Corajosa aventura

Leila Míccolis: “Divirto-me até com a construção de algum poema ou texto em prosa mais teimoso: persigo-os até vencê-los pelo cansaço”
Leila Míccolis, autora de “Em poetisa todo mundo pisa”
01/11/2023

A palavra escrita sempre esteve presente na vida de Leila Míccolis. “Aos três anos, fiz minha primeira quadrinha para meu gato”, diz a poeta. Formada em Direito, abandonou a profissão ainda nos anos 1970 para se dedicar à literatura — estreou anos antes, em 1965, com a coletânea de poemas Gaveta da solidão.

Nos anos 1980 deu início a uma bem-sucedida carreira como roteirista de novelas. Participou de sucessos como Kananga do Japão, Barriga de aluguel e Mandacaru.

“Aprendi com a dramaturgia televisiva (telenovelas, quarenta páginas por dia) e com publicações em revistas e jornais, que nós próprios criamos nossas circunstâncias ideais para escrever”, explica ao responder sobre como conciliar o fazer literário com a escrita “comercial”.

Referência da poesia nos anos 1970, Leila integrou a icônica antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda (que recentemente passou a adotar o nome de batismo, Heloísa Teixeira). Em 2013, sua produção poética foi reunida em Desfamiliares: Poesia completa de Leila Míccolis — 1965-2012. Um amplo painel de uma escrita considerada pela crítica como “transgressora” e “provocativa”.

Aos 76 anos, Leila continua sendo uma workaholic, que se diverte “até com a construção de algum poema ou texto em prosa mais teimoso”. “Persigo-os até vencê-los pelo cansaço”, diz.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Acho que desde que me entendo por gente. Aos três anos, fiz minha primeira quadrinha para meu gato. Porém, a motivação definitiva deu-se quando ganhei meu primeiro concurso literário, aos nove anos de idade, organizado pelo Museu do Índio, sobre “O Índio no Brasil”. Tomei gosto, não quis parar mais.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Talvez falar do óbvio, antes que eu esqueça.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Livros de poesia e de teoria literária e afins: sociologia, cultura da convergência, história da cultura, poética, crítica, escrita criativa, além de livros de roteiros diversos.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Primeiro procuraria saber qual o tipo de livro preferido dele, para então sugerir algum.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Aprendi com a dramaturgia televisiva (telenovelas, quarenta páginas por dia) e com publicações em revistas e jornais, que nós próprios criamos nossas circunstâncias ideais, mas, mesmo sem elas, há que se tentar fazer o melhor que for possível em qualquer ambiente.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Para mim, as circunstâncias ideais são quando sinto vontade de ler… Abandonei dez anos de advocacia para abraçar outra “causa”: a literária, em tempo integral. Então, passo grande parte da minha vida lendo e/ou escrevendo, porque foi isso que me propus a fazer. Resumindo: sou uma workaholic assumida.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando acabo satisfeita com o que crio (independentemente do tamanho da criação — um poema de três versos ou um ensaio acadêmico de 15 páginas) ou alegre com os insights que tive sobre as reflexões pessoais de minhas leituras.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Tudo. Divirto-me até com a construção de algum poema ou texto em prosa mais teimoso: persigo-os até vencê-los pelo cansaço — o que às vezes pode levar até semanas…

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A preguiça que paralisa e faz com que ele não leia mais ou não lapide o que escreve.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Estrelismo.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Há muitos. Citar apenas uma pessoa seria uma tremenda injustiça com todos as demais. Se eu fizer isso, não vou dormir esta noite…

• Um livro imprescindível e um descartável.
Atuando em diversas áreas, minhas leituras (mais de uma ao mesmo tempo) são bastante diversificadas, embora de algum modo estejam sempre conectadas entre si. Escolho citar Poesia sobre poesia, de Affonso Romano de Sant’Anna: não conhecia essa fase poética dele, e me impressionou sua estética agressiva e feroz, belíssima. Além do mais, a preciosa edição da Imago, de 1975, publica os primeiros poemas com notas explicativas, diferencial que acrescenta significados e amplia sabores. Descartável, até pela própria indicação do título, creio que seria Destrua este diário, da Keri Smith, porque eu jamais compraria um livro com o objetivo de destruí-lo ao final, ainda mais sendo um diário, que é feito de reflexões e memórias.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Ausência de autocrítica.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Rituais satânicos.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Das ruínas de Machu Picchu, não propriamente pelo lugar, pela maravilhosa paisagem, nem pelo clima místico que as envolve, mas pelo sistema de irrigação e de abastecimento de água que os incas tinham já naquela época.

• Quando a inspiração não vem…
Aprendi a chamá-la. Escrever com prazo e hora marcada fez com que eu inventasse planos B, C, D… acho que cheguei a percorrer quase o alfabeto todo.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
O tal do “eu lírico”…

• O que é um bom leitor?
Aquele que dialoga com a obra, que conversa com ela, mesmo que discorde parcialmente dela.

• O que te dá medo?
Tartarugas. O bom é que sempre consigo correr delas.

• O que te faz feliz?
O que faço. Nunca me arrependi da corajosa aventura de escrever profissionalmente, mesmo com todos os percalços que esta jornada oferece. Sempre digo que não consigo ser feliz sem uma caneta por perto, até para fazer anotações das leituras. Quando o trabalho é prazeroso, não se torna uma obrigação; ao contrário, faz com que diariamente você descubra coisas novas, acrescenta sempre e flui.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A alegria e a certeza de que fiz a escolha certa. Mesmo quem tenha dúvidas sobre isso…

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que diversos tipos de públicos entendam a mensagem que quero transmitir, às suas maneiras.

• A literatura tem alguma obrigação?
Quando você escreve para uma empresa (rádios ou TVs) ou tem cursos online, assessorias, monitoramentos, debates, publicações ou grandes eventos, sim, são comuns as obrigações contratuais. O importante é saber conviver com elas, sem grandes estresses.

• Qual o limite da ficção?
A este respeito, Marcelino Freire tem uma frase que eu cito muito nos meus cursos, porque acho ótima: o que quer que se escreva, “até mesmo em uma ficção científica, de repente vemos que o dinossauro tosse igual ao nosso avô”…

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu o apresentaria à minha avatar, que é minha maior líder de torcida.

• O que você espera da eternidade?
Que me permita continuar lendo e escrevendo para todo o sempre.

Em poetisa todo mundo pisa
Leila Míccolis
Macabéa
178 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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