano, Gil, Chico, Rita, Clube da Esquina… Aprendi a tocar violão muito nova e compunha vertiginosamente, letra e música. Não me dei conta de que queria ser uma escritora, fui sendo. Quando comecei a escrever Tudo é rio, sequer sabia se ele seria um livro. Fui pega pelo processo criativo. Foi uma experiência arrebatadora, visceral, lúdica, complexa. É atrás de horas assim que ando.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Quando acordo de manhã, fico na cama de olhos fechados vendo o filme do que estou escrevendo. É uma hora potente para mim, as palavras me acodem. Convivo com as personagens, olho para elas e as escuto. Tento não anotar, para não interromper o momento. Decoro algumas coisas que surgem, outras, perco. Tenho obsessão por reler em voz sussurrada, meio interpretando, o que vou escrevendo. Faço isso inúmeras vezes, até fluir sem tropeços, no ritmo que quero imprimir.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
A do livro que estou lendo. Só muito recentemente aprendi a ler mais de um livro de uma vez. Meu ritual é tomar um banho, acender a luminária da cama e ler antes de dormir. Adoro esse momento.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Não posso recomendar um livro para o presidente Jair Bolsonaro. Ando determinada a não desperdiçar energia.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Meu quintal. Finais de semana em que não preciso me dividir tanto com outras atividades. Não ser interrompida. Por outro lado, quando estou em um momento muito envolvente da escrita, o mundo ao redor pode cair que não vou notar. Tudo é rio, por exemplo, teve trechos que escrevi num set de filmagem, enquanto a equipe acertava a luz. Se a voz dentro de mim está muito intensa, nada me atrapalha. Ao agradecer meus filhos no meu livro A natureza da mordida, prometi voltar a comprar pasta de dente e comida. É por aí.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Todas as noites, quando tudo silencia em casa, experimento uma dose de circunstância ideal para ler. Nas férias, quando vou para um lugar onde eu possa ler o quanto quiser, encontro o paraíso.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando escrevo, estou sob perturbação e busco na linguagem uma maneira de encaminhá-la. O corpo quer resgatar a paz. E isso acontece quando a palavra encontra o afeto. Tudo parece se unificar. O corpo sente a inteireza do achado. Sente que a tensão foi encaminhada. Um dia produtivo, para mim, é feito dessas pequenas inteirezas.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Não me lembrar que existem outras coisas além daquele momento. Essa sensação de profundo envolvimento, de salivar pelo que estou fazendo, é um prazer imenso, mesmo quando dói.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O julgamento e o exibicionismo. Julgar durante o processo criativo é destrutivo, principalmente quando introjetamos a voz do outro, os medos, as expectativas, a moral. E o exibicionismo também atrapalha. Querer mostrar que somos capazes de uma frase bela, ou de um pensamento inteligente, nos impede de cortar o desnecessário.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Percebo, às vezes, uma necessidade demasiada de classificações, rótulos, avais. O que é ser um bom escritor? Ser lido? Ser aplaudido? Ser premiado? Vender? Inovar? Afetar visceralmente uma única pessoa? Qual a medida? São questões que atravessam tantos territórios: o mercado, os críticos, os leitores, os entendidos. O importante é se afastar um pouco desses vereditos para não perder a liberdade e o gozo no processo criativo.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
A mineira Marcela Dantés, que lançou seu romance de estreia, Nem sinal de asas, e já está concorrendo ao Jabuti e ao Prêmio São Paulo.

Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível para todos: Como curar um fanático, de Amós Oz. Descartável para mim: aquele que abandono sem dó.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Didatismo e tédio.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Escrever sobre o que não me afeta.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
De uma desconhecida que encontrei em uma banca de revista. Foi a chave para encontrar a voz de Biá, uma personagem do A natureza da mordida.

• Quando a inspiração não vem…
Me afasto. Vou fazer outra coisa. Ela sempre volta. Confio.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Neste momento, Ocean Vuong. Acabei de ler seu imperdível Sobre a terra somos belos por um instante.

• O que é um bom leitor?
O que topa mergulhar na aventura de se colocar no lugar do outro. Suspender suas convicções e certezas para conhecer e, quem sabe, compreender um ou outro aspecto da realidade.

• O que te dá medo?
O Brasil. Mas já combinei com Caetano: não vou deixar.

• O que te faz feliz?
Toda linguagem artística me faz feliz. A que faço, a que fazem. A arte me resgata sempre.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Quando termino um livro, sei que é o livro que quis escrever. Não largo o osso sem essa pequena certeza. No mais, tudo é dúvida.

Qual a sua maior preocupação ao escrever?
O acontecimento. Gosto de contar uma história, do fio que enreda. O ritmo, o fluir sem tropeços. Sustentar a linguagem. Encontrar a palavra.

• A literatura tem alguma obrigação?
Penso que a literatura não escapa de uma visão de mundo e da potência de afetá-lo. Mas é fundamental a liberdade de não ter de ser um acerto de contas ou um território pedagógico, ou crítica política ou reforma social. A boa literatura apenas experimenta soprar uma poeira e oferecer o frescor de uma outra visão, muitas vezes de lugares conhecidos, um pequeno nascimento. Amós Oz fala lindamente sobre isto em Como curar um fanático.

• Qual o limite da ficção?
É difícil falar em limites porque tudo que parece uma certeza sobre o que se deve ou não fazer em literatura me soa perigoso. A ficção pode (ainda bem!) nos fazer olhar para o mal, virá-lo do avesso, entrar nas entranhas do violento, do imperdoável, do inaceitável, nos fazer conhecer os extremos de nossa humanidade para compreendê-lo. Com sorte, combatê-lo. Em seu poema Aviso à praça, Antonio Risério diz: “Não me consta que roseiras e gaivotas ajam assim?”. O desumano pode ser assombroso, mas é humano. Talvez o limite da ficção seja a mentira. A intolerável mentira.

•  Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ao Divino Espírito Santo que nos habita, cheio de arte e graça.

• O que você espera da eternidade?
Que me pegue num dia bom.

Véspera
Carla Madeira
Record
280 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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