Aquele que escreve poemas

Eucanaã Ferraz: "Obedeço ao poema que se me impõe. Procuro estar à altura de escrevê-lo, só"
Eucanaã Ferraz, autor de “Retratos com erro” Foto: Ailton Silva
01/09/2021

Em atividade há mais de 30 anos, o poeta carioca Eucanaã Ferraz começou a publicar versos conforme os escrevia, sem nunca ter se dado conta, em um momento específico, de que havia se tornado escritor. “Cada poema exige que eu me torne poeta, e só quando penso que o consegui é que me dou conta do que ele é, e isso não significa exatamente eu ser alguém, eu ser um escritor”, diz o autor que estreou com Livro primeiro, em 1990. Na companhia da solidão, do silêncio e concentrado, em circunstâncias ideais, Ferraz seguiu produzindo com regularidade — ele assina, hoje, nove obras de poesia e tem uma antologia editada em Lisboa. Além disso, lançou títulos infantojuvenis e organizou 20 livros de diferentes autores. Retratos com erro (2019), Escuta (2015) e Sentimental (2012) são suas publicações mais recentes.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Na verdade, nunca me dei conta disso. Fui escrevendo. Comecei a publicar como um imperativo, uma decorrência da própria escrita. Isso foi me tornando um escritor de tipo bastante singular — um poeta. A poesia foi se impondo sem que eu a procurasse como objeto de uma carreira, ou seja, algo como uma profissão, estatuto mais condizente com aqueles a quem chamamos escritores. Além disso, a verdade é que ainda estou me tornando um poeta, muito embora escreva poesia há bastante tempo e publique livros com alguma regularidade. Cada poema exige que eu me torne poeta, e só quando penso que o consegui é que me dou conta do que ele é, e isso não significa exatamente eu ser alguém, eu ser um escritor. Sou aquele que escreveu aquele poema. E isso é muito.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Desagrada-me pensar nesses termos, que me parecem próximos de alguma patologia. Obedeço ao poema que se me impõe. Procuro estar à altura de escrevê-lo, só.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Poesia e ensaio.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Compreendo a pergunta; o que ela implica; o que ela sugere. Mas me desgosta pensar no livro como instrumento de autoajuda, ou simplesmente de ajuda, muito embora confie sem nenhuma sombra no poder que tem de transformar nossas vidas. Mas o fato é que, para que se dê a transformação, o leitor é mais importante que o próprio livro. Na verdade, é o leitor que o escreve. E o personagem em questão não me parece capaz de nada que exija a sensibilidade, o despojamento, a inteligência, a abertura para o desconhecido. Um livro em suas mãos seria um objeto morto.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Necessito de solidão, de silêncio e de concentração.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Nesse caso, preciso de concentração; às vezes, posso prescindir do silêncio. E posso ler em companhia.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando corto uma palavra que não era necessária.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Reescrever, mudar, eliminar, desfazer, descobrir, acrescentar o que faz falta, enfim, trabalhar; mas também receber o que vem do aparente acaso e então mudar o rumo do que parecia estável. Resumiria tudo isso a: sentir que estou chegando ao poema.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A preguiça. Não me refiro ao ócio que pode gerar a contemplação, a vivência, e que não raro nos abre para o imprevisível. Refiro-me à negligência, ao comprazimento fácil, à aceitação que se confunde com a benevolência consigo mesmo e, o que é a mesma coisa, com o que fazemos.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O que não é literatura. O que é literário.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Cecília Meireles.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Julgo imprescindível o livro que estamos lendo ou aquele que vem à memória. Nessa hora, todos os outros foram, de algum modo, descartados. Clássicos, imprescindíveis para a literatura, mas nunca lidos por nós, acabam se tornado, em nossas vidas, os imprescindíveis que descartamos por desconhecimento, desleixo, esquecimento, ou porque os consideramos lidos justamente porque são clássicos. Enfim, é uma pergunta que não sei responder.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A mentira.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nenhum.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Quando algo é capaz de inspirar, ele é inusitado. Não importa o quão banal; naquele momento, ele foi inusitado.

• Quando a inspiração não vem…
Eu a procuro. Se não ela vem, não vem. Vive-se.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Morto, Manuel Bandeira. Mas tomei chá com Sophia de Mello Breyner Andresen, vivíssima. Além disso, sempre convido amigos queridos, vivos, que são escritores, para um café ou uma cerveja. Os mortos não bebem.

• O que é um bom leitor?
Aquele que disponível existencial e intelectualmente para dar vida ao poema.

• O que te dá medo?
A ignorância.

• O que te faz feliz?
Um belo poema escrito hoje e que não fui eu que escrevi. Uma boa conversa. Comer. Qualquer coisa bonita. Um cachorro que parece muito alegre. Saber que alguém está feliz.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida move. E tudo é dúvida. Só tenho certezas em relação ao trabalho alheio. Diante dos versos de alguém, posso experimentar a certeza de que são esplêndidos, de que tudo está certo, de que me arrancaram de um lugar e me levaram para outro, mais amplo e desconhecido até então.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que aquilo seja uma verdade. E, no entanto, para que seja uma verdade, não pode haver uma preocupação. A verdade é algo imperativo.

• A literatura tem alguma obrigação?
Ser uma verdade. A sua própria verdade.

• Qual o limite da ficção?
Da ficção, não sei. Poderia arriscar uma resposta como alguém de fora, como leitor. Mas prefiro permanecer nos meus limites. Então, posso firmar que o único limite para a poesia é a própria linguagem. Fora isso, não há nenhum limite.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Não levaria a ninguém. Eu o levaria para ver as coisas, as pessoas, os bichos, as árvores. Não gosto de líderes. E aqueles que mais admiro jamais se deixariam prender nessa caricatura.

• O que você espera da eternidade?
O silêncio.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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