🔓 Até o limite

Antonio Carlos Secchin: "Todo autor é uma invenção de seu leitor. Bom leitor é aquele que ensina ao autor que ele é bem diverso do que supunha ser."
Antonio Carlos Secchin, autor de “Ana à esquerda”
01/01/2023

Curiosamente, o poeta Antonio Carlos Secchin queria ser romancista. Aos 14 anos, já tinha dois livros em prosa, um pronto e outro inacabado. “Só depois passei para a poesia. Em geral, é mais frequente o roteiro inverso”, revela o autor de Ana à esquerda, livro de narrativas recém-lançado pela Martelo.

Sétimo ocupante da cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 2004, Secchin começou a publicar no início dos anos 1970. Além de vasta obra poética, dedicou-se também à reflexão da produção de autores como João Cabral de Melo Neto e Cruz e Sousa.

Com uma vida dedicada aos versos, a poesia continua sendo essencial em sua rotina de leitor. Ele também revela que sente mais prazer na reescrita do que na criação e que uma das coisas que o irritam no meio literário é a “empáfia com que alguns exibem suas certezas sobre como deve ser a ‘verdadeira’ literatura”.

E se pudesse indicar um livro para o novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, Secchin indicaria o romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. “Mesmo que Lula não atravessasse logo o livro todo, pediria que ele ao menos o conservasse por perto.”

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Muito cedo percebi que não era bom em números, e que podia compensar isso com as letras. Talvez tenha me tornado escritor para fugir da matemática. Aos 14 anos, já dispunha de um romance inconcluso e de outro completo. Só depois passei para a poesia. Em geral, é mais frequente o roteiro inverso.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Tenho obsessão pelo ritmo, em prosa ou em verso. Nenhuma frase inimiga da música. Ainda que dissonante, de vez em quando.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Duas leituras, para mim, diárias e inadiáveis: poesia e boletos em véspera de vencimento.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Primeiro, recomendaria que jogasse fora toda a biblioteca de seu antecessor, constituída, parece, de uma única obra, do coronel Ustra. Depois, mesmo que Lula não atravessasse logo o livro todo, pediria que ele ao menos conservasse por perto Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
A ideal é, paradoxalmente, a mais aflitiva: a pressão do prazo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Não ter ninguém por perto.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele cujo resultado eu não apago na íntegra no dia seguinte.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A reescrita. Refazer o escrito, operar em sintonia fina, até o ponto de dizer: não dá mais, estou no meu limite.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Primeiro, diluir-se na repetição de um estilo alheio. Na sequência, liberto do outro, tornar-se prisioneiro de seu próprio estilo.

• O que mais o incomoda no meio literário?
A empáfia com que alguns exibem suas certezas sobre como deve ser a “verdadeira” literatura.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
No passado, José de Alencar, massacrado por uma cruel, injusta, comparação com Machado de Assis. Alencar, com todos os seus equívocos, foi um grande pensador do Brasil, mas hoje quase ninguém o lê. No presente, a lista seria grande. Os poetas Adriano Espínola, Emmanuel Santiago e Leonardo Antunes, por exemplo.

• Um livro imprescindível e um descartável.
No mundo pré-internet, organizei um Guia dos sebos de 14 capitais brasileiras. Para mim, que sou bibliófilo e viajava muito, tratava-se de um livrinho imprescindível, pois continha dentro de si, potencialmente, 2 milhões de outros livros. Hoje, claro, é exemplo de obra descartável, tornada obsoleta pelo comércio eletrônico.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A pretensão de “retratar a realidade”, como se a linguagem literária fosse feita de signos transparentes com a função de servir a algo externo a ela.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
A questão, para mim, não é o assunto, mas o tom. Se for panfletário, edificante… estou fora. A literatura é um manual de maus modos.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
A asa esquerda de uma borboleta da Finlândia. Foi a imagem que me ocorreu para representar a alienação a-histórica dos estudos literários na década de 1970, quando cursei a Faculdade de Letras.

• Quando a inspiração não vem…
Respeito a sua ausência. A inspiração deve ter bons motivos para esse sumiço.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Alguém que topasse rachar a conta. Os figurões só aceitariam o convite para serem incensados. Os secundários, os esquecidos, os não biografados, teriam ótimas histórias para contar. Como o juízo da posteridade não lhes diz respeito, ficariam à vontade para dizer o que quisessem, sem censura.

• O que é um bom leitor?
Todo autor é uma invenção de seu leitor. Bom leitor é aquele que ensina ao autor que ele é bem diverso do que supunha ser.

• O que te dá medo?
Perder a autocrítica. Conviver mal com a decadência, física e mental.

• O que te faz feliz?
Não sou muito exigente. Uma vitória do Botafogo já está de bom tamanho.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A certeza de que tudo pode ser mais bem dito. A dúvida é se de fato pelo menos consegui chegar perto desse melhor dizer.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Não relaxar na batalha contra o lugar-comum.

• A literatura tem alguma obrigação?
Sim. Reafirmar que não tem obrigação nenhuma.

• Qual o limite da ficção?
A ficção começa quando a realidade se esvai. Isto é, a todo momento. Por isso a ficção é ilimitável e inesgotável.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Responderia: “Serve o vice-líder? Nesse momento o Alckmin está mais disponível”.

• O que você espera da eternidade?
Cito dois versos de um antigo poema: “Tanto faz minha sorte ou meu inferno,/ Não tenho tempo para ser eterno”.

Ana à esquerda
Antonio Carlos Secchin
Martelo
123 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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