Causar transtorno

Ronaldo Correia de Brito: "Ver um personagem se apropriando das falas, crescendo e brigando por espaço dentro do texto"
Ronaldo Correia de Brito, autor de “O baile do menino deus”
01/06/2017

Ronaldo Correia de Brito nasceu em Saboeiro (CE), em 1951. Mas desde a década de 1970 vive no Recife (PE), onde surgiu como um dos principais escritores brasileiros contemporâneos. Além de contista e romancista, dedica-se ao teatro. Seu livro O baile do menino deus é encenado há mais de dez anos em Pernambuco. É autor, entre outros, dos contos de Faca e O amor das sombras, e dos romances Galileia (Prêmio São Paulo de Literatura) e Estive lá fora.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Bem cedo eu percebi que gostava de escrever. Mas demorou até que achasse que era um escritor. Por isso só publiquei depois dos 40 anos.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Nunca deixo de ler atentamente alguns contos de Borges, Tchekhov e poemas de João Cabral. Sempre retorno ao Mahabharata, à Bíblia e ao Tao-Te-King.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Ensaios sobre literatura. São os livros mais ao alcance da mão, na minha biblioteca.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Com certeza, um que refletisse sobre a ambição do poder, como o Macbeth, de Shakespeare.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Em casa, no meu escritório. Fora de casa, faço apenas anotações.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Consigo ler bem, em qualquer lugar. De preferência, livro impresso.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando surgem novas ideias e há o ganho de uma página escrita.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Ver um personagem se apropriando das falas, crescendo e brigando por espaço dentro do texto.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Os truques e cacoetes da escrita, sobretudo os que se disfarçam em pirotecnia de linguagem.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não ter certeza se é verdade o que os escritores falam com aparente convicção.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Antonio Carlos Viana

• Um livro imprescindível e um descartável.
Prefiro citar dois livros imprescindíveis: Crime e castigo e Grande sertão: veredas. Raskolnikov e Riobaldo são personagens shakespearianos. Quanto aos livros descartáveis, sempre tirei algum proveito deles.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A falta de convicção do autor no que escreve.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
O discurso partidário. Escritores como Brecht, Gorki e até mesmo Maiakovski caíram na armadilha de escrever a serviço da Revolução.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
A periferia de uma cidade pequena, rua esburacada e sem calçamento, a conversa de um entregador de gás com uma dona de casa.

• Quando a inspiração não vem…
Consulto os vários cadernos de anotações e um arquivo no computador com o título: Reserva de memória.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Muitos. Teria prazer em sentar ao lado de Guimarães Rosa e ouvi-lo falar sobre o processo de escrita do Grande sertão: veredas.

• O que é um bom leitor?
É o que se apropria da sua escrita e a reinventa.

• O que te dá medo?
A violência, em qualquer de suas formas, sobretudo a do poder.

• O que te faz feliz?
No final da tarde, quando consigo trabalhar bem durante o dia, caminho pelas ruas do meu bairro e bebo um café.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A certeza de que sempre poderei contar histórias, como faziam os homens e mulheres de minha família. Receio não alcançar o perfeito equilíbrio entre a narrativa oral e a escrita.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Produzir um texto instigante, que provoque no leitor o gosto de ler. Não aprecio a literatura anódina.

• A literatura tem alguma obrigação?
Sim, causar transtorno. Mover o leitor do seu lugar cômodo, fazê-lo pensar, sentir, achar graça, ter raiva, sofrer…

• Qual o limite da ficção?
A ética. Todo escritor sabe até aonde pode ir. Para os gregos, quando o Cosmos era ferido por um crime, e se instalava o Caos, somente pela consciência do erro o Cosmos era restaurado. Veja o Édipo Rei. Esse modelo da tragédia está em Dostoievski e em Guimarães Rosa. Trata-se de um limite, que, ao fim, é a ética. O caos instaurado no Brasil, por conta de numerosos crimes, pede de todos os brasileiros a consciência e a punição desses crimes. Somente depois da purgação a Ordem poderá ser restaurada.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eita, acho que a ninguém. Poderia levá-lo a muitas pessoas que admiro e estimo.

• O que você espera da eternidade?
Nada temer e nada esperar.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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